9 - Intervalo
Intervalo Musical: distância entre duas notas musicais no que se refere à altura. Cada intervalo causa uma reação diferente, há intervalos agradáveis chamados de consonantes, e outros desagradáveis de ouvir, denominados dissonantes.
O despertador tocou cedo demais.
O horário era o mesmo, mas para Duda, que dormira duas horas ao todo, ainda era muito cedo. Contrariada, levantou-se e foi direto para o chuveiro.
Duas semanas se passaram desde a noite daquele show. Duda quase foi demitida, pois Jonas havia queimado seu filme com Júlio, porém Rick interveio, e ela conseguiu manter o emprego.
Depois disso, ela não cruzou mais com o produtor, nem na galeria, nem no bar. Ele não acompanhou os últimos shows da banda e ela especulava se ele teria desistido do projeto.
Motivos ele tinha. A treta com Alex havia chegado aos ouvidos de Júlio, que acabou dando um ultimato para a banda: ou faziam Alex entrar na linha, ou que arrumassem outro guitarrista. Ele só não rompeu com a banda porque o grupo trazia público ao bar e, no fim das contas, era a única coisa que interessava a ele.
A banda chegou a fazer dois shows depois daquele, e Duda lutou contra a expectativa de que Rick fosse ao bar, ao menos para assistir.
Porém ele não apareceu.
Parecia absurdo, mas ela não conseguia tirar o produtor da cabeça.
Entre os pesadelos com o passado, ela agora tinha sonhos quentes com o roqueiro. Nada de ruim nisso, na verdade, era bem melhor sonhar com ele do que com as surras que Henry, seu pai, lhe dava. O problema era que ela acordava, e não voltava a dormir depois.
Nos sonhos, Rick surgia com os cabelos compridos e soltos ondulando. Os olhos dourados brilhavam como que acesos, e ele tocava a guitarra num palco completamente vazio. Quando olhava para ela, ele colocava a guitarra de lado, caminhava até ela e a beijava sob as luzes coloridas e a fumaça de gelo seco.
Isso daria um bom videoclipe!
Rindo das próprias fantasias, ela fechou o registro do chuveiro e saiu do banho. Uma leve dor de cabeça persistia pela noite mal dormida. Trocou-se no banheiro mesmo, pois Alex dormia no seu sofá.
Ela acabara obrigando-o a ficar com ela até ter certeza de que ele estava livre da crise. Depois da comparação com o "guitarrista substituto", a autoestima do amigo andava em frangalhos, o que o deixava propenso a todo o tipo de fuga disponível.
O pastor Pedro, da igreja onde ocorriam as reuniões de apoio que Alex frequentava, havia ido visitá-lo. Eles tiveram uma conversa séria, cheia de lágrimas e arrependimento. No fim, o pastor decidiu levar Alex para ficar um tempo com ele na própria casa.
Duda não gostou da decisão. Ela julgava que ninguém sabia cuidar do seu amigo. Estava errada, obviamente. Era só o medo de não ser mais necessária, imprescindível na vida de alguém que a levava a pensar assim.
Alex agora ressonava e, aos pés dele, uma bola de pelos também dormia. Não apenas Alex se apossara do seu sofá, mas o gato amarelo acabou ficando por ali também, pois Duda havia se cansado de tropeçar nele toda vez que saía de casa; vencida pela habilidade felina de convencer humanos com o olhar e o miado insistente, ela o acolheu.
Agora, além da zona que já era o apartamento, uma caixa de areia no banheiro completava o cenário caótico.
Sentou-se na beira do sofá e chacoalhou o amigo pelo ombro.
— Acorda, Alex. O pastor Pedro tá quase chegando pra te levar. — Isso ia deixando-a cada vez mais angustiada, mas era o melhor a fazer.
O homem só precisaria garantir que Alex fosse aos ensaios e shows, e que ficasse longe dos becos, vielas, praças e más companhias. Não era pedir muito.
Mais chateada do que queria admitir, deixou o apartamento e foi para a Galeria do Rock. O dia estava chuvoso e cinzento, desanimado tal qual seu humor.
[...]
Entediado, Rick fechou o MacBook e caminhou até a janela panorâmica do flat. Acendeu um cigarro, observando as gotículas de chuva que escorriam pelo vidro. Absorto, acompanhou o percurso que uma gota fez até o trilho inferior.
A cidade estava molhada, cinza e sem graça. Aliás, há duas semanas, tudo parecia cinzento. Estar de volta ao Brasil devia tê-lo deixado feliz, mas uma nova inquietação o cutucava por dentro, fazendo-o desejar voltar para a Irlanda.
De fato, talvez tivesse sido melhor ter ficado por lá.
Enquanto estava fora, ele passou a maior parte do tempo em Dublin. Lá, a música era tão importante que a cidade chegara a ser eleita a terceira melhor do mundo para os buskers*, e Rick havia encontrado boas oportunidades tocando em locais públicos e se juntando em jam sessions nos pubs irlandeses, até que conseguiu alguns contratos fixos.
Numa dessas jam sessions, Rick conheceu Isa Ferri, uma pianista brasileira que fazia shows pela Europa com seu quarteto de jazz. Isa era uma ruiva quarentona experiente em vários quesitos. Uma noite após terem tocado juntos, Isa chamou Rick para um café, uma coisa levou a outra, e eles acabaram dormindo juntos. Depois desse dia, tornaram-se amigos.
Eles apreciavam a companhia um do outro; riam, bebiam, tocavam juntos e, por duas ocasiões, fizeram sexo, apenas pela diversão. Isa não se importou com o fato de Rick ser quinze anos mais novo que ela, e ele também não ligou, pois a mulher além de atraente, era muito divertida.
Uma noite, depois de terem bebido demais, Isa dividiu um pouco do próprio passado. Em meio aos shots de vodca e tragadas de charuto, contou sobre uma filha que abandonara ainda pequena.
"Ela tinha cinco anos de idade, e eu tinha 20 quando a deixei. O pai dela era meu professor de piano, e eu fui a ingênua que se deixou levar por outras habilidades que o safado tinha ao usar as mãos. Acabei ficando grávida e meu pai obrigou o homem a cuidar de mim. Imagine só, eu engravidei aos quinze anos, e ninguém fez nada! Era uma criança cuidando de outra criança! Mas eu queria ter minha vida, conquistar meus sonhos, tocar piano... Eu tocava desde a idade dela e, de repente, estava presa àquela realidade. Na primeira oportunidade que eu tive de fazer uma turnê fora do país, eu fui... e nunca mais voltei."
Rick lembrou-se do sentimento amargo que o relato lhe causou, pois ele também havia sido abandonado aos dez anos de idade. Ele nunca conheceu o pai, havia crescido com os avós, e sua mãe aparecia muito raramente para vê-lo. Naquela época, ele esperava, dia após dia, o rangido do velho portão de casa indicando que ela havia voltado. Por fim, os dias se tornaram semanas, depois meses, até ele entender que não adiantava mais esperar.
A chuva aumentou. Através do vidro, Rick viu a cidade desaparecer sob a forte precipitação. Um paralelo perfeito para o sentimento de abandono que o cobria. A sensação levou-o de volta ao relato de Isa, quando ele questionou se a pianista se arrependia da decisão de ter deixado a filha:
"É curioso como, quando um pai deixa um filho aos cuidados da mãe, rapidamente todo mundo supera o fato; ele segue com a vida, paga uma pensão, se casa de novo e está tudo bem. Mas quando é a mãe, aí a história é outra. Uma mulher não pode renunciar a nada por causa de um filho. Nunca. Veja bem, não abandonei a menina na rua, eu a deixei com o pai dela e paguei pensão até ela atingir a maioridade. Eu só queria seguir meus sonhos, o que tem de ruim nisso?".
Pois bem; a mulher tinha um ponto. Na ocasião, ele pensou muito sobre isso e concluiu que a sociedade era de fato bem mais exigente com a mulher. Nesse quesito, não havia certo ou errado; cada um falava por si e detinha o direito de sua própria narrativa.
Mesmo assim, ainda que buscasse não se envolver, tais revelações tiveram um impacto significativo em sua relação com Isa. Ele não parava de pensar na garota abandonada pela mãe e, embora soubesse que não tinha esse direito, não conseguia deixar de julgar a pianista pela atitude.
A amizade foi definhando com o tempo; Rick limitou-se a conversar com ela apenas quando tocavam juntos, até que, numa das noites de show, ela exagerou no vinho e ele, preocupado com seu entorpecimento, decidiu levá-la para casa.
Deixou-a na cama e se preparava para sair quando ela começou a chorar. Dizia que toda aquela postura dela não passava de fachada, que ela era uma droga de pessoa e outras ofensas que dirigiu a si mesma por estar chapada demais a ponto de ignorar o amor-próprio.
Preocupado com ela, ele acabou ficando por lá e dormiu no sofá. Na manhã seguinte, ela pediu desculpas e confessou que andava emotiva, pois aquele era o dia em que a filha completava 25 anos de idade.
Sem querer se envolver mais na história, ele disse que precisava ir embora, então ela pegou o próprio celular e lhe mostrou um vídeo. Nele, uma garota ruiva cantava uma canção da Taylor Swift enquanto se acompanhava habilmente com um violão.
"Eduarda estava com quinze anos aqui. O idiota do meu ex me mandou isso há dez anos pra ver se eu faria alguma coisa a respeito. Disse que ela gravou isso pra mim, mas eu não fiz nada na época. Nesta data eu sempre assisto esse vídeo porque é lindo o que ela está fazendo. Eu chego a ter orgulho, mas não posso voltar..."
Na ocasião, Rick pegou o celular da mão dela para assistir ao vídeo até o fim. O talento musical da garota o deixou bem impressionado. Sem entender a razão, ele compartilhou o vídeo consigo mesmo, e aquela foi a última vez que ele esteve com a pianista.
Nas semanas que se seguiram, ele se viu obcecado com a garota, mas não apenas pela performance, pela voz cristalina e de raro controle ou pela clareza das notas que soavam do seu violão.
Era pelo vazio.
Ele via a solidão dela. A cada nota que soava quando, dia após dia, ele assistia ao mesmo vídeo, ele enxergava a própria solidão. A dor do abandono transparecia no semblante da ruiva, e ele se via refletido nela.
Torcia para que, depois de dez anos, ela tivesse superado, pois ele mesmo nunca havia superado o abandono. O quadro todo tinha transformado Isa Ferri numa vilã, uma versão distorcida da artista que ele conhecera, e ele perdera completamente o interesse em se relacionar com a mulher.
No entanto, desejou conhecer a filha. Algo o impulsionava a procurá-la. Poderia tentar se convencer de que era um interesse puramente musical, afinal de contas, ele era um conhecido "caça-talentos", porém ele sabia que não era.
Ele queria que ela soubesse que alguém enxergava sua dor e seu vazio.
Vencido pelo impulso, ele começou a pesquisar sobre ela. Vasculhou as redes sociais, até que enfim a encontrou no Instagram, numa marcação feita no perfil de um bar, o Johnny-John. Na imagem, ela aparecia atrás do balcão ao lado de algumas pessoas. A legenda trazia o nome da banda, dos integrantes e o perfil dela.
Ironicamente, ele conhecia o dono do bar: Júlio Castilho, um músico com talento para negócios e velho amigo seu. Chocado com a coincidência, entrara em contato, e Júlio lhe fizera uma proposta. Foi então que Rick decidiu voltar para o Brasil.
Embora a curiosidade sobre Eduarda tivesse ajudado, não fora a única razão para voltar. Seu tempo na Europa havia acabado; ele sentia falta da sua gente, da sua língua, da cultura que reunia o mundo inteiro em um só lugar.
Na noite em que chegou de viagem, ele alugou um carro e não se preocupou em levar a bagagem até o flat previamente locado pela internet. Ignorando o jet lag, dirigiu até o Johnny-John, sem se dar conta de que era madrugada e o local poderia estar fechado.
E de fato estava, mas as portas cerradas não ocultavam a luz no interior da casa. Ele caminhou pela calçada até o beco lateral, daquele jeito sem graça de quem acabou de perder o trem. Acendeu um cigarro para justificar sua presença ali, e foi quando viu Eduarda carregando o lixo.
Depois de ter passado semanas vendo-a cantar tão lindamente num vídeo, a última coisa que ele esperava era ver aquela garota carregando lixo. Ali, ele constatou que ela não era uma divindade ferida, mas apenas uma moça comum.
Eduarda ofegou, soltou o lixo no chão e se apoiou num gradil, observando a noite como se o mundo fosse grande demais, ou pequeno demais para ela.
Foi então que ele sentiu o interesse voltando aos poucos, a curiosidade reavivada pelo olhar vazio, pela silhueta delicada oculta por baixo de um uniforme barato. Ali, oculto pelas sombras, ele registrou cada detalhe do rosto banhado pela luz fria do poste, buscando naqueles traços mais maduros a inocência da garota do vídeo, mas não havia nada parecido naquela mulher.
A inocência não existia mais, suplantada por toneladas de algo que ele jamais poderia classificar.
E então, mais uma vez, Rick viu nela o reflexo de sua própria solidão, ainda mais profunda do que antes e, depois disso, ele não pensou em mais nada. Só reagiu.
Ele a seguiu naquela noite. Na manhã seguinte, aguardou na porta do seu prédio até que a viu entrar na Galeria do Rock, então forçou o encontro. Mais tarde, apareceu no bar como se fosse coincidência.
Nada foi por acaso. Os encontros "acidentais" foram fruto de sua mente obcecada, que sofria ao vê-la sozinha. Ele a visitava sem ser notado, vendo-a deixar o bar tarde da noite ou aguardando-a chegar em casa nas madrugadas menos movimentadas; até que criou coragem para abordá-la, e passaram uma tarde agradável que terminou num problema chamado "Alex".
Ele desejou ser seu amigo, mas jamais teria dado certo. Eles eram diferentes demais. Ele maquiava a própria dor com sorrisos e performances marcantes; e ela, com patadas e mau humor. Por mais que ele desejasse se aproximar, não havia previsto o quanto isso iria afetá-lo.
Ela não fazia ideia do tempo que ele passara pensando nela e, se soubesse, sairia correndo, trancaria as portas e providenciaria uma ordem de restrição contra ele.
Com um suspiro desanimado, ele lamentou precisar voltar ao bar para acompanhar a banda. Depois de duas semanas de hiato, Júlio havia cobrado dele uma posição, e ele não podia se esquivar apenas por saber que Duda estaria lá para cutucar sua compulsão.
A escalada das mudanças no que sentia por ela era o que mais o atormentava. Sempre que seus olhos encontravam os dela, algo dentro de si se quebrava, e pensamentos errados, intrusos, completamente insensatos ocupavam sua mente.
Não era para ser assim. Nunca foi assim, até o momento em que a viu naquele maldito beco.
Ele precisava fazer isso parar. Uma coisa era se interessar pelo bem-estar da garota, querer ajudá-la por suas questões emocionais e lhe oferecer sua empatia; outra coisa completamente diferente era se interessar...
Pela garota.
Frustrado, apagou a bituca do cigarro no cinzeiro e assumiu que andava fumando muito mais desde que retornara ao Brasil. O controle sobre si e sobre as próprias ações era o que estava em jogo.
E ele bem sabia o desastre que sua falta de controle podia causar.
***
Seu rosto na TV parece um milagre
Uma perfeição nos mínimos detalhes
Eu mudo o canal, eu viro a página
Mas você me persegue por todos os lugares...
(Fixação - Paula Toller / Beni / Leoni)
______________________
* Buskers: músicos que tocam nas ruas por gorjetas.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro