Capítulo 18 Dois amores
Naquela noite tivemos visitas no acampamento, William primo do Ian aproveitou sua estadia na fazenda para visitar sua família cigana. Caio também acabou ficando por ali, aliás, como comentou mais cedo, ele passaria uns dias na casa de Carmencita para gravar sua "matéria para a faculdade". O irmão da patroa também nos visitou juntamente com os sobrinhos Crístian e o Samuel, o que me deixou tensa, pois desde que nos envolvemos, era a primeira vez que ele estaria entre nós sem ser uma visita clandestina.
Ao ar livre foi montada uma grande mesa para que todos pudessem confraternizar, e nem se tratava de alguma comemoração de datas específicas. Em nossa cultura, a comida significa bem mais do que um simples sustento, pois a partilha de refeições fortalece os laços familiares e as amizades onde compartilhamos não apenas alimentos, mas também histórias e experiências de vida. Isso sempre foi algo que apreciei muito e sentia falta no sul, onde as pessoas praticamente não se misturavam, eles eram muito reservados e quase não havia interação entre a comunidade. A princípio pensei que aquela distância fosse por sermos ciganos, mas com o tempo percebi que é algo cultural, então apenas respeitei.
Caio aproveitou a ocasião para fazer algumas gravações para seu "documentário" da faculdade. Somente eu, ele, Ian e sua família, sendo irmão, mãe e pai — que não estava presente na ocasião — sabíamos a verdade, fui orientada a não contar a ninguém sobre sua real identidade.
A noite estava linda, o céu estrelado, minha mãe juntou-se a algumas mulheres para preparar o goulash húngaro, um ensopado de carne bovina que normalmente era servido com fatias de pão. É um prato simples, mas também um dos mais conhecidos com influências ciganas; eu particularmente amo, pois para mim, tem gosto da mais pura nostalgia, que agora estava mais forte ao sentir aquele cheiro maravilhoso.
Escolhi para a ocasião um vestido na cor vinho com bordados em branco, prendi parcialmente o cabelo com uma presilha de girassol e fiz uma maquiagem marcante. Eu não queria chamar tanta atenção, mas também não queria aparecer de qualquer jeito na frente dele, o meu noivo secreto, porque agora ele demonstrou que realmente queria algo sério comigo e eu estava muito contente, parecia que as coisas estavam entrando nos eixos. O sonho da grande maioria das ciganas é se casar e ter filhos, nosso maior medo é não ser escolhida por ninguém e "passar da hora do casamento".
Por esse motivo, algumas aceitam seu destino ao lado do noivo arranjado, e são felizes pelo simples fato de poder formar uma família e ter um companheiro para dividir a vida. O que naquele momento não era o meu caso. Estava com a cabeça cheia de ilusões, dúvidas e isso virou uma bola de neve, me achava esperta, mas, no fundo, era imatura na mesma medida que inconsequente, pois nunca me achei inocente — no verdadeiro sentido da palavra — e minha impulsividade me jogou em uma trama que se complicava cada vez mais.
— Está linda — disse Alejandro quando me aproximei.
— São seus olhos — sorri corada, correndo meu olhar por todos os lados, eu estava apreensiva.
As chamas da fogueira iluminavam as roupas coloridas das ciganas que dançavam alegres, girando e balançando suas saias enquanto os demais batiam palmas acompanhando o ritmo da música. Em um canto isolado os homens conversavam, e entre eles estavam Crístian e Samuel, que trocou olhares comigo, eu ousei colocar o anel e rezei muito para que minha mãe não notasse.
— Que moço bonito — disse Jade se sentando ao meu lado.
Ela se referia ao Caio que agora vestia uma calça jeans e camiseta azul, não era só o preto que lhe caía bem.
— Parece uma pintura, né? — eu ri.
— O primo do Ian também é lindo demais.
Jade tinha razão, Willian era um pedaço de mau caminho, alto, forte, pele bronzeada, cabelos encaracolados, negros e um sorriso marcante, que se destacava em uma barba, curta, desenhada. Só não carregava a semente cigana, pois era filho de um gadjô.
— Beleza vem de família — concordei, agora voltando minha atenção ao Ian, que vestia uma camisa cinza de cetim, calça preta e bandana, ele ficava ainda mais lindo com a vestimenta cigana, isso é um fato incontestável.
— Meu primo é lindo mesmo — disse Vívian se juntando a nós. — Pena que tem um péssimo gosto para mulheres.
— Qual é, garota, vai começar? — perguntei irritada.
— Estou de olho em você — disse ela se afastando.
— Insuportável.
— O que foi isso? — Jade perguntou aos risos.
— Ela resolveu pegar no meu pé agora.
— Toma cuidado, Nat, essa menina cheira a confusão.
— Eu sou a própria confusão — falei me afastando.
***
O jantar correu como o esperado, a mesa farta, pessoas sorrindo compartilhando suas histórias enquanto Caio, com autorização, gravava com seu equipamento alguns momentos descontraídos daquela partilha. As crianças corriam alegres, os jovens conversavam entre si em um clima familiar, mas, como era esperado, o assunto Pérola, que, embora sigilosamente, era o motivo de toda aquela movimentação, foi introduzido intencionalmente na conversa, trazendo consigo fortes emoções...
— Pérola vinha trocando mensagens com um rapaz não-cigano, minha irmã encontrou um caderno cheio de declarações de amor a esse jovem, mas segundo relatos de testemunhas ela foi forçada a entrar no carro preto no dia em que sumiu — dizia a cigana Carmem, tia de Ian. — Por isso foi cogitada a hipótese de um sequestro.
— Ela era minha prometida — disse o cigano Wladimir, irmão mais velho de Vívian. — Faltava poucos dias para o casamento, até notei que estava diferente, mas pensei que fosse coisa de noivas, meu pai disse que é normal elas ficarem ansiosas. Pérola sempre foi muito atenciosa comigo, mas de repente mudou, estava distante, sempre nervosa, chorava sem motivo aparente. Na noite anterior ao seu sumiço me abraçou e disse para nunca me esquecer de que ela me amava, se soubesse que era uma despedida não teria deixado que fosse ao colégio. Eu tinha que ter percebido.
— Eu era criança, me lembro dela penteando meu cabelo, a prima me chamava de bonequinha — Vívian falou com a voz embargada.
— Hoje faz exatamente sete anos que minha filha sumiu — disse Carmencita, acariciando seu retrato. — Foi no dia de seu aniversário de quinze, eu estava preparando uma festa surpresa, mas a aniversariante não compareceu.
— Ela tinha uma voz tão linda, me lembro de quando cantava aqui mesmo nas noites de lua clara em roda da fogueira — acrescentou a cigana Carmem. — Pérola era um doce de menina, linda, educada, não me esqueço de seu sorriso.
— Ela dizia que ia ser uma cantora famosa — disse Ivan com lágrimas nos olhos. — Minha irmã tinha muito talento, me lembro das nossas brincadeiras, nossas brigas, sinto muito a sua falta.
— A senhora quer deixar alguma mensagem gravada? — Caio perguntou, pausando a gravação. — Sei que já tentaram de tudo, mas quem sabe não surge uma informação nova.
— Será? — Carmencita exitou.
— Só se estiver bem para isso, mãe — disse Ian, apertando sua mão.
— Tudo bem — ela concordou, se ajeitando na cadeira e tomando fôlego. — Quem sabe dessa vez não acontece um milagre.
Ian olhou para a mãe com pesar, eu por mais de uma vez o ouvi dizer que se tivesse realmente fugido com um cara a polícia já teria encontrado. Ele acreditava que a irmã estava morta, e ali entendi que lutava para segurar as lágrimas, pois se sentia culpado por pensar assim. Eu queria abraçá-lo e dizer que tudo ia ficar bem, mas sequer podia me aproximar, então lhe lancei um olhar compassivo, que ele com um aceno de cabeça agradeceu, foram tantos anos de convivência, que não precisávamos de palavras para nos comunicar.
— Vou continuar a gravação — Caio avisou. — Pelo visto a Pérola era muito querida por todos.
— Sim, minha filha sempre foi muito querida, ela cantava no coral da igreja aqui da fazenda, auxiliava na escolinha — afirmou a mãe, com lágrimas nos olhos. — Sinto que está viva e tenho fé que ainda vou abraçá-la.
— Se a senhora quiser deixar uma mensagem é só olhar aqui para essa câmera, quem sabe esse apelo não chegue ao seu destino.
As mãos da cigana tremiam, confesso que não curti aquela exposição, era doloroso fazer uma mãe passar por isso, mas Caio tinha seus planos, ele estudou, se preparou e sabia o que estava fazendo e eu só era uma cigana que achava que sabia das coisas. Mas no fim, não sabia de nada.
— Sei que em algum lugar debaixo desse céu estrelado você está, minha filha. Se escolheu viver com um não-cigano, eu te perdoo, não posso mudar seu destino, mas queria muito que me mandasse notícias — Carmencita limpou a lágrima que escorria por seus olhos, que se fecharam por um breve instante em um lamento de aflição. — Sinto sua falta todos os dias; a mãe nunca te esqueceu, jamais meu anjo, o teu quarto, tuas coisas continuam do mesmo jeitinho. Feliz aniversário, minha Pérola, eu te amo muito, nunca perdi as esperanças de te encontrar, a mãe, o pai, teus irmãos, nós nunca desistimos de você — seu queixo tremia, assim como sua fala, e à nossa volta pude ver várias pessoas com lágrimas nos olhos, assim como eu. — Queria pedir para você que está assistindo, que se tiver alguma notícia, qualquer informação é bem-vinda. Eu sou uma mãe que chora há sete anos, sete longos anos esperando pelo dia que ela vai chegar e entrar pela porta, sorrindo e cantando como sempre fazia, eu creio que um dia hei de ver seu rosto outra vez. Peço que me ajudem a encontrar minha Pérola, mas por tudo o que é mais sagrado, não passem trote, isso dói demais, eu...
Naquele momento ela não mais conseguiu falar, desabou em um choro sentido que contagiou uma boa parte das pessoas ali presentes.
— Eu queria fazer um alerta a você que passa trote em uma situação tão séria como essa. Não se trata apenas de uma cadeira vazia na mesa, é a ausência de alguém que se ama; a angústia de não saber como está, onde está. São anos chorando a falta de uma jovem que tinha uma vida inteira pela frente e simplesmente desapareceu. O noivo nunca viu sua noiva caminhar rumo ao altar, a família, os amigos, essa mãe; ela morre um pouco a cada dia porque nenhuma mãe se prepara para algo tão cruel como a perda de um filho. Essa mãe merece saber a verdade, ela precisa de paz, então faço um apelo. Se você conhece essa moça — Caio mostrou a foto para a câmera. — Se você estiver me vendo Pérola, ou alguém a conheça, por favor, eu peço, por favor, mande notícias para que essa família viva em paz.
— Eu não aguento mais! — Soraia explodiu em lágrimas.
— O que foi, filha? — minha mãe a abraçou.
Naquele instante todos os olhares se voltaram para ela.
— Mãe me perdoa, sei que é errado, mas eu menti. Disse à polícia que não sabia de nada, mas eu sabia. Foi por minha causa que se conheceram, eu sou a culpada de todo esse sofrimento.
— Filha, o que está dizendo é muito sério, você tem certeza? — meu pai perguntou.
— Acho melhor conversarmos em particular — Caio desligou a câmera e foi se levantando.
— Não, eu preciso falar, me deixe botar para fora o que estou sentindo, senão vou explodir! — ela dizia aos prantos.
— Soraia, vamos lá para casa conversar? — pediu Ian, diante do tumulto que se formou.
— Ela já começou, agora termina! — disse uma voz feminina que não percebi de onde veio.
— Ela está nervosa, e... — Caio ia dizendo, mas se calou ao perceber que Soraia não iria a lugar algum, pois estava se abrindo ali mesmo sob o olhar atento da nossa comunidade.
— Conheci o João pela internet, não sei se é o nome verdadeiro dele, me lembro que seu apelido era Cobra. Ele viu minhas fotos, disse que eu tinha porte de modelo e me fez uma proposta para fazer um book fotográfico. Fiquei toda animada para fazer um ensaio cigano, sempre quis fazer um book profissional, mas meus pais não deixaram, então desisti.
Meus pais se entreolharam, eu sabia que se lembravam dessa passagem, também me lembrei, afinal, quase caí no conto da agência de modelos na mesma época. O cara com tatuagem de cobra no braço entrou em minha rede social, dizia que estava procurando uma modelo cigana, na época eu tinha doze anos e mal sabia usar a Internet. Ele disse que faria uma participação em uma novela, conversávamos em segredo, e como meus pais não deixaram a Soraia participar, eu nem comentei que também havia sido convidada. Para ser sincera, nem me lembrava mais disso.
— O que aconteceu depois? — Caio perguntou à Soraia.
— Ele me mandava mensagens com fotos das modelos, pedia foto minha, dizia que ia fazer muito sucesso e que era normal os pais não aceitarem no começo, mas que depois do trabalho pronto iam acabar cedendo. Fiquei iludida, queria muito sair naquelas revistas, participar de novelas, era meu sonho.
— Eles usam essas artimanhas para convencer as meninas, mesmo — Caio afirmou.
— Ele disse que procurou modelos no país inteiro e que só eu me encaixava no perfil que queriam, então resolveu vir me conhecer pessoalmente — Soraia apoiou os cotovelos nos joelhos e entrelaçou os dedos nos cabelos, puxando com força enquanto chorava. — Eu disse onde estudava, e ele foi até o colégio me encontrar. Pérola estava comigo, matamos aula e foi nesse dia que ela conheceu o Fênix. Nem sei se eram mesmo irmãos, só sei que esse Fênix se encantou pela voz dela e disse que poderia ajudar a gravar algumas músicas e ser famosa. Pérola também se encantou por ele e começaram a se falar por mensagens, até que decidiram fugir.
— Você também se envolveu com um deles, filha? — meu pai, que também a amparava, perguntou.
— Não, mas apoiei o envolvimento dos dois. Ela estava tão feliz, o Fênix disse que seria seu empresário, eu via suas mensagens, era muito atencioso com ela, um verdadeiro príncipe encantado, como Pérola dizia. Ela te amava, sim, Wlad, mas ele a encheu de promessas, ofereceu um mundo completamente diferente do nosso, acabou virando a sua cabeça.
— Então ela não foi levada à força? — Ivan perguntou, visivelmente nervoso.
— Eu não sei.
— Como não sabe? — ele levou as mãos até a cabeça. — Vocês não estavam juntas?
— Não, ela terminou a prova antes de mim e saiu da sala. Essa parte eu não menti, realmente não estávamos juntas.
— Ela não te disse nada, vocês não se desgrudavam — insistiu Ivan.
— Não, ela só deixou a sala e sumiu. Quando saí, eu fiquei preocupada, comecei a procurar, mas não a encontrei, só ouvi os rumores de que ela havia sido obrigada a entrar em um carro preto.
— Por que você não disse a verdade, Soraia? — meu pai perguntou, com uma voz calma, apesar de seu semblante sério.
— O Cobra me mandou um recado por uma garota estranha, disse que Pérola estava com seu irmão, e que estava bem. Eu pensei que realmente estava, por isso segui o seu pedido de não contar a ninguém.
— E vocês não se encontraram mais, você e o Cobra? — Caio perguntou.
— Não, mas o carro preto começou a me seguir, o motorista era um cara estranho com touca de motoqueiro, daquelas que só aparecem os olhos. Eu sempre desviava, entrava em algum lugar movimentado, vivia com medo, foi por isso que pedi para mudar de colégio, quase desisti de estudar. Desde então só saio da fazenda se for necessário, e ainda assim, sempre acompanhada.
— Misericórdia — disse minha mãe com um semblante muito assustado.
Soraia secava as lágrimas que desciam pelo seu rosto, transmitindo o peso da culpa que a consumia, enquanto alguns a olhavam com desconfiança.
— Você não poderia ter omitido algo tão sério, filha — disse meu pai.
— Eu vi com meus próprios olhos como o Fênix tratava a Pérola, ele parecia gostar muito dela, não achei que fosse uma ameaça. Durante todo esse tempo torci para que estivesse vivendo o conto de fadas que tanto queria, só que ela não ficou famosa, não sei o que aconteceu. Juro que não sabia que ela poderia estar correndo perigo, pai.
— Minha Pérola, o que aconteceu com ela! — a cigana Carmencita desabou nos braços de Ivan.
— Me perdoa, tia, não fiz por mal, eu juro!
— Soraia também estava na mira deles — afirmou Caio —, e esse testemunho coloca Pérola oficialmente como vítima de tráfico humano.
Até aquele momento haviam suspeitas, suposições, mas parecia que todos estavam em negação. Só que agora era como se um tsunami de emoções invadisse o acampamento, o choque foi geral. Meus pais levaram Soraia consigo para minha casa na tentativa de acalmá-la, ela tremia e soluçava sem parar. Carmencita também precisou ser consolada, de todos era quem mais sofria ali. Caio diante dos burburinhos pediu que não brigassem com minha irmã, ela vinha enfrentando um trauma muito sério que precisava ser tratado, e agora teria que ser ouvida pela polícia, visto que omitiu alguns fatos, o que complicaria ainda mais seu estado emocional.
— A irmã de um amigo caiu no golpe da agência de modelo também, faz dez anos que ele busca por justiça, os caras são muito espertos, não deixam pistas — ele afirmou.
— Se ela tivesse falado antes, minha prima já teria sido encontrada — Vivian protestou.
— Se mentiu é porque sabia que estava fazendo coisa errada — disse outra cigana em meio a tantas vozes que se misturavam como ecos em minha cabeça.
— Já chega! — a voz do Ian fez com que todos se calassem. — Não é hora para julgamentos, ninguém sabe se mudaria alguma coisa. A garota sofreu um trauma, vive com medo, é óbvio que não fez por mal. Ela e a Pérola eram como irmãs, a única amiga que Soraia tinha, então se atenham a cuidar de suas vidas e parem de falar o que não sabem!
— Calma, meu jovem — meu avô tocou o ombro de Ian, que engoliu em seco com lágrimas nos olhos.
— Minha família está quebrada, minha mãe está sofrendo, respeitem, não fomentem uma confusão desnecessária.
— Soraia também é uma vítima, não se esqueçam disso — Caio acrescentou. — Poderia ter sido qualquer uma de vocês, então mais empatia e menos julgamento.
— Você fala igual policial — disse o cigano Venâncio. — Sabe de alguma coisa, meu jovem?
— Adoraria saber, mas sou apenas um estudante de jornalismo, que como ser humano, se compadece com a dor alheia.
— Está certo — o cigano concordou, mas o burburinho não cessou.
— Se ela tivesse contado a verdade, a polícia já teria encontrado minha prima — Vívian saiu aos prantos.
— E se minha irmã estiver viva? São sete anos de tortura na mão dessa gente, Soraia poderia ter ajudado! — agora foi a vez de Ivan sair revoltado.
Travei no lugar, vi minha irmã sendo levada praticamente entregue nos braços do meu pai, o choro da família, os amigos, mas o que mais me marcou foi o desespero daquela mãe. Era assim que minha mãe ficaria se eu fugisse? Não, eu não poderia causar tanto sofrimento, mas se fosse banida ela estaria consciente de tudo. Uma confusão de sentimentos tomou conta de mim, eu já não conseguia raciocinar sobre o certo e errado, era como se estivesse em um mundo paralelo vendo tudo em câmera lenta, demorei a estabilizar.
— Nat, eu não posso ir até lá, mas você pode — disse o Crístian se sentando ao meu lado em meio àquele tumulto. — Ela está nervosa, deve estar se sentindo perdida e precisa de apoio.
Eu o olhei em silêncio, ainda tentava assimilar tudo o que estava acontecendo à minha volta.
— Natacha, você me ouviu?
— Duas filhas — falei olhando para minhas próprias mãos.
— O quê? — Cristian perguntou.
— A minha mãe, ela vai perder as duas filhas.
— Ela não vai porque estaremos por perto, é uma situação diferente, sua mãe não poderá se aproximar por conta da tradição, mas vai saber que estão bem, ao menos a Soraia estará porque dou a minha vida por ela.
— Você a ama de verdade — constatei ao ver, não só o brilho das lágrimas brotando em seus olhos, como a dor na inquietação de seus gestos e o peso de suas palavras.
— Demais, Natacha, estou me segurando para não ir até sua casa e a abraçar agora. Ela sempre se acalma quando faço isso, é torturante saber que está sofrendo e não posso sequer chegar perto.
— Você sabia?
— Não, e não vou julgá-la por não ter me contado, ela precisa de apoio agora. Minha pequena está sofrendo sem mim, Nat, eu posso acalmá-la, queria poder ir até lá, droga.
— Minha irmã tem sorte por ter você, Cristian.
— Eu é que tenho por ela me amar. Ah, Nat, está doendo tanto!
— Ela está bem — disse meu irmão que acabou ouvindo a conversa. — A mãe está com ela agora, e nós dois precisamos conversar.
— Agora mesmo — Crístian se levantou. — Natacha, quando estiver com ela, a abrace forte e afague seu cabelo, diga que a amo muito, e que nada, nem ninguém nessa vida, irá nos separar.
Alejandro se manteve firme, de cenho franzido nos observando, mas o jovem não ligou para sua presença, ele estava realmente preocupado com ela, me fez prometer que não a deixaria sozinha e que o manteria informado sobre qualquer coisa que acontecesse. Samuel me olhava de longe, percebi que estava inquieto, mas achei melhor manter distância, inclusive me desviei quando tentou uma aproximação; Vívian não desgrudava os olhos de mim e eu não precisava de mais confusões do que já tinha.
— Talvez isso tudo seja coisa da cabeça dela — disse o cigano Venâncio, quando me aproximei dos demais. — A menina não está bem, pode confundir realidade com fantasia, o rapaz aí sabe disso. Um homem com gorro de motoqueiro dirigindo um carro preto pela rua e ninguém viu?
— É mais comum do que parece — Caio afirmou.
— Andei por muitos lugares e nunca vi um trem desse, mas espero que encontrem os culpados — o cigano se levantou. — Vou dormir que tenho que trabalhar amanhã.
— Fico pensando nas minhas filhas — Juliano, irmão de dona Virgínea, comentou.
— Ué, tio, não tinha só a Daia? — perguntou Samuel.
— Eu descobri que tenho uma filha de dezessete anos, vou atrás dela no Paraná.
— Eita, tio, como é isso?
— Foi um deslize do passado, eu só soube de sua existência agora. O que é uma pena, porque perdi todo o seu desenvolvimento, não sei praticamente nada dela.
Eu e Ian trocamos olhares e me veio a imagem da Bruna em minha cabeça. Ela não queria falar comigo, e estava doendo muito, mas, ao mesmo tempo, era um alívio, eu não sabia como olhar em seus olhos sem dizer a verdade.
— Nas minhas andanças por esse país afora, eu sempre levo uma foto da prima e mostro, nunca consegui descobrir nada, é como se tivesse evaporado — disse William.
— A verdade aparecerá, mais cedo ou mais tarde, pode acreditar nisso — Caio afirmou guardando seu equipamento.
Aquela noite que se iniciou com risos e descontração tinha tudo para ser perfeita, mas terminou infelizmente com lágrimas e sofrimento. Crístian ficou desolado por não conseguir ver Soraia, cheguei a pensar que iria revelar tudo ali mesmo só para poder ficar ao lado dela naquele momento, mas meu irmão conseguiu remediar a situação. Alejandro deixou claro que não compactuava com o envolvimento dos dois, mas respeitaria seus sentimentos.
Fui até a casa da cigana Carmencita para ver como estava, me sentia mal por ela, e quando deixei seu quarto me deparei com Ian no corredor, ele acenou com a cabeça e tentou passar por mim, mas segurei seu braço; o abraço veio espontaneamente. Ele me apertou em seu peito, forte o suficiente para sentir as batidas de seu coração, e durante aquele abraço, não dissemos uma única palavra, nem precisava, eu só queria poder lhe acolher naquele momento, por fim, a acolhida fui eu.
— Obrigado — ele deixou um beijo em minha testa antes de se afastar.
— Não sou perfeita, Ian, mas sou tua amiga, mais do que isso, e te quero muito bem — sorri sincera. — Se cuida, tá?
— Eu te quero muito bem também — ele acariciou meu rosto com a palma da mão. — Minha Natacha.
Senti meu coração disparar imediatamente com aquele gesto, ele respirou fundo, então seguiu seu caminho rumo ao quarto de sua mãe.
— O que foi isso? — murmurei me encostando na parede do corredor.
Levei as mãos até o peito e senti as batidas do meu coração acelerado, estava cada vez mais afundada em um abismo no qual talvez não conseguisse sair. Achei que soubesse o que estava fazendo e agora olhava para o anel no meu dedo, me sentindo a pessoa mais suja da face da terra por não saber o que fazer com dois amores distintos habitando ao mesmo tempo, em meu coração.
Eu merecia ser jogada no mundo.
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