5 - madalena barravento
PAPAI OFICIALMENTE ME abandonou. Me largou à própria sorte. Me deixou aqui, com um braço quebrado e o orgulho ferido, sem chance de sobrevivência.
Tudo bem, estou sendo propositalmente dramática. Mas é muito mais prazeroso fazer drama quando eu realmente tô morrendo de dor e com um gesso no braço.
Meu pai precisou ir trabalhar, treinar as Faíscas Violetas que com certeza estão melhores sem mim. Falei que estava bem, que ele não precisava se preocupar, mas foi só eu ouvir o seu carro indo embora que comecei a ficar desesperada. Vai ser um dia longo, sem graça e solitário.
Bem, pelo menos eu não preciso mais jogar.
Já fiz as contas. Quando eu tirar o gesso, já estaremos no meio de abril, tarde demais para ainda existir alguma chance de eu entrar no time. Vai ser uma decepção para o meu pai, mas foi um acidente, né? Resta a ele apenas aceitar que sua filha, a incrível jogadora de futebol que ele nunca viu jogar, perdeu a grande chance da vida dela.
Ele vai superar.
Aproveito a casa vazia pra fazer uma coisa que ainda não tive a oportunidade de fazer desde que cheguei: eu exploro. Abro os armários no corredor, faço um estudo detalhado de todos os discos de vinil perto da vitrola do papai, caminho pelo quintal minúsculo e espio pela janela o pequeno galpão de madeira onde papai guarda seus entulhos. Uma coisa eu preciso admitir: meu pai é um homem metódico. Até a sua bagunça parece organizada, e isso se comprova ainda mais quando entro em seu quarto.
A primeira coisa que penso é que ele parece uma caverna. Tudo é cinza e escuro, desde os lençóis da sua cama até as roupas no armário. Um toque feminino cairia bem, eu acho. Posso pedir ajuda para a professora Mirthes, eu penso, e imediatamente solto um arzinho pelo nariz.
Estou quase saindo do quarto quando me deparo com o porta-retrato em cima da cômoda, a única fotografia no cômodo inteiro. É a cópia de uma foto que minha tia Pilar também tinha, onde ela, papai e minha mãe posam em looks clássicos dos anos 90, com jaquetas jeans rasgadas e cabelos punk rock. Eu adoro essa foto, porque é uma das poucas onde acho que a mulher, de cabelos escuros e sardas abraçando o meu pai, se parece comigo.
— Tem alguém em casa?!
A campainha está tocando enlouquecida, e por algum motivo eu só consigo ouvir agora, depois que o grito sobe as escadas e me encontra no quarto no final do corredor.
Corro até o andar de baixo, e esbarro em uma parede com meu braço machucado. Ignoro a dor latejante e me dirijo a porta, a abrindo de supetão e assustando a Garota-de-Boné parada na minha entrada. Exceto que ela não está de boné dessa vez.
— Você é Dalila Montes? — pergunta, com uma cara de que não dá a mínima para a resposta.
Franzo o cenho. O fato dela saber o meu nome me deixa desconfortável.
— É só Lila — corrijo.
— Tudo bem, só Lila. — Ela estende um pacotinho na minha direção, que eu nem tinha visto que estava segurando. O seu pulso está cheio de pulseirinhas de contas. — Deixaram uma encomenda pra você na minha casa. Devem ter se confundido.
Seguro o pacote, a caixa menor que a palma da minha mão. Devem ser os brincos de coração que comprei dias atrás, o que me deixa surpresa pela velocidade da entrega. Talvez esse interior no meio do nada não seja tão ruim assim.
— Obrigada.
A garota não responde, só assente com a cabeça antes de me virar as costas. Sem nem dizer tchau. Sem nem... nada.
Continua tão mal-educada quanto no dia do jogo de futebol.
— Meu nome é Lila! — falo, um pouco alto demais, antes dela alcançar a calçada.
É nesses poucos segundos, enquanto ela volta o rosto na minha direção, que eu consigo ter uma boa imagem dela. E é... confuso. A personalidade de garota raivosa não combina em nada com seu macacão verde, chinelos cor-de-rosa e suas pulseiras de contas. É como se ela fosse uma badgirl no corpo de uma garota hipster.
— É, eu já sei disso — ela diz, cruzando os braços.
— E é nessa parte que você diz o seu nome.
A garota coloca a mão na frente do rosto para cobrir os olhos do sol. Ela continua parecendo entediada, mas não vai embora.
— Madalena Barravento — diz, antes de apontar com o queixo na minha direção. — Como foi que fez isso?
Demoro a entender que ela está falando do meu braço. Olho para ele como se fosse uma idiota que não sabia que havia quebrado um osso, mas espero que Madalena não tenha percebido.
— Caí de mal jeito. Não tenho uma história interessante pra contar.
— Então faz que nem eu — Madalena diz, já se afastando e passando pelo meu portão. — Inventa uma mentira.
COMO SE EU já não fosse uma especialista em mentir. As palavras de Madalena me seguem pelo resto do dia, me atrapalham o sono e se arrastam comigo pelos corredores da escola no dia seguinte. É a primeira vez que apareço aqui desde o acidente, e os olhares curiosos de todo mundo me deixam com vergonha. Aposto os dois reais que tenho na carteira como a escola inteira já tá sabendo do que aconteceu no treino de futebol das Faíscas Violetas.
Quero enterrar minha cabeça num buraco.
A primeira aula do dia é Filosofia, e chego na classe antes do professor. Me acomodo na minha carteira de sempre, apoiando meu braço cuidadosamente sobre a mesa, torcendo por um minuto que seja de calma. Mas o toque que recebo no ombro cinco segundos depois já deixa claro que não vou ter paz.
— Ah, é você.
Madalena me encara com as sobrancelhas arqueadas, obviamente não esperando a minha resposta ríspida. No entanto, ela não reluta em ocupar a carteira em frente à minha, que vem ocupando desde a semana passada e eu nem havia percebido. Acho que fiquei tão absorta no treino de futebol que ignorei o mundo inteiro à minha volta.
— E aí, pensou no que eu te falei? — Franzo o cenho, confusa. — Em mentir sobre o braço quebrado.
— O que eu ganharia fazendo isso? — pergunto, sem deixar a carranca de lado nem se eu quisesse. Meu mau-humor não parece disposto a ir embora tão cedo. — Além do mais, aposto que todo mundo aqui já sabe o que rolou. Quebrei o braço na escola.
— É, mas ninguém sabe o que aconteceu no hospital, Dalila. — Ela tira seu estojo da mochila, procurando alguma coisa dentro dele. — Eu te ajudo, sou boa mentindo.
Quando encontra uma caneta permanente vermelha, a garota abre um sorriso. Aponta para o meu gesso, e eu concordo sem pensar muito.
— Mas o que eu ganharia fazendo isso? Você não respondeu.
— Nada, ué. Mas ainda assim é divertido.
Ela se ajeita na carteira assim que o professor chega na classe. Bem perto da minha mão, ela desenhou uma caveira e escreveu com letras garrafais:
tive uma tia que morreu disso
— Bom dia, turma. Espero que tenham terminado de ler o texto que passei na última aula. — Madalena me encara, e eu nego com a cabeça. Sendo sincera, eu nem lembro de ter assistido essa aula na semana passada. — Vou sortear alguns alunos no último horário pra podermos debater o assunto e... Pois não?
Ela está com a mão levantada. Madalena parece não ter vergonha alguma em interromper a aula, e nem recua quando todos – eu inclusa – levam a atenção para ela.
— Minha amiga Dalila quebrou o braço em cinco lugares diferentes, professor, e tá sentindo muita dor hoje. A gente pode sair rapidinho?
O professor tira os olhos dela e os leva até a mim. Eu não acredito que essa garota está me empurrando junto a ela nessa mentira, mas eu não me atrevo a falar nada. A única coisa que faço é segurar o meu braço, alimentando ainda mais essa história ridícula.
— Vão até a sala dos professores, alguém deve ter remédio pra dor — ele aconselha, antes de gesticular com a mão para sairmos.
A aula recomeça antes mesmo de chegarmos até a porta, mas assim que nos encontramos paradas no meio do corredor vazio, Madalena me dirige um sorriso cúmplice que me faz desviar o olhar por um segundo.
— Esse seu braço quebrado foi uma benção, Dalila.
—Lila — corrijo, mas deixo um sorriso escapar. — Mas e agora, o que a gente faz? A sala dos professores deve tá vazia essa hora e...
— Qual é, garota, a gente não vai pra lá, tá doida? — Ela põe as mãos na cintura. — Não sei você, mas eu tô precisando de um canto pra relaxar.
Faço uma careta.
— Não acho que a gente vá encontrar isso aqui.
— Pois eu tenho o lugar ideal — diz, sinalizando com a cabeça o corredor à direita. — Vem comigo?
Não é como se eu tivesse muitas opções. A sigo pelos corredores vazios, e a sensação de que vamos ser pegas a qualquer momento parece tomar conta do meu corpo. Mas Madalena está incrivelmente calma, o que me faz ter certeza de que ela já fez isso mil vezes antes.
— Bem vinda ao paraíso — anuncia, abrindo a porta e deixando que eu passe primeiro.
É a sala de artes. A mesma onde conheci a professora Mirthes e a ajudei a desempacotar caixas e mais caixas de materiais escolares. Para a nossa sorte, a sala está vazia, e não há nada aqui além de papéis manchados de tinta guache secando num varal. Estamos livres de bronca, pelo menos por enquanto.
— Então além de expert em mentiras você também é artista?
Madalena ergue uma sobrancelha, e pela sua expressão de surpresa eu chuto que é a primeira vez que alguém a chama assim.
— Eu não acho que eu seja artista, mas é. Talvez artes seja a única matéria que não me fez desistir da escola.
— A nova professora parece legal, né?
Ela dá de ombros, andando por entre as mesas vazias e cheias de manchas secas de tinta.
— O antigo professor era péssimo e não dava a mínima pros alunos. Então mesmo se a professora nova fosse mediana, eu já acharia ela ótima.
Me apoio em uma das carteiras e assisto a garota ir até o fim da sala, onde o varalzinho de barbante, preso em uma das parede com fita adesiva, termina em um nó dado no puxador da janela. Ela observa as pinturas uma a uma, como se fosse uma crítica de arte analisando obras artísticas num museu.
— Você chegou aqui agora e provavelmente não sabe disso ainda, Dalila, mas é o seguinte: essa escola tá pouco se lixando pra disciplina de artes — diz, antes de parar quando alcança o fim do varal. Ela se vira pra mim. — A diretora tá muito mais preocupada em colocar todo o dinheiro da escola nos times de futebol, principalmente o masculino. Aí o resto dos grupos estudantis que se fodam.
— Isso não é, tipo, contra lei?
— Deve ser, mas não é como se alguém aqui ligasse. Já foi ao campinho da cidade? A galera aqui ama futebol.
Sinto um nó bem na boca do estômago. Eu duvido muito que Madalena não saiba quem o meu pai é, tendo em vista que moramos em frente a ela e os boatos em Corina correm soltos. E por mais que eu seja uma fraude, ela não tem como saber disso. Não demoro a chegar à conclusão de que tudo o que ela diz tem uma pontinha de julgamento, de acusação até. E, sabe, eu não posso dizer que ela está errada.
— Eu não estou no time de futebol — digo, e eu sei que ela já entendeu onde quero chegar.
— Por causa do braço quebrado?
Assinto.
— Mas... — continuo, tendo muito cuidado nas palavras que escolho —... o meu pai é o treinador e... eu conheço pessoas no time.
Bem, uma pessoa. Mas Madalena não precisa saber desse detalhe.
— Prossiga — ela pede, voltando dos fundos da sala e se aproximando de mim com passos lentos.
— Eu posso pedir pra ele falar com a diretora. Tentar trazer mais verba pros grupos de artes e tudo o mais.
— Acha que ele pode fazer isso? — Madalena franze as sobrancelhas. — Ou pior, acha que ele faria isso?
Concordo com a cabeça, veemente. Não faço ideia de qual resposta a diretora Úrsula daria, ainda que ela pareça ser obcecada pelo Augusto Montes, jogador de futebol, mas eu conheço o meu pai. Se eu falar com ele e mostrar que me importo com isso, ele fará qualquer coisa pra ajudar.
— Não custa tentar — digo por fim, quando ela finalmente para na minha frente.
Uma coisa é certa: essa garota mete medo da mesma forma que ela não demonstra ter medo de nada. Madalena não tira os olhos dos meus, e eu engulo em seco enquanto falho totalmente em demonstrar tranquilidade. Demoro a perceber a sua mão estendida, esperando tocar a minha.
— Você me ajuda com toda essa questão com a diretora e eu não tiro sarro da sua cara por ser mais uma fanática por futebol.
Assinto, porque parece justo. E porque, bem, eu não tô muito disposta a tornar a minha vida mais difícil por causa dessa valentona de um metro e sessenta que parece gostar de me encher o saco.
— Temos um acordo, Dalila?
— É Lila — corrijo o erro de novo, e o sorriso provocativo que recebo em resposta me avisa que, assim como todas as vezes depois do nosso primeiro encontro, essa foi uma escolha proposital.
Aperto sua mão e é como se eu fizesse um acordo com o diabo.
Que Deus me proteja.
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