Capítulo 7.
O clima continuava a esfriar e a brisa da noite já se tornava incômoda, por isso todas as janelas da cantina estavam fechadas. O delicioso cheiro da sopa dominava o ambiente.
A maioria das mesas e cadeiras ficava amontada no canto do salão, e com só a parte onde jantávamos iluminada por três lanternas-lampiões, pouco parecia o refeitório de uma escola. Mesmo sob o ambiente frio e escuro, era difícil não sorrir.
— Meu Deus, isso está uma delícia! Eu estava faminta. — Melissa cantou, mergulhando uma torrada no pote de caldo vermelho. No começo achei que pareceria ketchup, mas realmente estava incrível.
— Viu, e você falando que eu iria desperdiçar os tomates. — A voz de Ivete era estrondosa e forte, seu bom humor contagiante. A mulher grávida, Elisa, sorriu de volta para ela. — Se você entende do negócio, faz um banquete com o que te derem.
Na mesa menor, ocupada por quatro crianças, o garoto mais novo bufou:
— Eu odeio tomate!
Ivete olhou-o de cima. Era alta e corpulenta, com a pele bronzeada, e quando fazia aquela expressão de poucos amigos, quase se podia esquecer como era uma mulher alegre e bem-humorada.
— Antônio, se dependesse de você, comeríamos sopa de chocolate todos os dias.
— E podemos? — O garoto se empinou na cadeira com tanta emoção que sua vasilha de sopa quase virou. Algumas gotas espirraram em sua blusa limpa. — Ah, que caralho!
A meninas ao seu lado, de cabelos crespos presos em dois pompons, quase se engasgou com a sopa quando ouviu o palavrão, soltando uma gargalhada. Sua explosão foi tão energética que o outro garoto da mesa, este um pouco mais velho que os outros, também não conseguiu segurar o riso. A última das crianças, uma menina magra e pequena, estava tão apática que só então pareceu voltar de um transe.
— Antônio! — Elisa repreendeu. Uma mecha escura e cacheada escapava de seu turbante. — Isso são palavras?
— Elisa, deixe o menino! — Valentino, ao lado de Tom, limpou a boca com o guardanapo branco enquanto ria, manchando-o de vermelho sangue.
— É, Elisa! Como você quer que ele não se comporte como um caminhoneiro se passa o tempo inteiro com a Paulina? — Leonardo, o garoto que aparentava ter minha idade, sorriu para a mulher com a cabeleira escura e olhar sério.
O humor de Paulina não pareceu melhorar desde aquela tarde e ela comia quieta. Lançou um olhar de aviso para o garoto, sem dar-lhe uma resposta. Ao seu lado Gustavo, o homem-que-parecia-um-motoqueiro, também não compartilhava do clima animado como o resto de seu grupo.
Todos estavam reunidos, e agora eu sabia que no total estavam em doze. No curto tempo em que conversamos, descobri que o senhor Valentino assumiu o posto de diretor do colégio quando o seu irmão morreu, mas esta não era a parte importante: ele era médico, e atuou como clínico geral por cerca de trinta e cinco anos. Sua postura inicial calma e firme, enquanto ditava ordens, agora deixava claro: aquele grupo o via como um líder.
Paulina e Elisa foram professoras daquele colégio. Ivete era a responsável pela cantina, enquanto a freira Graça representava a congregação de irmãs que ajudou a fundar a instituição. As quatro crianças eram Laura e Júlia, duas antigas alunas da segunda série; Antônio, da terceira e Caio, que já tinha 11 anos e naquele ano cursava a quinta série.
Estes eram o que tinham envolvimento com o colégio antes do apocalipse. Leonardo era o filho de Ivete, mas veio de encontro à mãe quando percebeu que o caos se iniciara.
Celso era o homem que consertava o carro quando chegamos. Falou pouco durante todo o tempo, somente o suficiente para contar que trabalhava como mecânico e estava instalando um ar condicionado na escola quando tudo começou. Laura, a mais quieta das crianças, era sua filha.
O motoqueiro (que afinal, realmente andava de moto) era Gustavo e deixou algumas pessoas desconfortáveis quando começou a falar, principalmente as crianças, mas contou que era ex-detento. Cumpriu sete anos de pena por assalto à mão armada e posse de drogas. Enquanto preso, por bom comportamento, recebeu a oportunidade de prestar trabalho voluntário para uma ONG de proteção animal. Quando cumpriu a sentença, abandonou sua antiga vida e se mudou, então abriu um abrigo para recolher e cuidar de animais de rua.
Tinha quatro cães: a vira-lata alta e magra Chacina; Massacre, uma mistura de buldogue com pitbull; Amora e Bruxa, respectivamente uma rottweiler resgatada de rinhas e yorkshire abandonada depois de sofrer um atropelamento. Bruxa não tinha a pata dianteira.
O clima tenso inicial lentamente se dissolvia. Tom fazia um ótimo trabalho mantendo seu papel e contando sua história de homem de família que viu a esposa morrer e fugiu com a filha e a amiga rumando para o interior do estado, onde morava sua família. Respondia com calma e paciência todas as perguntas, enquanto eu e Melissa comíamos quietas e sorridentes.
— Vocês estavam há muitos dias sem comer, então? — Ivete finalmente abandonou a mesa dos pequenos, caminhando até onde Melissa estava e colocando uma mão acolhedora em seu ombro. Ela tinha um comportamento maternal e até então sequer sentara para comer, rondando de mesa em mesa para saber se estava tudo bem.
— Ah, sim! — Melissa respondeu. Ao contrário de mim, era menos monossilábica e tinha mais confiança em sua atuação. Eu realmente preferia deixar nas mãos dela e de Tom. — Até a gente sair de Florianópolis tínhamos comida, mas quando começamos a seguir à pé ficou muito mais difícil!
— À pé? — Gustavo afastou seu prato de sopa vazio, deixando-o sobre a mesa. Sua barba espessa estava um pouco suja de vermelho. Parecia mais desconfiado do que interessado em nossa história. — Por que não de carro?
— Só enquanto passamos pelas cidades — Tom também afastou o prato vazio, sorrindo para ele. — Dentro delas é mais comum que o trânsito esteja obstruído, mas nas rodovias conseguimos seguir tranquilamente. Deixamos o nosso carro em um estacionamento quando viemos para cá.
— E por que? — Os olhos afiados de Paulina caiam sobre ele.
— Como Melissa falou, estávamos sem comida. — Ele sustentou com calma o olhar, sem hesitar. — Precisávamos parar uma hora ou outra, e não queríamos dirigir até Blumenau.
Referia-se à cidade maior que ficava a apenas alguns quilômetros desse município.
— Então foi sorte terem nos encontrado, se nem são daqui — Elisa disse, gentil. Sempre mantinha a mão sobre a barriga protuberante.
— Graças a Deus. Não queria assustar as meninas, mas estava começando a me preocupar. Elas foram muito fortes até aqui, já sentem menos medo, mas é uma ótima mudança depois de quase dois meses encontrar outras pessoas vivas.
Antes que Paulina ou Gustavo se pronunciassem — e eles realmente pareciam querer — o garoto mais velho, Caio, aproximou-se de Ivete, parecendo acanhado. Sua pele era escura e parecia muito magro. Pediu a ela, baixinho:
— Tia Ivete, eu posso comer mais? Ainda estou com fome.
A expressão alegre da mulher vacilou e suas sobrancelhas se juntaram, pesarosa.
— Querido, sabe que não temos muito. Servi para todos, mas já acabou...
O clima repentinamente ficou tenso e eu e Tom trocamos um olhar rápido. Apesar de em muitas pessoas, com idosos e crianças, sua situação era infinitamente mais precária do que a nossa. No condomínio, dispúnhamos de uma dispensa cheia e painéis solares.
O colégio era velho e eles não tinham luz elétrica. Todos andavam com lanternas, mas eram somente para emergências, e enquanto conseguissem, deveriam se virar com velas. Havia uma horta, mas Ivete já deixara implícito que a comida não era suficiente para alimentar doze pessoas, então algumas vezes Leonardo, Gustavo, Celso ou Paulina se ofereciam para tentar saquear comida nos arredores. Não costumavam ficar fora por mais de um dia, e cada vez precisavam ir mais longe para encontrar menos.
As crianças estavam magras e todos tinham bolsas escuras sob os olhos. Não estavam exatamente subnutridos, mas suas aparências contrastavam com as nossas, cuidadosamente arrumadas para que parecessemos um uma família ingênua e feliz que não oferecia qualquer risco.
O garoto olhou desanimado para o chão, mas entendeu. Eu e Melissa falamos ao mesmo tempo:
— Pode comer o meu.
— Se você quiser, — Melissa olhou para mim, e então continuou — sobrou metade do meu.
Caio olhou esperançoso para ela, mas antes virou a cabeça para Ivete.
— Querida, tem certeza?
— Claro, não estou com tanta fome — Melissa ofereceu sua tigela, ainda fumegante, para o garoto. Ele estava levemente avermelhado, mas acabou aceitando, agradecendo baixinho.
Assim que Caio voltou para sua mesa, viu como Antônio olhou para o seu prato de sopa e dividiu a vasilha, que já estava na metade, com ele. Paulina ainda tinha os olhos sobre nós.
— E então, Tom. Ainda pretendem seguir viagem para o interior? — Perguntou Valentino, quando todos voltaram a fazer silêncio.
— Como podem ver, não dispomos de muita comida. Não podemos cuidar de mais gente. — Paulina adicionou.
Ela recebeu um olhar grave de repreensão do senhor na ponta da mesa, mas sua expressão não pareceu minimamente menos afiada.
— Sinto muito pelo incômodo que causamos. — Tom respondeu à mulher, mas percebi como sua testa franziu por alguns segundos. Nem ele conseguia permanecer impassível diante da grosseria. — Vamos seguir viagem amanhã. Perdemos contato com os meus parentes, mas eles asseguraram que lá no oeste o caos era menor do que aqui.
— Ouvi dizer que Chapecó foi a última cidade a cair — uma voz nova juntou-se a conversa. Celso quem falava, e sua notícia atraiu a atenção de todos.
— Como sabe? — Perguntei de súbito, mas imediatamente fechei o punho, cravando as unhas em mim mesma como repreensão. Deveria manter-me o mais discreta possível.
O homem pareceu imediatamente acuado pelos olhares que recebeu após minha pergunta, e se encolheu um pouco.
— Eu... — Falou hesitante — Conheci um homem quando estava em Blumenau. Ele vinha do Oeste. Contou como Chapecó resistiu por semanas depois que a capital caiu...
— Por que nunca nos falou disso, Celso? — Valentino perguntou, mas não parecia acusatório.
— Foi só uma conversa rápida. Nos encontramos no mesmo mercado e meio que almoçamos juntos. Ele contou de onde veio e para onde ia e eu também. Eu menti, claro, não falei daqui. — Ele disse, mexendo inquieto com a colher em seu pote vazio de sopa. — Laura, querida — chamou, enquanto subitamente se levantava — está tarde, vamos indo para a cama.
A criança morena levou alguns segundos para erguer os olhos para ele, mas assentiu e se levantou, murmurando um boa noite para seus amigos.
Os olhos de Tom imediatamente caíram sobre os meus e trocamos um olhar intrigado com o que acabara de acontecer, mas não falamos nada. Quando desviei os olhos do homem, foi para receber a encarada de Paulina. Engoli em seco, sentindo meu coração bater. Eu não sabia o que ela queria, mas cada vez que olhava para mim, sentia que nosso plano estava em risco.
— Bom, está realmente ficando tarde. — Valentino olhou para um relógio de pulso. — A maioria de nós dorme cedo, exceto pelos que ficam de guarda. Hoje os turnos são de Paulina e Leonardo, é isso?
— Isso, senhor Valentino — Leonardo respondeu. Seu semblante continuava sério, mas ele aparentava ter muito respeito pelo ex-diretor da escola. Mantive meus olhos nele por mais tempo do que deveria, tentando ao máximo evitar contato visual com a mulher de olhar sério. Quando ele percebeu, ergueu uma sobrancelha, obrigando-me a desviar o olhar.
A mulherainda me encarava e eu queria que aquele jantar acabasse mais do que tudo.
— Elisa, por que não mostra os quartos para eles?
— Quartos? — Tom e Melissa perguntaram juntos, interessados.
✘✘
Nota da autora:
Oi amigos, como vocês estão?
Antes de tudo, gostaria de falar que estive muito ocupada nessa última semana e fiquei bastante ausente em todos os lugares. Inclusive, ainda sequer tive tempo para responder os comentários do último capítulo (vou fazer hoje, prometo!). Mas tenho um ótimo motivo pra isso.
O motivo:
A Mei chegou esse sábado, e essa cara fofa faz parecer que não dá trabalho...
Espero que a foto de filhote fofo compense minha sumida e logo estarei de volta 💕 Nenhum dos livros atrasarão nesse meio tempo, não se preocupem!
Um beijo meu para todos e uma ótima semana!
Não sejam mordidos — nem pela Mei! Não parece, mas os dentinhos são afiados.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro