Ilusões
Era claro para mim que Isac estava desconfortável. Seus dedos dançavam sobre as coxas enquanto os olhos estáticos miravam a rua. Os lábios apertados em uma linha fina indicavam que conversar não seria o caminho que nos salvaria daquela situação.
Vendo seu estado, achei totalmente acertada a decisão de Nia. Ela ligou para alguém durante o caminho e conversava sobre endereços ou algo assim, no fundo pensei que ela evitava causar sofrimento à seu tão estimado amigo. Eu apoiava tal atitude.
Quando chegamos ao endereço de Isac fiquei surpreso. Era uma casinha branca com muro todo feito em grades de ferro que permitiam a visão de um belíssimo jardim florido. Apesar da escuridão da noite, um elegante poste que lembrava o século XIX, bem no centro dos canteiros, jogava uma fraca luz sobre tudo. Havia uma varandinha com duas cadeiras de balanço.
— É aqui. — Confirmou.
Descemos todos do carro. O ajudei a desprender a bicicleta e colocá-la sobre a calçada.
Nia abraçou o amigo e beijou seu rosto em um afável gesto de despedida.
— Consegui falar com meu contato da funerária. O velório de Lia será amanhã às nove horas da manhã. Em meu serviço fomos dispensados para comparecer e segundo fontes na editora também. — Nia avisou.
— Sendo dispensado ou não, irei. — Isac fitou o chão.
— Tudo bem, espero por você lá. — Ela confirmou.
— É tudo culpa minha, sabe... — Lágrimas grossas correram pela face de Isac.
Nia arregalou os olhos e emoldurou o rosto de Isac com as mãos, isso tornou impossível ele olhá-la nos olhos.
— Não, Isac. Não foi sua culpa. Pessoas morrem o tempo todo e não está em nossas mãos o poder de salvá-las ou não. Resta a nós a árdua tarefa de honrar suas memórias enquanto estivermos vivos. — Foram suas palavras para confortá-lo.
Isac abraçou Nia e desabou em lágrimas. Era possível ver as gotas correrem pelos ombros dela descendo pelas costas até morrerem no corpete do vestido. Ela o consolou o quanto pôde e quando ele estava mais calmo ela se despediu.
— Sinto muito, cara. — Eu disse enquanto estendia a mão para apertar a dele. — Você não deve se culpar por isso. Ela saiu rápido da festa, talvez se nos tivesse acompanhado estaria viva.
Não era a coisa certa a dizer, mas era uma tentativa de acerto. Isac balançou a cabeça de maneira afirmativa, depois pegou a bicicleta e a conduziu portão adentro.
Eu e minha companheira voltamos para o carro. Dessa vez ela se sentou ao meu lado, recostou a cabeça na janela e cochilou. Coloquei para tocar algumas músicas do David Bisbal. Elas combinavam com o que eu sentia naquele momento, uma profunda vontade de ter aquela mulher comigo até minha morte.
Estava decidido. Compraria um par anel de compromisso para nós, já era tempo de iniciarmos um relacionamento sério e assumido. Eu gostaria de fazer da maneira tradicional, pedir para os pais dela e para o irmão também. Era meu jeito de fazer aquilo.
Nia morava em um apartamento no sexto andar, em um prédio antigo que ficava na Rua das Pedras Vermelhas. Perto dali havia um parque com muitas árvores, um lago e uma fonte que ficava colorida toda vez que havia uma data comemorativa na cidade. Era uma fonte bonita, a água era esguichada de uma maneira que a fazia formar pequenos desenhos como corações enlaçados ou cubos coloridos.
Estacionei o carro e acordei meu cisne negro. Ela abriu os olhos um pouco perdida e demorou alguns segundos para que se situasse, quando finalmente aconteceu subimos para seu apartamento. O prédio tinha elevador e lances de escada, subimos pelo elevador.
— Estou cansada. — Admitiu olhando para o painel colorido que ficava próximo da porta do elevador.
— Eu sei cisne negro. — Coloquei o braço sobre seus ombros e beijei o topo da cabeça que trazia os cabelos muito embaraçados.
— Sou um cisne que fugiu do caçador e foi atropelado no caminho. — Brincou e depois abriu um sorriso fraco que pude ver no espelho do elevador.
— Não, você é um cisne que logo sairá do encanto e voltará a ser a princesa mais linda do mundo. Não há mudança sem caos ou dor, este é o grande motivo de seu visual atual. — Refleti.
Ela puxou meu pescoço para baixo e me beijou no exato momento em que o elevador se abriu. Peguei sua mão e a conduzi pelo corredor até a porta de seu apartamento. Ela pegou as chaves que estavam na bolsa e a destrancou.
Quando entramos, jogou os prêmios sobre um dos sofás da sala e se largou sobre o outro. A sala de Nia tinha uma estante encostada na parede logo a direita da porta de entrada. Repleta de livros. Uma televisão de tela plana havia sido instalada em um suporte na parede. À extrema direita e à frente ficavam os sofás encostados nas outras paredes. Na parede da direita, logo acima do sofá, havia uma janela larga e sem grades com bonitas cortinas decoradas em motivos de delicadas borboletas. No centro da sala havia uma mesinha. Na parede a minha frente estava uma moldura com o jornal que contava o que havia acontecido na noite em que nos conhecemos.
♠♠♠♠
— Sente-se, vou tomar banho e já venho. — Avisei.
Levantei-me do sofá que não fora ocupado pelos prêmios e o indiquei para que Miguel se sentasse. Assim que ele ficou à vontade, passei a senha da internet, liguei a TV e fui para o meu quarto. Tive sorte em ter um apartamento com dois banheiros, um deles ficava em meu quarto e o outro no corredor.
Arranquei a fantasia de cisne o mais rápido que pude, peguei uma toalha e fui me banhar. Relaxei quando senti a água morna em meu corpo. Massageei a pele delicadamente com a barra de sabonete. Lavei os cabelos com shampoo, condicionador e esfreguei o rosto com uma bucha.
Fechei o registro de água, peguei demaquilante e algodão, para em seguida me dedicar à enervante tarefa de limpar a pele do rosto. Quando fiquei satisfeita com a retirada da maquiagem, abri o registro novamente. Recostei-me na parede, fechei os olhos e deixei a água correr livre sobre meu corpo.
Algum tempo depois desliguei o chuveiro, me enrolei na toalha e abri a porta.
Algo parecia estranho, demorei alguns segundos para assimilar a casa silenciosa demais. As luzes do corredor e da sala tinham sido apagadas. Dei um passo cauteloso para dentro de meu quarto, meus batimentos aumentaram seu ritmo.
Eu sentia medo.
— Miguel. — Chamei.
Nenhuma resposta.
Resolvi colocar uma camisola antes de procurar por Miguel. Teria ele ido embora e me deixado só?
Abri a porta do guarda roupas e procurei minha camisola comprida. No silêncio ensurdecedor pude ouvir passos abafados e lentos que se aproximavam pelo corredor.
— Miguel? — Me virei e olhei a porta do quarto. Maldita hora que não a fechei.
Silêncio absoluto novamente. Já podia ouvir um zumbido no ouvido, daqueles que aparecem quando temos muito medo. Peguei um cabide de metal e o desentortei. Não achei minha camisola, então vesti a primeira camiseta que minhas mãos agarraram.
Vi um vulto se aproximar, minhas pernas amoleceram, segurei firme no guarda roupa que era meu único apoio sólido. Péssimo momento para me sentir impotente. Um, dois, três passos macios no tapete. Miguel apareceu na porta.
Expirei todo o ar que continha nos pulmões.
“Miguel, por que não me respondeu?” - pensei.
Abaixei a mão segurando o metal do cabide e assumi uma postura relaxada.
— Hello princess. — Disse enquanto se aproximava. — Não se preocupe.
Olhei nos olhos de Miguel. Havia um brilho diferente, sua expressão não era mais suave como antes. Uma de suas mãos estava escondida atrás do corpo e ele sorria sadicamente. Meu cérebro ligou todos os sinais de alerta possíveis. Todos os pêlos de meu corpo se eriçaram.
— Princesa? — Miguel sorriu.
Estava próximo demais, calculei minhas chances de fuga e era apenas uma, se tudo desse certo.
— Sim... — Sorri com o máximo de naturalidade que consegui.
Miguel parou a um passo de distância. Abriu o sorriso mais largo que já havia visto em toda a minha vida, mostrando dentes perfeitamente brancos, os cabelos desarranjados com algumas mechas caídas sobre sua testa.
Silêncio.
Meu coração batucava desesperado por alguma compreensão.
Então com a mão direita Miguel ergueu uma faca enorme e afiada. Podia ver seu gume brilhar sob a luz da lâmpada de meu quarto.
— Chegou a sua vez de morrer, princesa. — O sorriso se alargou mais.
— Não! — Ao mesmo tempo em que gritei, joguei o cabide em seu rosto e corri. Precisava chegar à porta.
Cheguei à sala, me lancei na porta e girei o trinco desesperadamente, mas a porta estava trancada. Procurei as chaves sobre o sofá. Não estavam lá, nem a cópia extra se encontrava no suporte.
— Procurando por isto, princess? —Ele girou um molho de chaves no dedo indicador.
— Por quê? — Tentei ganhar tempo, mas ele se aproximou como um felino após encurralar sua caça.
Miguel não respondeu, apenas sorriu e ergueu a faca novamente. Minha única alternativa era tentar arrombar a porta, mas as chances eram mínimas. Meu coração estava acelerado demais, minhas pernas tremiam e eu não conseguia entender o motivo de eu ser a vítima. Lágrimas correram de meus olhos.
Em um ato desesperado bati meu corpo contra a porta, mas algo saiu errado, minha cabeça bateu com força na madeira. Minhas vistas escureceram.
♠♠♠♠
Já fazia mais de uma hora que Nia estava no banheiro e eu acabei por adormecer no sofá. Ainda estava meio grogue de sono quando a ouvi gritar. Fiquei em um dilema sobre ajudá-la ou não. Não seria cavalheiresco vê-la nua sem sua permissão. Ouvi outro grito alto. Que se fodesse o cavalheirismo, havia algo errado.
Segui pelo corredor e encontrei uma porta aberta. Era a do quarto dela.
No outro extremo do quarto havia outra porta e presumi ser do banheiro. Entrei nele e encontrei Nia adormecida no chão do banheiro. A água ligada. As extremidades de seu corpo já estavam enrugadas. Aproximei-me e a sacudi levemente.
Ela acordou assustada. Gritou e começou a me espancar.
— VOCÊ NÃO VAI CONSEGUIR ME MATAR! NÃO VAI CONSEGUIR! — Ela acertou em cheio um soco na minha cara.
Foi preciso segurar seus braços para que se acalmasse.
— Calma, sou eu, Miguel. — Falei confuso.
— Você quer me matar, mas eu não vou deixar! — Ela se debateu mais.
— Nia, eu não quero matar você. Era pesadelo seu. Você dormiu enquanto se banhava. — Expliquei.
Ela parou de se debater e me olhou nos olhos.
— Um pesadelo?
— Sim — confirmei com a cabeça. — Acho que é fruto de seu cansaço. Melhor se vestir.
Retirei-me do banheiro e de seu quarto porque era a coisa certa a fazer.
♠♠♠♠
Um pesadelo. Fora tudo um pesadelo terrível. O Miguel que me acordou não era sádico ou assassino.
Abri a porta de meu guarda roupas e encontrei minha camisola com a facilidade de sempre. A vesti e me dirigi até a sala onde Miguel me esperava. A me ver deu-me uma saudação amigável, mas não me tocou.
— Nia, precisamos conversar sobre algo sério que não pode esperar. — Realmente era sério, sua expressão não negava.
— O quê? — perguntei.
— Quero conhecer sua família.
O quê?! Ele queria conhecer minha família? O choque foi tamanho que comecei a rir.
— Minha família? Está brincando?
— Não. — Sua expressão era de seriedade, ele realmente era sincero sobre aquilo.
— Melhor você ir dormir. — Falei.
Ele se despediu, e com uma expressão magoada, saiu de meu apartamento.
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04:00 a.m.
Em um local subterrâneo um assassino cuidava de suas rosas.
Uma camiseta molhada fora displicentemente jogada sobre uma mesa próxima a um canteiro de colombianas amarelas.
Naquela noite ele deixara sua marca em três lugares.
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