Destino Implacável
O pai foi morto por tiro à queima roupa. Sendo preto, pobre e morador de favela: é bandido, né? então desceram munição sem ao menos notar a bolsa com o enxoval que estava indo levar para a mulher, que acabará de entrar em trabalho de parto na maternidade. A mãe teve depressão pós parto, sem marido e sem família; largou Antônia com uma vizinha e nunca mais voltou.
Antônia cresceu. Quinze anos. Não estuda. Nunca estudou. A vizinha que cuidava dela morreu ano passado. Então segue sua vida sozinha, mas a menina é esperta. Aprendeu a ler sem frequentar a escola, faz bico de diarista e ajuda no projeto social do morro onde mora. Esperta né? Que nada! Caiu na lábia do playboy de asfalto.
A burguesia diz que favela é lugar de bandido. A maioria é preto ou quase preto, também tem os quase brancos pobres que de tão pobres são tratados como quase pretos. Essa mesma burguesia não sabia que um playboy, quase branco bem de vida que de tão bem de vida era tratado como branco, subia o morro procurando um beco onde um vapor gritava o que ele tanto queria ouvir: "Pó de 20, de 15 e de 10... vem viciado!"
Poxa burguesia, favela não é só lugar de bandido, também é lugar do Henri; um burguês viciado que saía do asfalto e subia o morro para cheirar uma carreira de pó e se deitar com uma preta de quinze anos. Antônia, que acreditou na promessa de uma vida melhor que ele a prometeu. Mal sabia ela que Henri de vinte e três anos, era casado e sua esposa esperava o primeiro filho.
— Você vai voltar amanhã? — A menina que tinha os olhos brilhando, perguntou.
— Claro, minha nega — ele respondia sempre que ela perguntava.
E ele voltou sim. Muitas outras vezes, durante meses. Até que...
— Grávida? Você não me disse que estava tomando anticoncepcional? — Gritou.
Pobre burguês... não sabia que assim como ele, pílula também falha.
— Sim, meu amor, mas aconteceu.... pense pelo lado bom, agora somos três — ela se aproximou dele e pegou sua mão, passando em sua barriga que logo começará a crescer.
Henri a empurrou e passou as mão no rosto, nervoso. Se envolver com uma menor de idade, moradora de favela e ainda engravida-la? Isso era inadmissível.
— Minha família não vai aceitar isso. Eles não podem nem sonhar que eu me envolvo com uma negrinha de favela. Não posso ter um filho com você — ele gritava descontrolado sem se importar com as lágrimas que desciam intensas pelos olhos de Antônia.
— Isso? É nosso filho, Henri. Qual é o problema de ter filho com uma negra? Somos o país da miscigenação... isso é lindo.
Pobre favelada... não tinha estudo, mas acreditava na balela da "linda miscigenação".
A miscigenação nasceu lá trás quando os portugueses estupravam as índias e foi se propagando aos senhores de fazendas que abusavam de suas escravas negras ou quase negras, algumas brancas, mas por serem filhas de negras como negras eram tratadas.
Miscigenação, né? Cultura do estupro tá aí desde que Pedro Álvares Cabral pisou seu pezinho numa terra que já havia sido descoberta. 2018. Século 21 e cultura do estupro é coisa de feminista que deveria tá lavando louça? Ata.
"Ele não quis saber e ainda foi mais além"
— Eu não quero saber! Você vai tirar esse filho! — Henri vociferou — Tirou algumas notas de cem da carteira e colocou em cima da bancada.
— Henri... — ela se aproximou dele, tentando o acalmar, mas ele a empurrou contra a parede.
Antônia caiu e permaneceu no chão, chorando. Ele pensou em ir ajudá-la, mas desistiu e voltou-se para a porta.
— Eu vou embora — saiu, batendo a porta e largando a menina ali. Grávida. Menor de idade. Desolada.
— Você vai voltar amanhã? — Ingênua, ela perguntou.
Ele não voltou.
"Sem base, sem estrutura, sem rumo, sem direção"
Antônia que amadureceu cedo demais, virou mãe aos dezesseis. Abortar não era uma opção para a jovem. Colocou na cabeça que criaria seu filho e não o abandonaria. Teve ajuda do projeto social, de vizinhos e amigos. Gravidez de risco, pois seu corpo não era desenvolvido o suficiente para suportar uma gestação. Sofreu de dores durante os nove meses em que esteve grávida.
Passou pelo descaso do hospital público. Pacientes demasiados para atendimento de péssima qualidade.
Ninguém a acompanhou na hora do parto. O exame de toque foi dolorido e coletivo, pois os estagiários deveriam aprender na prática, né? Antônia se sentiu uma cobaia humana. Não teve apoio para a coluna e nem para as pernas. Chegaram a subir em cima dela e apertar a barriga para forçar o neném a sair. A jovem mal respirava, pensava que não iria aguentar.
Gritava de dor. Não deixaram ela ficar em outra posição.
"Na hora de fazer foi bom, né?" "Para de escândalo" "Melhor fazer mais força se quiser que seu filho saia vivo" — o médico dizia a todo momento.
O bebê estava quase descendo, mas o médico tinha pressa. Duas enfermeiras faziam força na barriga de Antônia, que berrava em desespero de dor e medo de que algo pior acontecesse. Ele optou por episiotomia. Um corte desnecessário e sem consentimento feito na vagina da menina para facilitar a saída de seu filho.
Gabriel nasceu muito bem de saúde e a mãe sobreviveu.... lacerada e com quinze pontos no rasgo que foi feito nela.
Antônia criou seu filho da melhor maneira que pôde. Ele frequentava o brizolão da comunidade quando tinha aula. A maioria das vezes a escola não abria por falta de merenda, água, condições precárias ou porque estava tendo troca de tiro nas ruas. Despertador de favelado é polícia invadindo suas casas, é tapa na cara, é o estrago feito por uma Glock com pente de 30.
Aos quinze anos, Gabriel acordou com o barulho da porta da sua casa sendo arrombada. Reviraram as gavetas, rasgaram o colchão, apontaram a arma para o rosto dele e de Antônia.
— Tem nada aqui não seu polícia — ela disse com medo e tremula, enquanto assistia a bagunça que faziam em sua casa, procurando algo que não tinha ali.
— Não se mete no meu trabalho, dona.
— Somos inocentes senhor — Gabriel falou com a cabeça baixa.
— Preto e inocente? — um policial falou alto e o restante riu — Ou tu é preto ou é inocente muleke, os dois não rola!
Ele jogou Gabriel contra a parede e começou a revista-lo. Não acharam nada, mas não sairiam dali sem levar um detido. Uma pistola e algumas embalagens de droga apareceram num passe de mágicas. Não era do menino, mas quem tem mais voz? o policial "fazendo seu trabalho de segurança da sociedade" ou um moleque negro e morador de favela?
— Não incrimina meu filho não, moço. Vocês não podem colocar isso como se fosse dele - Antônia tentou soltar o braço do filho que já estava sendo algemado.
Como resposta ela recebeu uma bofetada no rosto e o direito de visitar seu filho uma vez por semana durante os quase dois anos que ele esteve detido na Fundação Casa.
Lá dentro Gabriel sofreu violência física e psicológica, maltrato demasiado. Era obrigado a fazer serviços em condições precárias e apanhava dos carcereiros. Chamam isso de reabilitação, mas só fez ele e outros jovens ficarem revoltados com a injustiça do sistema. Escravidão acabou pra quem? se o preto de favela ainda sente a dor do chicote nas costas?
Saiu de lá fugido. Voltou para sua mãe e jurou que daquele dia em diante não abaixaria a cabeça para nenhum fardado que surgisse em seu caminho.
Gabriel caiu no sistema falho. Cansado de apanhar, resolveu bater. Virou estatística. Agora sim ele era preto, favelado e bandido.
Começou como fogueteiro, mas achou pouco, então virou vapor e aos dezoito anos de idade já era gerente geral.
— Sai dessa vida, meu filho — Antônia insistia — não quero ter que te enterrar qualquer dia desses.
— Todos nascemos para morrer mãe.
Ele virou patrão, mandava e desmandava. Estabelecia as ordens e fazia o possível para sair como o rei da favela. Maldade com morador era proibido. Gabriel era idolatrado.
Seis e meia da manhã. Tiro comendo solto, fogos avisando que o morro estava sendo invadido. Antônia segurou o filho pelos braços e implorou para que ele não saísse. Mas ele foi.
Lá em cima na boca de fumo ele soube que cinco dos seus amigos já estavam mortos jogados nos becos em que cresceram brincando, outros treze haviam sido presos, dois inocentes morreram e quatro estavam feridos. Todos negros ou quase negros, também tinham os quase brancos pobres, que de tão pobres como pretos eram tratados.
Voltando pra casa ele viu um policial em frente a porta da sua casa, caído no chão com um ferimento de tiro na coxa. Antônia pressionava a mão no ferimento a fim de diminuir a hemorragia. Tanto o olho dela quanto o do policial estava vidrado um no outro. Dá janela os moradores observavam aquela cena sem entender nada.
"Destino implacável, desvendou seu segredo"
— Se afasta desse comédia, mãe! — Gabriel ordenou, apontando a arma para o rosto do policial.
— Não atira meu filho! — tentava impedir, mas o menino estava determinado.
— Sai da frente mãe... entra pra senhora não ver isso! — destravou a arma e se aproximou.
Antônia que desde que nasceu apanha da vida, era uma mulher sensata e de coração bom apesar de tudo. Antônia que passou necessidade, criou seu filho sozinha e o perdeu para o tráfico. Ah, Antônia... refém do destino e fadada ao caos.
Segurou o braço do filho e olhou firme em seus olhos. O coração dela temia o que estava por vir.... o passado voltando causando dor novamente.
"Você vai voltar amanhã?" — ela relembrou da ultima pergunta que o fez há vinte anos atrás.
E ele voltou.
— Não aperta esse gatilho... ele é seu pai — soltou as palavras com dificuldade.
Gabriel olhou para Antônia e para Henri, que sangrava no chão. Sua mãe balançou a cabeça confirmando que era verdade, lágrimas desciam incessantes. Henri não passava de um homem repleto de arrependimentos e temendo pela sua vida que estava prestes a se esvair pelas mãos do mesmo filho que um dia Henri propôs que Antônia negasse.
abortasse.
matasse.
O menino tremia encarando os olhos do pai, que eram semelhantes ao seus. O rosto se contorceu em um choro de desprezo e dor, as pernas ficaram bambas e o mundo parou de girar. Gabriel vasculhou sua cabeça buscando lembranças da figura paterna, mas não achou, não acharia.
— Ele é seu pai... — repetiu Antônia, segurando o rosto do filho e secando as lágrimas de raiva que teimavam em descer.
Gabriel... que foi marginalizado pela sociedade, que escolheu o caminho fácil, que virou estatística. Gabriel que tinha fama de durão, mas levou uma rasteira da vida. Ah, Gabriel... que viu a mãe batalhar sozinha para cria-lo, que sabia do desgosto que deu para ela.
Henri... que não sabemos nada sobre, pois preferiu fazer-se ausente.
''Mesmo você na vida errada.
Mesmo você no momento de sofrimento.
Há uns 5 segundos de reflexão.
Essa hora, o Deus misericordioso
habita dentro do teu coração."
— Só não te mato porque eu não sou igual ao senhor — Gabriel abaixou a arma e seu pai, que estava estático assistindo a tudo aquilo, não conseguia tirar os olhos do filho quase preto, da cor do pai, mas pobre... então como preto o filho foi tratado.
destinado.
condenado.
Em menos de cinco segundos, Gabriel foi alvejado pelas costas por um outro policial que Henri acionou pelo rádio. Morreu com quinze tiros; a idade que sua mãe tinha quando aquele playboy entrou em sua vida pela primeira vez.
O passado não conta. A falta de oportunidade muito menos. Afinal de contas, bandido bom é bandido morto, não é mesmo?
----------------------------------
Conto baseado na música Destino Implacável do MC Andrezinho Shock.
Quer ver uma música que você gosta retratada como conto? Deixe o nome aqui que eu vou ouvir e tentar vivenciar! <3
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro