3 🍁 Matrimônio
DEIXO a xícara cair duas vezes,a água do chá ferve demais e os pães estão queimados em cima da mesa. A idéia de olhar para o meu marido é insuportável.
Daniel toma o café da manhã com serenidade,enquanto tudo pela qual me ocupo quebra,queima ou desmonta.
- O que houve com você hoje, mulher?
Aperto as mãos contra a pia e sussurro uma reza de sabedoria,reza que nos é ensinada desde a infância para que a histeria não sufoque a mansidão.
"Perdoa-me pela raiva
abrande meu coração aflito
Ponha em mim um espírito puro e brando
Ó Grande Céu
uma alma desobediente
só traz desgraça a si mesma
Não me deixe sucumbir
a rebeldia das mulheres vãs."
Mil vezes eu a repito em pensamento,lábios se movendo no calor constrangedor do silêncio,a raiva é uma fumaça que asfixia,os barulhos dele - comendo,mastigando, respirando - incitam os gritos mais altos no céu da garganta.
Respiro fundo,a reza não adianta,mas consigo esconder o tremor nas mãos.
- Ainda estou um pouco debilitada por ontem. - digo,engasgada.
- Hum,é bom que esteja melhor.
Daniel continua mastigando,o viço da massa e o barulho do café descendo por sua garganta,este sossego nos atos dele,o trincar dos meus dentes,a paz de uma manhã que foi maculada.
Depois de vê-lo ontem a noite,tive coragem de perguntar para onde ele tinha ido depois da festividade,e tudo o que recebi em resposta foram um dar de ombros e as palavras "não importa" seguidas da frase "estou em casa agora não estou?"
Lembro que balancei a cabeça em compreensão,voltei a dormir,fiz seu café da manhã quando despertei,preparei a marmita de comida para o trabalho,prendi os cabelos em tranças e vesti o corpete.
Encaixei os pés em todas pegadas,mas eles desviam do caminho,desajeitados e furiosos,fisgando um coração traído até finalmente me alcançar.
Xingue-o,mate-o,chore até secar o corpo. - dizem as vozes interiores,nunca pensei que seria tão difícil ignorar seus apelos.
Recomeço a reza, recomeço de novo,pois não consigo recitar as palavras, recomeço,de novo,de novo e de novo
- Daniel,aonde você foi ontem a noite?
Mas não basta repetir,estou furiosa demais para me preocupar com a brandura.
Ele finge não ouvir,mas bato com os pratos na mesa.
- Estou lhe fazendo uma pergunta! - ergo a voz novamente,ríspida,mas com o queixo apontado para o chão.
Ele para de comer e sinto que seus olhos me fuzilam.
- Pelo visto ainda está delirando de febre..aonde já se viu falar desse jeito comigo?
- Eu só preciso que me diga,uma única resposta.. - suavizo as palavras - ..para que eu possa dormir em paz.
- Vai dormir em paz se não pensar no que faço ou no que deixo de fazer. - Daniel rebate e levanta da mesa,aborrecido.
- Você me traiu! - grito,e é como ser destrancada - ontem a noite você me traiu!
Ele dá meia volta,quase deixou a cozinha mas agora vem em minha direção com passos curtos,estou com as mãos trêmulas,segurando a pia úmida.
- O que disse?
Minha boca perde a saliva,de repente tomo consciência do quanto sou pequena.
- Ana,olhe para mim.
Obedeço,sinto a garganta torcida feito um pano de malha,os olhos dele são dois círculos imponentes,Daniel parece um urso dos bosques,rosnando para mim e impondo seu tamanho. Não tenho chance.
- Está passando dos limites - meu marido volta a dizer - sendo emotiva e desrespeitosa!
- Mas eu sei! - minha voz vacila e os olhos marejam - Eu sei que você dormiu com outra mulher!
Daniel vira o rosto por um instante,penso que tal gesto simboliza uma fração de arrependimento,mas não,quando volta a me encarar,vejo nítida a arrogância em cada pincelar de suas íris.
- Um homem tem necessidades,como esposa é seu dever saber disso.
- Eu sempre estive disposta a você,sempre.. - uma lágrima escapa, involuntária - o que é então essa necessidade? A de magoar?
- Está tentando fazer eu me sentir o pior homem de todos..se acha tão superior não é mesmo? Não me proveu um filho de guerra,parece uma estátua gelada quando lhe encosto a mão e ainda é assídua no julgamento..você não tem vergonha?
- Você me traiu! - grito,como se fosse a coisa mais óbvia desse mundo.
- Nenhum homem é perfeito Ana,como você parece acreditar,nenhum casamento acaba por isso.
- Céus..não significa nada..
..me magoar não significa nada. - prendo o fôlego,sentindo a solidão da maneira mais crua.
- Ao contrário de você,eu encaro a situação de forma equilibrada,que nem todos são perfeitos e capazes de seguir os mandamentos a risca, já você..é uma moralista histérica que julga o marido que te sustenta,que nunca reclamou de sustentar uma filha e ouvir as chacotas dos outros homens!
- Você me traiu. - repito,como uma reza diferente,amarga e dolorida.
- Está vendo? Não escutou nada.. - Daniel suspira e se afasta - vou pedir a Mada Vera para aconselha-la,tem estado tempo demais por conta própria.
Inerte e sem palavras,as lágrimas gritam finas enquanto descem pelo rosto.
Daniel pega a marmita e a enrola com o pano para o trabalho,ajeita a roupa no espelho do corredor,seguindo a maestria da normalidade,como se não tivesse acabado de cravar uma adaga no meu peito.
- Tenha um bom dia Ana.
Então ele sai,o baque da porta assusta os meus ouvidos.
Estou sozinha de novo,rezas não adiantam.
Mada Vera é relativamente jovem para o cargo,sua pele não tem rugas e o cabelo tem esporádicos fios brancos,Madas costumam ser austeras e discretas,mas Mada Vera abre sorrisos amigáveis e tenta puxar assunto comigo enquanto faço nosso chá.
Na infância,meu sonho era ser uma Mada,andar vestindo túnicas cinzas com bordados vermelhos,os cabelos curtos no queixo ou nos ombros,ter um lar com outras mulheres,ter uma função,um propósito de vida.
Falhei em todos os meus propósitos,estou tão perdida que Daniel sentiu minha deriva e decidiu ancorar-se em outros braços.
Eu me exaltei hoje mais cedo,jamais levantei a voz para meu marido antes, nunca,ele não poderia perdoar um deslize?
Não adiantaria, Daniel usaria o argumento contra mim,então eu precisaria perdoá-lo,o que é penoso demais.
- O chá está delicioso senhora Fraser.
- Obrigada Mada Vera,fico grata.
Sento-me na mesa de frente para ela, será uma conversa desconfortável mas vou ter disciplina.
- Bom,eu soube do que aconteceu,estou aqui a mando de seu marido, aliás.
- Sim.
- Veja bem Ana,posso chama-la de Ana?
Assinto,apertando os dedos uns nos outros.
- Seu marido cometeu um erro Ana,isso é inquestionável,o adultério se trata de um pecado de alto-grau,todos sabemos.
- É uma quebra de promessa. - cerro os dentes.
- Sim,sim,é claro..mas vamos olhar para o senhor Fraser com misericórdia,ele cometeu um erro,é verdade,mas é um bom homem e garante sua segurança e sustento.
- Mas..
- Tenho certeza de que é uma ótima esposa Ana,apesar de seu desvio reprodutor,é uma das senhoras mais doces e educadas que conheço.
Desvio reprodutor.
Nenhum dos elogios - doce e educada - aliviam o peso das primeiras palavras.
- Mas o Grande Céu reconhece que somos falhos - Mada Vera continua - nossos homens principalmente, são as maiores vítimas dos desejos da carne.
- Não parece lógico que meu marido tenha sido vítima, ninguém o forçou a cometer uma traição.
- Estas são palavras agressivas Ana, e uma atitude assim pode afasta-lo do casamento. Nós sabemos o quanto é duro a vida de uma mulher separada,perdida e sem objetivos nobres na vida.
- Eu não quero uma separação,quero um pedido sincero de desculpas! Não vejo um pingo de remorso nos olhos dele, e isso é doloroso,isso é doloroso!
A Mada afasta o corpo um pouco para trás, surpreendida pela minha alteração,percebo que meus punhos estão cerrados, seria um grave erro desrespeita-la,então me obrigo a relaxar os ombros e desfazer os punhos.
- Peço perdão pelas palavras duras,essa tristeza é maior do que eu.
Essa raiva é maior do que eu.
Mentir para ela também acarreta punições,mas se eu não mentir uma única vez, não sobreviverei a esta conversa.
Mada Vera suspira, encarando o próprio colo por alguns segundos,quando retorna a me olhar,está serena. Mas juro pelo Grande Céu que uma pontada de raiva também passeou pelas feições dela,perdendo força rapidamente como uma neblina.
- Está claro que precisa de uma catarse Ana,algo para despejar sua indignação e tristeza.
E não será em Daniel,posso ler sua mente.
- O que devo fazer? - pergunto,rendida a própria desorientação.
- Enfrente a mulher que o desencaminhou,diga a ela que não pode destruir o casamento dos outros e sair impune.
- Mas eu não sei qu..
- Ivy Island - Mada Vera responde - foi essa pecadora que seduziu seu marido.
Recortes de Ivy Island invadem minha mente,o vestido florido,os cabelos ruivos e a postura ereta.
Ela,por que ela?
Daniel poderia ter escolhido qualquer mulher,menos ela.
Ela é..tudo que eu não sou.
- Todos sabem onde aquela meretriz mora, meu conselho é que vá até lá e mostre quem é de fato a senhora Fraser.
Engulo a seco,assentindo freneticamente, não sei se estou com cólicas ou vontade de vomitar.
Conversamos por mais quarenta minutos,ouvi diversos conselhos e fui motivada a ler novamente Os Sete Passos do Matrimônio, edição feita para esposas.
Mada Vera agradeceu pelo chá e partiu,me deixando sozinha e de alma revirada.
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