Um par de jarros
Tanto Ofélia quanto Marcel tinham se esquecido que naquela mesma noite era o sarau dos Lobato. Quando chegaram à casa de Ofélia, encontraram Mirtes já quase pronta para a ocasião social.
— Não creio que olvidamos! — Ofélia falou encostando uma mão no rosto.
— Com sua licença, se quero chegar a tempo de me apresentar com a senhorita Mirtes é melhor que me apresse. — Marcel falou enquanto já saía do cômodo.
Nem mesmo alugou um coche, foi correndo para a própria casa.
— Ofélia, sua aparência está péssima. — A irmã mais nova apontou um espelho de mão para o rosto da outra.
A mais velha apertou os lábios enquanto pensava que é dessa forma que uma pessoa fica após colocar mais sete mortes na conta da própria alma, mas preferiu se calar. Ademais, também estava cansada e com o traseiro dolorido da viagem a galope.
— Irei me aprontar. — Foi o que a mulher disse antes de se dirigir ao próprio quarto onde a água quente já esperava.
Ofélia não era dada a muitas vaidades, portanto, se arrumou em seu mesmo estilo simples de sempre. O único mimo era usar um vestido branco, o mais bonito que tinha naquela cor. Apesar do dia carregado havia ainda em sua alma o frescor da noite passada com Marcel.
Horas mais tarde, no sarau, as senhoras e os senhores estavam sentados em algumas fileiras de cadeiras organizadas no grande salão da casa dos Lobato. Era uma noite particularmente quente e quem tinha escolhido mal as roupas suava em bicas, principalmente as senhoras sem leque. O que não era o caso de Ofélia que, em uma de suas exceções, usava um vestido de tecido suave e branco com mangas curtas. A pele ardia um pouco devido à exposição do sol da tarde, chegava a estar vermelha.
Tereza Lobato conversava com Mirtes, que por sua vez estava em pé na frente da cadeira onde ficaria sentada durante as apresentações. A Weirtz mais jovem retorcia as mãos e olhava sempre para a porta em sinal de nervosismo, já que tinha treinado seu número com Marcel e ele ainda não chegara.
— Repito que é um prazer tê-la aqui, senhorita Weirtz. — Tereza Lobato, filha dos anfitriões, derramava suas gentilezas sobre Mirtes.
— Você é sempre muito gentil, senhorita Lobato. Espero que possamos tomar um chá em breve. — Mirtes fez seu melhor para sorrir.
— Certamente pode contar comigo. Também pode chamar-me pelo meu primeiro nome. — Tereza pediu. Queria ser amiga de Mirtes e não importava o que as outras diziam.
— Igualmente. Chame-me somente de Mirtes, ou ficarei de mal de ti. — A mocinha gostaria mesmo de ter a amizade sincera de Tereza, apesar de saber que provavelmente logo os pais dela fariam de tudo para separar a ambas.
Ofélia observava a conversa temendo pela decepção de Mirtes. Gostava de Tereza, a franqueza dela estava aparente nos olhos grandes e castanhos.
— Viu a ordem de apresentações do sarau? —Tereza questionou.
— Como não? — Mirtes replicou. — Se eu precisava saber em qual momento seria a minha...
— Sua e do senhor Desfleurs. Não sabia que são tão amigos. — Ofélia esticou um bico quando ouviu Tereza falar sobre Marcel.
Como ela poderia saber algo assim se nem mesmo Mirtes tinha certeza? Marcel simplesmente entrara em suas vidas com uma rapidez impressionante e ali estava se instalando com seu jeito descarado. A habilidade que ele tinha de conseguir o que queria sem precisar forçar algo era realmente impressionante.
— Senhor Desfleurs é uma pessoa muito gentil, caso ainda não o tenha conhecido com mais calma, posso apresentá-los. — A mocinha ofereceu.
— Será fantástico! — Tereza chegou mais perto de Mirtes para que suas palavras não fossem ouvidas por aqueles que estavam por perto. Ofélia prestou ainda mais atenção, mesmo se fingindo de desinteressada. — Ele é um homem cheio de garbo, não é?
A moça deu um sorriso contido e os cantos dos lábios de Ofélia se curvaram para cima.
— Oh sim! — Mirtes concordou. — E bem mais velho que nós.
— Moças de minha idade se casam com homens até mesmo mais velhos que ele. — Tereza disse da altura de seus quinze anos. E ela tinha razão. — Se vamos ter que fazer isso para cumprir com as ordens de nossas famílias, creio que deva ao menos ser com alguém agradável.
— Minha irmã não me obrigará a me casar com um velho. — As palavras saíram nervosas da boca de Mirtes. A simples menção daquele sacrifício já fazia com que se arrepiasse inteira.
— Nem com um velho e muito menos com um novo. — Ofélia afirmou com expressão de indiferença. Ambas das meninas olharam para ela, mas a mulher se fez de dispersa.
— De toda forma creio que o senhor Desfleurs já tem alguém em vista. — Mirtes falou como quem não quer nada.
— Quem? —Tereza arregalou os olhos. Não fazia ideia de quem poderia ser.
— Não posso dizer. Meus lábios estão trancados. — Mirtes se deu conta da bobeira que fizera ao mencionar aquilo. Tereza com certeza assuntaria com as outras moças.
— Está bem. Se desejares fazer mistério, que o faça. — A moça dos Lobato ergueu as sobrancelhas. — Mudemos o tópico, então. Vejo que a modista tem feito um belo trabalho com suas vestes. Que belo vestido, Mirtes.
— Gostou? Vim de verde para combinar com o senhor Desfleurs, que disse que viria usando essa cor também. — A moça revelou.
Ofélia se perguntou o que ambos haviam aprontado, já que ela não fazia menor ideia.
— Vão ficar como um par de jarros. — Ofélia resmungou. O traseiro doía sentado naquela cadeira e ela queria ir embora.
— Seremos os mais belos jarros. — Marcel falou surgido do nada. Nenhuma das três tinha percebido sua chegada porque ele não entrara pela porta principal.
A mais velha das Desfleurs deu um salto na cadeira ao ouvi-lo e a mais nova respirou aliviada. Tereza Lobato quase suspirou.
Só depois de alguns segundos as três perceberam que ele estava vestido como um estudante de séculos antes. Mirtes entendeu a proposta, apesar de tudo as cores das roupas dele combinavam com as dela. Ofélia e Tereza não entenderam nada.
— Ora, vejam só, o homem está louco. — Disse a Weirtz mais velha.
— Aquele que desdenha tem vontade de adquirir, já disse La Fontaine. — Marcel provocou.
A mulher ia contestar, mas os anfitriões chamaram os convidados para que tomassem seus lugares, pois a apreciação das apresentações iria começar. O que não faltaram foram poesias, monólogos, cantigas, lundu-canção – que gerou burburinho – e a apresentação de viola de Igor Moreira. Ofélia notou que o rapagão não cessava seus olhares na direção de Mirtes enquanto se apresentava.
Chegou então vez de Marcel e Mirtes. Ambos, apesar de estarem combinando nas cores, estavam como grande contraste em arrumação e moda. Marcel parecia maltrapilho enquanto Mirtes era a fina flor do luxo.
Assim que começaram seu número foi possível perceber que era uma apresentação de humor, mas que também funcionava para o desconforto de muitos moralistas.
Apresentaram um poema de Gregório de Mattos, cujo nome, Ofélia conhecia bem. Descreve a Vida Escolástica, era como chamava o poema curto. O homem dizia um verso e a mocinha dizia o seguinte, colocando grande carga de drama nas palavras ao ponto de soarem mais engraçadas do que já eram. Pelo menos Ofélia achava engraçadas, mas muitos já torciam seus narizes para a escolha.
— "Mancebo sem dinheiro, bom barrete". — Marcel declamou puxando os forros dos bolsos para fora.
— "Medíocre o vestido, bom sapato". — Mirtes apontou para a roupa e depois para o sapato do homem enquanto fazia cara de desaprovação.
— "Meias velhas, calção de esfola-gato". — O homem apoiou as costas de uma mão sobre a própria testa.
O público se riu muito, até que chegou à parte da "putinha aldeã" e muitas senhoras colocaram as mãos sobre o peito enquanto olhavam diretamente para Ofélia. Como se estivessem dizendo o quanto ela era uma péssima irmã de deixar que a mais jovem tivesse tais modos de apresentar aqueles ultrajantes versos.
A mais velha queria arremessar Marcel de um telhado por ter feito aquilo sem consultar, mas o repreenderia longe de Mirtes porque ela parecia, como poucas vezes na vida, genuinamente feliz.
De um lugar nas últimas fileiras, Honorinha Cunha observava Mirtes e Marcel, com clara desaprovação.
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La Fontaine: Marcel se refere à fábula A Raposa e as Uvas de Esopo, cuja autoria foi, por muito tempo, atribuída a Jean de La Fontaine. Na fábula a raposa tenta alcançar um cacho de uvas que está muito longe de suas patas e quando não consegue inventa pretextos para desdenhar das uvas. Daí alguns ditados tais como "quem desdenha quer comprar". Fábulas são histórias curtas, geralmente os personagens são animais e elas sempre contêm um fundo moral.
Esopo foi um autor cuja origem ainda é contestada, apesar de ser aceita a teoria que ele seria da África Subsaariana devido aos animais que aparecem em suas histórias de caráter moral e alegórico, como alguns desses animais podemos citar leão, lebre e raposa. A fábula A Raposa e as Uvas é atribuída a ele e La Fontaine só teria reescrito ela em um compilado junto com histórias de própria autoria. O estilo de La Fontaine se assemelha em partes ao de Esopo, em quem possivelmente encontrou inspiração.
Lundu-canção: Lundu, landum, lundum ou londu são os nomes comuns para essa dança e canto de origem africana, possivelmente introduzida no Brasil por pessoas escravizadas que foram trazidas de Angola. Apesar de ser comum no Brasil já no século XVIII, apenas no século XIX o lundu foi considerado como um ritmo brasileiro, antes era tido como uma dança africana no Brasil.
Esse gênero musical tinha geralmente forma de sátira, costumava ser mordaz e sensual, executado ao som de batuques. No final do século XVIII o lundu acabou sendo adaptado e se tornou um tipo de música urbana muito comum no país, ainda acompanhada de versos humorísticos e lascivos. Tornou-se uma popular dança de salão. Foi o primeiro gênero musical a ser gravado no Brasil e a música Isto é Bom, na voz de Baiano, ficou marcada na história.
Um dos ritmos brasileiros que tem lundu em seu DNA é o maxixe.
Descreve a vida escolástica: Mancebo sem dinheiro, bom barrete,/ Medíocre o vestido, bom sapato,/ Meias velhas, calção de esfola-gato,/ Cabelo penteado, bom topete.// Presumir de dançar, cantar falsete,/ Jogo de fidalguia, bom barato,/ Tirar falsídia ao moço do seu trato,/ Furtar a carne à ama, que promete.// A putinha aldeã achava em feira,/ Eterno murmurar de alheias famas,/ Soneto infame, sátira elegante.// Cartinhas de trocado para a Freira,/ Comer boi, ser Quixote com as Damas,/ Pouco estudo, isto é ser estudante.
Soneto que pode ser encontrado em Obra Poética de Gregório de Mattos.
Gregório de Mattos é um dos mais célebres poetas da literatura brasileira. Seus poemas muitas vezes ácidos, traiçoeiros e desavergonhados que denunciavam a hipocrisia principalmente dos nobres de Salvador-BA eram vistos com maus olhos, mas acabaram tornando Mattos uma referência do período barroco no Brasil. Apesar de seus poemas satíricos que lhe renderam apelido de Boca do Inferno, Gregório chegava a escrever sobre temas religiosos e filosóficos.
O soneto escolhido por Marcel e Mirtes satiriza o estudante e filosofia escolástica e sua condição de vida paupérrima, além, é claro, de se dedicar mais às coisas mundanas que ao aprendizado.
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