Capítulo 43
Aconselho ler ouvindo a música ;)
T h o m á z
Ela estava nervosa por dentro. Eu conseguia ler Giennah como a palma da minha mão. E fazia isso sem nem perceber. E isso ainda estava vivo na minha memória. Falar com ela tão próxima de mim era a coisa mais tensa que eu já tinha feito, mas mesmo assim, olhar para os seus olhos, me acalmou. Saber que ela não sabia o nome da minha oficina significava que ela não tinha lido a minha carta ainda, já que eu citei isso. Agora, eu sorria discretamente na sua direção, vendo de longe a sua conversa com o Promotor. Eu sentia tanto orgulho daquela mulher, que isso instantaneamente me fazia feliz, ignorando o lugar e a posição em que eu estava. Ela ainda sentia algo, não tinha como negar. O fato de ela não ter lido a carta até hoje, é o sinal que eu precisava.
Meus pensamentos foram interrompidos pela sua voz que anunciou a sentença de Rato. Olhei para ele, que parecia vermelho, com raiva. Olhei novamente para Giennah. Sorri para ela, mesmo que sua atenção estivesse totalmente voltada para o advogado que retrucava sua sentença. Depois de ter colocado o engomadinho no seu lugar, ela se virou para mim. Permaneci com o sorriso no rosto, tentando mostrar por ele o meu orgulho e dizer que eu acharia justa qualquer que fosse a sentença para mim. Eu confiava nela. Sempre confiei.
Olhando para mim, apenas para mim, ela anunciou:
- Pelas provas recolhidas, se mostrou notório que o réu Thomáz Stanfield declarou de fato o que realmente aconteceu naquela noite. Por isso e pela posição de sua advogada em apresentar os fatos que batem com os registros, o declaro inocente.
Meu sorriso se alargou mais no meu rosto. Vi quando ela sorriu disfarçadamente, mas a expressão sumiu tão rapidamente quanto tinha aparecido. O advogado protestou novamente e Giennah voltou a sua atenção para ele. Ela bateu com o martelo na base de madeira e declarou a audiência encerrada. Eu pensava que ver Giennah apagando um cigarro fosse a coisa mais sexy que eu já tinha visto, até vê-la bater com aquele martelo com o rosto mais sério do que nunca.
Senti a mão da minha mãe na minha, e me virei para ela.
- Você sabia, não sabia? - Perguntei, observando sua expressão com um olhar acusador.
Ela franziu o rosto em falso desentendimento.
- Sabia do quê?
- Que ela seria a juíza do caso.
Minha mãe se levantou e colocou a bolsa no ombro, recolhendo os papéis da mesa.
- Sabia, sim.
Me levantei também e a segui.
- Não sei o porquê de você não ter me avisado.
- Eu não preciso explicar os meus motivos e a minha opinião sobre vocês. Ela já está mais do que clara, Thomáz. Apesar de a decisão ser de vocês, posso interferir um pouco. Eu vou falar com ela, agora. Quer vir?
Engoli em seco, ficando nervoso só de pensar na ideia de estar prestes a ficar de frente com ela depois de dois anos separados. Ela que não saiu dos meus pensamentos nem por um minuto nesse tempo todo. Ela que ainda tinha o meu coração nas mãos. Ela que exibia a luz que eu lembrei para si mesma, que havia dentro dela.
Sem esperar a minha resposta, minha mãe seguiu por um corredor que levava para uma porta lateral da sala em que tínhamos acabado de sair. Eu fiquei parado onde estava, observando minha mãe se afastar. O baque dos seus saltos zunindo repetidas vezes nos meus ouvidos. O som diminuía, e eu só prestei atenção nas batidas agitadas do meu coração, quando o barulho dos saltos parou. Olhei para frente. Giennah saiu pela porta a uns cinco metros de mim. Era surreal que depois de dois anos, dias, horas e segundos que nos separaram, agora apenas poucos metros separavam o meu coração do dela. Caminhei lentamente, olhando para ela. Meus tênis rangiam pelo couro, mas nada era mais alto do que as batidas do órgão no meu peito e os zumbidos elétricos no meu cérebro. Tudo rodava dentro de mim, se mexia, aquecia, respirava, como se estivesse horas debaixo d'água. Ela se tornava mais clara, mais próxima. Não olhei ao redor para calcular, mas eu poderia imaginar que agora apenas dois metros nos separavam. Como em câmera lenta, seu rosto se virou na minha direção, notando pela primeira vez a minha aproximação. Ouvi minha mãe dizendo algo para Giennah, mas nem ela nem eu desviamos o olhar um do outro. Pelo canto do olho, vi quando se afastou, nos deixando sozinhos, mas ao mesmo tempo na companhia de lembranças, sentimentos. Me aproximei mais, diminuindo a distância. Era como se agora estivéssemos em uma bolha só nossa. Eu tinha medo que essa bolha estourasse, e que todos os meus medos reprimidos se revelassem.
Eu não tinha noção de mais nada ao meu redor. Eu não sabia nem se a mulher na minha frente era real. Minha mão formigava querendo desesperadamente toca-la para saber se era minha imaginação ou não, se aquilo era apenas fruto dos meus desejos mais profundos, ou se finalmente os nossos caminhos decidiram se cruzar novamente. Tudo parecia novo, mas ao mesmo tempo iguais para nós dois. Analisei seu rosto, seus olhos, seu nariz, o contorno da sua boca. Seu queixo empinado naturalmente. Eu me lembrava. Tinha decorado tudo. Voltando a analisar seus olhos castanhos, notei que os seus se mexiam, analisando as mesmas coisas em mim. Seu olhar se focou nos meus lábios. Por mais tempo. Vi quando os dela estremeceram, como se no seu íntimo, a sensação viva estivesse se manifestando, assim como acontecia comigo. Abri a boca levemente, mas nenhuma palavra saiu. Nem uma respiração. Nada. Ela tinha roubado tudo de mim naquele momento. E eu dei sem nem tentar negociar. Vi quando seu cenho franziu levemente para um ponto específico na minha sobrancelha, provavelmente algum corte ocasionado pela briga. Eu ainda não tinha me visto no espelho, não tinha dormido muito, e nem tomei um banho desde o dia em que me levaram para a delegacia. Eu não gostava nem de imaginar o meu estado. Ela abaixou os olhos, olhando para as mãos que seguravam a sua roupa preta para entrar no Tribunal. Seus cabelos caíram levemente, para frente do seu rosto, e movido por alguma coisa, talvez saudade, vontade, ergui a mão e afastei a mecha castanha do seu rosto. Ela ergue novamente a cabeça, enquanto eu prendia os fios atrás da sua orelha. Meu polegar roçou, propositalmente, no contorno. Como uma condução elétrica, senti um caminho de arrepios do meu polegar até a minha nuca. Ela fechou os olhos, inicialmente pela sensação, mas depois os apertou com força.
- Thomáz... - Ela sussurrou o meu nome. No instante em que a palavra saiu de sua boca, seus olhos se apertaram mais ainda, como se tivesse cometido um erro. Talvez tivesse cometido, já que meu coração disparou, na expectativa de algo que ele nem fazia ideia do que queria. Eu me obriguei a parar de culpar um órgão, mas eu nada podia fazer se eu estava sendo guiado pelo aperto que eu sentia no coração.
- Giennah... - Falei de volta. Sua boca estremeceu, o queixo formando uma covinha. E então uma lágrima escorreu.
Eu lembro que uma vez eu disse que enquanto ela estivesse comigo, ela estaria segura. Que eu não deixaria nada acontecer com ela. E naquele momento, eu fiz disso uma promessa. Eu odiava ver uma lágrima sequer escorrer do seu rosto desenhado, lindo, delicado, mas forte. Muito forte. Aquela mulher que poderia mostrar ser inabalável, era humana como qualquer um, tinha glândulas lacrimais, sentia, chorava. Naquele instante, eu percebi. Se ela sofrer, eu também sofro. Se ela chorar, eu também choro. E naquele momento, uma lágrima também escorreu pela minha bochecha.
- Giennah... - Disse de novo. Ela abriu os olhos novamente, erguendo o rosto. Em um impulso, seu corpo se chocou com o meu e seus braços envolveram o meu pescoço. Sem pensar duas vezes, envolvi sua cintura, apertando seu corpo no meu, sentindo tudo o que eu pensei que tinha perdido. Ou essa fosse mais uma despedida. Apertei meus braços, com mais força. Mergulhei meu rosto no mar castanho dos seus cabelos, aspirando. Na verdade, era como se aquilo fosse o oxigênio que eu tanto busquei. Ela chorou no meu ombro, encaixando o rosto no meu pescoço. Suas mãos apertavam com força minha jaqueta. Eu não sabia qual sentimento a dominava, mas a única coisa que importava para mim naquele momento, era que o corpo dela estava ali, junto do meu. E o meu estava onde pertencia. Eu duvidei que dois corpos não pudessem ocupar um lugar ao mesmo tempo. Eu duvidei, porque aqui, agora, nossos corpos eram um só, encaixados novamente, em um mesmo lugar.
Ela se afastou de mim, com os fios roçando a minha bochecha, prendendo levemente na minha barba por fazer. Sua mão subiu para a minha bochecha, enquanto a outra agarrou o meu ombro. Fiz o mesmo, erguendo a minha palma para o seu rosto, tocando, verificando se era real. E era, mais do que nunca, aquilo era fodidamente real. Seus olhos estavam selvagens enquanto me encaravam. Marejados, levemente arregalados.
- Por quê? Por que, Thomáz?
Franzi o cenho, sentindo a pele na bochecha se enrugar pela lágrima seca.
- Por que o quê, Giennah?
Sua mão se apertou no meu rosto.
- Por que tudo se tornou tão irônico? Por que eu faço a justiça, mas a vida sempre me devolveu nada menos do que injustiças? Não é justo. Nada nunca foi.
Encostei minha testa na dela. Ela não se afastou, talvez porque estava tão embalada por aquela bolha quanto eu. Percebi que a capa preta que ela segurava estava no chão. Fechei os olhos.
- Eu discordo.
Abrimos os olhos ao mesmo tempo. Aquilo tudo parecendo surreal. Talvez estivéssemos tão exaustos de tudo, que nenhum de nós fizesse com que o orgulho prevalecesse.
- Por quê? - sussurrou.
- Por que a vida já me tirou muitas coisas, Giennah. Muitas. Inclusive a mulher que eu amo. Que eu amei desde o dia em que aceitou subir na minha moto pela primeira vez, mesmo nunca tendo subido em uma. Tirou o meu pai. Tirou a minha consciência limpa, tirou a minha paz. E recebi raiva, ódio, rancor. Fragmentos de uma vida feliz. Mas não importa o tanto que a vida me tirou, a escolha sempre será minha de decidir ser feliz com o que me restou, ou ficar parado, esperando que coisas boas aconteçam comigo. A vida nunca te devolve nada, Jones. Ela apenas dá o que você precisa receber. Se ela te deu um motivo para sentir raiva, é porque você precisa aprender com ela, a conviver com ela, para se preparar pro que está por vir. Só ela sabe. E afinal, ela me deu você. Isso é a maior prova de que a vida nem sempre nos dá coisas ruins que não valham a pena viver.
Naquele ponto, nós dois chorávamos, mas era um choro sem sons, apenas lágrimas transbordando.
- E você está feliz agora? Com outra pessoa que faça valer a pena viver? - indagou.
Franzi o cenho.
- Ninguém além de você poderia me fazer feliz, Giennah.
Ela se afastou, repentinamente criando uma barreira entre nós.
- Você não pode mentir pra mim depois de dizer o que acabou de dizer, Thomáz. Eu vi com os meus próprios olhos, eu vi, naquela loja de ferramentas.
Por um segundo, uma confusão se formou na minha cabeça. Até o dia em que Hannah me beijou, aparecer na minha mente. Franzi o cenho, mais atormentado do que nunca.
- Como...?
- Sim, eu fui atrás de você. - Mais uma lágrima deslizou pela sua bochecha. - Eu fui. Passei dias te procurando, perguntando para cada um que eu encontrava, se conheciam você. Eu me sentia pronta para consertar o que eu tinha quebrado. Mas eu percebi que nem tudo se resolve desse jeito. Eu vi quando ela beijou você, eu vi.
Pensando com clareza, deixei para pensar depois sobre o fato de ela ter ido atrás de mim.
- Sim, ela me beijou, Giennah. Eu tentei seguir, assim como você provavelmente seguiu. Tentamos. Mas ficamos infelizes. Eu sei disso porque de alguma forma eu sentia que você sentia o mesmo que eu. Mas nossas vidas tomaram rumos tão diferentes, que deixamos os nossos sentimentos de lado. Eu nunca esqueci você, então não fale como se eu tivesse feito o contrário.
- E eu não te esqueceria nem se eu quisesse, Thomáz. Mas as coisas sempre funcionaram desse jeito para nós, não? Sentimos, afastamos, pensamos, paramos de pensar. Queremos falar, mas não falamos. Eu sinto que te conheço, mas ao mesmo tempo, ainda parece haver segredos entre nós. Talvez seja isso que nos manteve tão distantes. Eu... sou outra pessoa.
- Eu sei que não.
Suas sobrancelhas se juntaram, iradas.
- Como você pode saber? Como pode ter tanta certeza?
- Porque eu estou vendo, nesse momento, você tentando lutar contra si mesma. Vejo a Giennah que eu deixei para trás, tentando brigar com a Giennah que aprendeu com tudo o que aconteceu. Eu só espero que você não deixe essa batalha dominar as suas decisões. Olhe para nós, aqui, agora. - Estiquei os braços para os lados. - O que mais você espera que aconteça? Eu sei que você quer isso tanto quanto eu. Eu sempre quis. E duvido que um dia vou deixar de querer. Temos mais uma chance bem na nossa frente. Depende de nós dois agarra-la ou não. A decisão é nossa. Eu só sei que não vou agarrar sozinho.
Seu semblante corado se suavizou. Seus ombros abaixaram, como se ela tivesse tirado o peso de uma armadura de guerra, dos ombros.
- Eu só estou cansada. Eu não quero enfrentar mais nada. Eu só quero...
- O que você quer, Giennah?
Seus olhos focaram nos meus, dançando de um lado para o outro. Vi quando sua garganta se mexeu, engolindo palavras.
- Não reprima mais nada. Seja sincera consigo mesma. Comigo. Mas por favor, escolha o que te faça feliz. Pare de pensar pelo outro. Apesar de estarmos em um Tribunal, nossas vidas não funcionam assim. Você não pode julgar sua felicidade como se ela fosse um réu. Eu já sei o que eu quero, e você?
Seus olhos continuaram nos meus, escrutinando.
- O que eu quero? - Suas bochechas ficaram mais coradas. Seu semblante se suavizou, e um esboço de sorriso surgiu nos cantos da sua boca. Apesar de ela demostrar ser tão mais capaz de tomar decisões do que antes, ainda havia resquícios da Giennah que pensava mais nos outros do que em si mesma. - O que eu quero está bem na minha frente, a um palmo de distância.
Um sorriso começou a crescer no meu rosto, mas ainda parecia surreal de mais para ser de verdade.
- E o que você está esperando para agarra-lo? - Perguntei.
Seu sorriso aumentou. Nos aproximamos ao mesmo tempo, sorrindo como dois adolescentes. Não perdi mais nenhum segundo para envolver sua cintura e erguer seu corpo do chão. Senti seu rosto afundar no meu pescoço, com sons de riso próximos da minha orelha.
- Você não me disse o que você quer, Thomáz.
Arqueando as costas para trás, apertei meus braços na sua cintura. Seu rosto se afastou do meu pescoço, me encarando.
- O que eu quero, é que você seja feliz, mas principalmente, que seja feliz comigo.
Ela sorriu. Encarei os seus lábios rosados, convidativos. Lábios que eu não beijava fazia tempo.
- Estou pronta. Agora eu sinto. Tão pronta, que eu quero começar do zero.
- E como você pretende fazer isso?
Ela deslizou dos meus braços, ficando em pé no chão novamente. Ela estendeu a mão para mim.
- Prazer, Giennah Jones.
Sorri para ela e estendi a minha mão, apertando a dela, entrando na sua decisão.
- Prazer, Thomáz Stanfield.
- E você gostaria de sair comigo, Thomáz Stanfield? Quero te conhecer melhor.
Com nossas mãos ainda unidas, assenti.
- Claro que aceito, Giennah Jones. Também quero te conhecer melhor. - Aproximei o meu rosto do dela, olhando sério para os seus olhos. - E isso é uma promessa.
Sorrimos ao mesmo tempo, cúmplices. Meu coração continuava acelerado, desde que nos encaramos pela primeira vez depois de todo esse tempo, naquele Tribunal.
- Você tem certeza, Thomáz? Não há mais ninguém?
- Nunca houve outra pessoa, Giennah. Sempre foi e sempre será você. Não duvide disso.
Ela assentiu.
- Então me mostre o lado que falta em mim.
- O que falta em você?
- Na verdade, eu acho que não falta. Sempre existiu. Eu ainda tenho receio de ser tudo rápido, sem medir nada, mas eu cansei de pensar. Eu finalmente transbordei, e estou pronta para tentar de novo, Thomáz.
Seus olhos escondiam algo, tanto pelas últimas palavras, mas eu descobriria depois.
- Acho que já tivemos tempo de mais para pensar. Precisamos agir. Eu nunca tive tanta certeza de algo. - Sorri, um pouco nervoso, não sabendo exatamente pelo quê.
- Eu te busco às 20h? - Ela sorriu.
- Você me busca?
- Sim. Afinal, eu que te chamei para sair.
Assenti novamente.
- Às 20h, vizinha.
Arrisquei chama-la pelo apelido, pelos velhos tempos. Ela juntou os lábios em uma linha.
- Na casa da sua mãe?
- Sim.
- Estou ansiosa para te conhecer, vizinho.
- Eu posso dizer o mesmo.
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