63 - Modal
Música Modal: sistema de composição que oferece uma ampla gama de expressão emocional, criando uma variedade de estados de espírito na música, desde alegria e exaltação até introspecção e tristeza profunda.
Na Irlanda, uma energia contagiante envolvia os habitantes de Dublin. Já era verão e o clima úmido e agradável mantinha a média de 20ºC. Apesar da atmosfera aprazível, Rick não se sentia tão animado, por diversos motivos.
Uma das razões era o fato de que sua mão direita ainda não havia recuperado a antiga forma. O problema ocorria porque ele não gostava de tocar contrabaixo de palheta, então forçava o uso dos dedos, a mão em desequilíbrio repuxava o tendão do dedo anelar quando ele concentrava a força no dedo médio, e a insistência do movimento fez o quadro evoluir para uma tendinite.
Ele não imaginava que uma lesão tão pequena pudesse causar um incômodo tão grande a longo prazo. O fato de ele não rejeitar trabalhos e passar horas estudando para recuperar a técnica só piorava a situação. Segundo o médico, ao sobrecarregar o tendão, Rick não estava permitindo que o membro se recuperasse totalmente, o que retardava a plena cura. As dores durante as apresentações o obrigavam a manter uma bolsa de gelo por perto, e no fim, o que ele mais gostava de fazer se tornara o que menos gostava, porque doía, e muito.
E não era só isso que doía. Rick estava cansado de carregar tanto peso nos ombros, peso das lembranças do passado, dos segredos, das mágoas e do arrependimento pelo que poderia ter dito ou feito. Muito tempo se passara desde o rompimento com Duda, já era hora de sair da bolha e tentar um recomeço; entretanto, ainda que as estações tivessem mudado, o que ele sentia por ela continuava igual.
Ele pensou muito nisso na noite anterior, quando, depois de vários drinks, enquanto solitário no bar, Elisa, a vocalista da banda de soul que ele acompanhara no show da noite, o abordou.
"Sempre vejo você sozinho depois dos shows. O que te aprisiona, Rick?"
"Nada me aprisiona, por que a pergunta?"
"Se não aprisiona, será que você aceitaria a minha companhia esta noite?"
Rick percebeu, durante a breve conversa com a inglesa, que não tinha uma resposta. Ele chegou a olhá-la com um interesse modesto, pois a cantora tinha tudo o que ele admirara no passado: atraente, pele bronzeada, corpo curvilíneo, sotaque elegante e lábios sedutores, porém ele não conseguiu reagir a ela, assim como não reagia a nada ultimamente.
Ela não fora a primeira a tentar. Rick perdera a conta de quantas garotas, e até rapazes, se aproximaram dele nos últimos meses, mas nada o animava. A música era a única coisa que o movia; sua busca pela perfeição e pela performance outrora perdida com a lesão o fazia sair da cama todas as manhãs, enquanto o pensamento em Duda o fazia querer voltar para o escuro a todo momento.
"É uma pena, Rick. Você é um homem e tanto, poderíamos ter nos divertido muito..."
Rick se lembrou do momento em que a mão da cantora se insinuou por sua coxa, subiu até a região da virilha e envolveu-o ali numa carícia erótica, porém sutil. Seu corpo respondeu prontamente, mas a resposta não fez o caminho para acima da cintura, não causou alguma emoção que o convencesse a seguir adiante. Isso nunca fora impedimento antes; mas, agora, com a parte de cima completamente poluída com lembranças residuais de uma fada perdida, ele não se sentia apto a prosseguir.
Desanimado, Rick voltou para a própria casa desacompanhado, e sonhou a noite toda com a brasileira, não com a inglesa. Acordar solitário e com o corpo sôfrego por um alívio impossível o empurrou a tomar uma decisão, e a decisão o levou até aquele pub onde ele aguardava a chegada de Isadora Ferri.
Eles não tiveram contato desde o velório de Henry, e encontrá-la era o primeiro passo para seguir em outra direção, afinal de contas, o mundo continuava girando, como Júlio sempre fazia questão de afirmar.
De longe, era possível ver a pianista caminhando elegantemente por entre as mesas do pub, movendo os quadris e fazendo a cabeleira vermelha lançar-se de um lado a outro nas costas esbeltas. Não fossem os pés de galinha e o bigode chinês, ninguém diria que ela tinha mais do que 45 anos de idade.
— Rick, que surpresa boa! Não sabia que você tinha voltado pra Irlanda! — Ela se aproximou e lhe deu um beijo leve nos lábios.
Rick se afastou e disfarçou o gesto puxando a cadeira para ela se sentar. Precisava ser objetivo, pensara muito em como ter essa conversa, até criar coragem de encontrá-la num local neutro a fim de que ela não interpretasse erroneamente suas intenções.
— Estou por aqui desde março.
— Por que não me avisou? Poderíamos ter feito algo juntos!
— Isa, te chamei aqui porque precisamos ter uma conversa séria.
Isadora olhou para Rick, finalmente o enxergando de fato. Notou como ele estava diferente de quando deixara a Irlanda no ano anterior. Parecia mais magro, menor, e isso não tinha a ver com a estatura ou o peso, era mais como se estivesse faltando algo, alguma parte dele, de dentro dele.
Ela sempre apreciara a companhia do produtor, um homem gentil e divertido, cheio de autoconfiança que, às vezes, passava a noite em sua casa muito mais pela companhia do que pelo sexo. Ele a agradava por sua leveza e bom-humor, o que parecia inexistente nesse momento.
— O que aconteceu com você, Rick?
Rick pensou nas milhares de maneiras de responder à pergunta, e só uma parecia se encaixar. "Duda aconteceu."
— Muita coisa aconteceu desde que eu fui embora, Isa. Eu não fui honesto contigo naquela época, nem depois, mas sinto que preciso ser agora. Tem algo que eu preciso te contar.
— Nossa, Rick, assim você me deixa preocupada...
— E deveria ficar, mesmo. Quando me ligou na noite em que Henry faleceu, é verdade que você não sabia nada a respeito da Eduarda?
Isadora o observava com uma ruga entre os olhos. Não gostava do rumo da conversa, mas se manteve atenta ao que ele queria dizer.
— É verdade, Rick. Por que eu mentiria pra você? Aliás, não te agradeci devidamente por ter me ajudado...
— E mesmo sabendo que eu a encontrei, que acompanhei o processo do velório e tudo o que veio depois, ainda assim, você não me fez uma única pergunta a respeito de, até onde sei, sua única filha.
— Você me chamou aqui pra me julgar? Acho que não preciso disso. Foi bom encontrar você. — Isa começou a se levantar, porém Rick segurou a mão dela sobre a mesa de modo gentil, mas firme.
— Como não perguntou nada, certamente você não sabe que sua filha foi vítima de abuso, que foi espancada e maltratada pelo pai por anos até a adolescência, quando tentou tirar a própria vida. Ou será que você sabe?
Isa empalideceu. A tez rígida e os lábios como uma linha fina denotavam um misto de contrariedade e medo. Claramente ela não queria saber de nada disso, contudo Rick não estava nem um pouco preocupado com o que ela queria ou não.
— Não... eu não sabia disso.
— Enfim, você não fez as perguntas, mas eu fiz. E não foi quando você me ligou, mas muito antes disso.
— O que você quer dizer...?
— Eu vou te contar uma história, Isa. A minha história com a Eduarda, e vou fazer isso não por minha causa, mas por causa dela.
— Do que você está falando, Rick? Como assim, a sua história com a Eduarda?
— Vou começar bem do começo, precisamente em fevereiro do ano passado, quando você me mostrou aquele vídeo...
***
Se lembra quando a gente
chegou um dia a acreditar
Que tudo era pra sempre
Sem saber que o pra sempre, sempre acaba?
(Por Enquanto — Renato Russo)
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