14. Apenas Humano e Cinza
Posso imaginar o que Patrick pensava da minha relação com Michael. Hoje eu percebo que não podia fechar os olhos para o óbvio. Também não há muito o que negar.
Se poderia resumir, entre o fim e aquele rompimento.... Apenas que, houve uma inesperada conclusão.
"Você nunca se arrisca. Não sabe ouvir o coração." Michael batia a porta, esperava que fosse uma ofensa.
Precisava de mim, ele dizia. Qual versão, exatamente? Poucas pessoas nos conhecem de verdade, e lhe disse com toda sinceridade que nunca nos faltou, que precisava rever suas noções.
Não se pode exigir que alguém simplesmente se encaixe nas suas expectativas como um boneco. A vida seria muito fácil assim, não é?
Conclusões são raras. E muito menos fáceis. Entre Patrick e eu havia uma longa história em relação a elas.
Daquela vez, ele me encontrou numa finalização não menos melancólica. Ele jamais saberia, porém, atravessando minha porta, o quanto precisava mantê-lo longe, o quanto desejava que por mágica, aquelas palavras saíssem da minha boca.
Parece óbvio, porém, a medida que corríamos para braços alheios, o coração retumbando, forte e jovial, por desejos e negações, seria uma descoberta aterradora, eu soube que nada nunca mais seria o mesmo.
Enquanto eu me drogava na solidão de meu casulo, afastando alguém de quem nunca deveria ter me aproximado, Patrick seguia sua vida de sorrisos desinteressados, seguindo o rastro duvidoso daquele homem de branco, ele estava ocupado demais para ver qualquer coisa. Eu quis, em certo momento, que assim fosse.
Era seguro pensar que Patrick estivesse tão distraído com suas loucuras pessoais, que não avançaria novamente para além da linha. E estávamos bem assim, se quer saber. Por mais tempo do que imaginei.
Não... Eu não estava triste por afasta-lo. Naquela época, era um pensamento fixo que deveria espurgar cada gota daquele veneno. Mesmo que seja um conhecimento comum que seu corpo sozinho é incapaz de fazer uma desintoxicação completa. Precisava descansar e pensar. E bem, foi o que fiz. Só o que fiz, na verdade; pensei tanto até meu cérebro fritar. Então pintei rostos e plantas, em um momento pensei ter esquecido o porquê a cor azul me aterrorizava, até ver aquele rosto esbarrar na minha rotina, sutil e oceânico como as ondas de um mar calmo.
Patrick ia tão bem que não sei o que deveria sentir. Raiva? Eu não era tão mesquinho.
Naquela época, entre tantas outras, haviam caminhos paralelos se entrecortando diante dos meus olhos. Poderia chamar de Destino... Porém, por que era tão difícil fugir daquele clichê? Me perguntei. Naquela tarde, chorosa, deprimente e com certeza nada amigável para visitas.
O Destino me fez ser capaz de dizer a Michael que nunca seria quem ele desejava. E o mesmo Destino, trouxe Patrick, naquela mesma direção, abrindo minha porta como se fosse rotina.
Mais sarcástico do que gostaria, quis indagá-lo cara a cara, para então saber o porquê e então descartá-lo.
Quando ele segurou a minha mão e em meio as suas palavras gentis... eu quase cedi. Faltou tão pouco, tão pouco e eu simplesmente recuei. Bastasse uma frase e eu não precisava sofrer metade daquele peso.
Eu sei, Patrick. Eu sei que os meus demônios nunca assustaram você, como me assustavam. Não era hipocrisia, não era pena, eu sei. Eu não tive essa certeza só depois de me apaixonar por você, mas a noção foi muito mais forte. Você era tão verdadeiro que eu tentei procurar o seu truque, a sua rachadura.
Você fez algo semelhante, não foi? Eu sei que essa foi a sua intenção ao dizer aquilo. Para de querer que eu seja eu mesmo, isso dói. Gritei pra mim mesmo. Anos depois, quando tudo o que tínhamos para o presente era uma tempestade de ilusões que criamos para destruir um ao outro. Estava tudo bem até o ponto em que já não me reconhecia. Então você quis me conhecer.
Me conhecer após me transformar por completo, infelizmente, eu já não me conhecia. Infelizmente...
Te digo algo que não soube por muito tempo. Foi no momento que você segurou minha mão que eu me decidi, que precisava ir embora por um tempo.
Curioso como me ergui das cinzas, catando os pedaços, somente para queimar, de novo, mais lentamente.
No primeiro toque, um mísero e quente apertar em seus braços...
Incendiou a minha vida como as lavas de um vulcão aberto. Ainda era inverno, mas eu cederia ao seu calor infernal. Tão simplesmente como se fosse à prova de fogo.
Estávamos na sala da mansão Scaler, não nos víamos há meses, praticamente um ano. Me assustou vê-lo, não naquele segundo, com os instintos aguçados. Tão frágil e indefeso, uma criança estirada na minha sala.
Não havia armadura forte o suficiente para seu vendaval.
Céus, você não imaginaria o quanto eu evitei reler aquela maldita carta.
Como eu iria adivinhar que, no fundo do poço, sua voz me alcançaria? Magnética, ignorando as leis da ciência e qualquer linha traçada descuidadosamente.
Mesmo quebrado, mesmo fugindo... Só pra voltar, de alguma forma, como se o tempo não tivesse passado.
De novo, estava tão entregue, e fácil, eu disse que ele era fácil? Então, naquele instante, o que eu era? Quando ele arregalou os doces olhos e puxou meu braço, apertando-me tão forte que o mundo girou e parou ao mesmo tempo.
Fraco. Eu ainda era fraco demais. Do que adiantou fugir.... Do que adiantou...
Depois. Por enquanto, deixemos aquela viagem para outro momento.
A volta, e o que aquele abraço iniciou, é o que tornou o rumo da nossas vidas, dali em diante, muito mais opacos.
Não, ele não enxergava, não entenderia de qualquer forma. Resumi ao nosso silêncio, reprimindo máximo que pude, como quem consegue disfarçar uma dor aguda. Desfazendo as malas me obrigando a encarar todas as fraquezas dobradiças, as falhas no assoalho impecável.
Era incrível como não havíamos mudado nada, mesmo sem certeza do que se passava na mente do outro, nós ainda podíamos nos deitar na cozinha ou no gramado, lado a lado, para ver o céu noturno se estrelar. Num silêncio tão cúmplice, que cada pequeno gesto parecia significativo.
Afinal... Patrick me chamou. E eu voltei. Voltei como o dono sendo arrastado pelo cachorro. Ou o contrário.
Nesses momentos, era mais fácil negar que estávamos na verdade tão sozinhos quanto dois órfãos miseráveis, que era o que éramos. Que gradualmente nos víamos mais longe, como numa despedida que se fazia a cada dia que se passasse. Porém, naquelas escadas, sem jamais olhar para baixo, nunca nos importamos de sermos somente nada.
Juntos somente na simplicidade de existirmos e isso bastava.
Ali, naquele chão gelado, cansado da viagem e confuso com minha mera existência, Patrick me assustou, cortou a melancolia da minha linha de pensamento e sussurrou: "Você pode chorar, Jony. Se você chorar ou ficar triste, eu vou estar sorrindo." Cretino. Pensei, prendendo o ar.
Sorrir? É claro que vai. Como? Como consegue? Não sente dor ou tristeza?
E Patrick largou-me, sem amarras, num mar imenso, profundo e tão azul que quase me afoguei. E pode ter certeza que quis ter morrido ali mesmo.
Sim, cretino. Um cretino idiota. Com os dedos entrelaçados, à uma distância avassaladora, ele ainda tão casualmente me pediria pra voltar, invadiria cada falha e preencheria de uma luz acolhedora, quente e amável... O que eu poderia dizer ou fazer? O que restava daquela linha?
Desistente, exausto e egoísta; o que aquele Jony irritadiço, sem entender porque ter seu coração tão apertado e encurralado o fazia querer morrer, o que ele realmente quis?
"Então faça o que quiser", "Vá e não me importune com suas hipocrisias", "Eu não me importo", "Você faria o mesmo por qualquer um". "Tanto faz". Todas são válidas. Afinal, eu era um grande mentiroso.
O silêncio era minha armadura, assim como nossa linguagem mais antiga.
No silêncio era seguro, porém, eu respondi. O quanto odiava. Odiava que ele ainda fosse o mesmo.
Nós nunca havíamos passado o final de ano juntos.
De algum modo, eu consegui apenas ficar exaurido, meio irritado, meio perdido, com aqueles dois idiotas abrindo minhas janelas, falando alto e exalando tantos excessos que era difícil distingui-los. Porém não eram apenas eles, a cidade inteira estava em caos.
É claro, Patrick estava adorando tudo aquilo, enquanto eu, se pudesse desaparecer, o faria.
Com todas aquelas luzes e enfeites, músicas repetitivas e todo o clichê, só foi Patrick dizer algo sobre mar e barcos que Thomas ficou obcecado. É claro que eles iriam correr até mim e e carregar-me como se fosse óbvio que estivesse apenas o esperando. E... talvez estivesse.
Na calmaria do sono, pensando nas minhas perguntas, vejo-o sorrir e atravessar minha porta, dizendo-me um milhão de coisas sem quase nunca se preocupar em ouvir, rindo das minhas olheiras, abrindo meus armários e portas com a casualidade de um vizinho, tão incoveniente em correr por escadas que um dia iriam matá-lo, e eu repetia irritado as mesmas interjeições.
Fosse como fosse, podia me distrair de mim mesmo. Podia fingir que não havia falhado em manter a distância segura, que não me sentia solitário ou frágil demais.
Ainda procuraria, enquanto ele sempre esperava. Após o cansaço e a dor, eu procuraria sempre em Patrick a calmaria. Não importava o quanto isso soasse estranhamente contraditório.
Foi um Ano Novo marcante, caminhando naquela noite nevada, os três lado a lado, falando coisas que normalmente não pensávamos sozinhos, íamos tão despretensiosamente felizes e sutis, como um sorriso fraterno ou um aperto de mão, tão sem fé e esquecível. Sentamos e assistimos os fogos queimarem. Raciocinando comigo, soube que estava me perdendo. Afinal... o que nós éramos, o que seríamos? O que não seríamos em hipótese alguma e...
... Iria ser sempre assim?
Nos entrelaçaríamos a ilusões vis para construir nosso mundo e então, num instante em que quiséssemos fugir e fingir que ainda podíamos ser outra coisa, andaríamos de volta, atravessaríamos a porta e daríamos as mãos com um quente e aconchegante sorriso simplista de que nada mais importa? Havia dúvidas demais para dissimular com simplicidade. Eu não poderia voltar a fazer aquele tipo de coisa.
Estava quieto ali, em meio ao colorido que eles exalavam. Me sentia como a lua, inerte e observadora, inalterada enquanto as luzes do céu a ofuscavam inocentemente.
Patrick de repente vira-se e pergunta-me se estou bem, e por um segundo eu percebi que senti falta. Os olhos preocupados, que nunca compreendiam, mas enxergavam bem, se ele somente tivesse dado um passo a mais... teria me desvendado completamente.
Desleixei-me totalmente na dissimulação, já bastava somente existir, bem ali.
Olhar os fogos, silenciosamente, sem me preocupar em calar o meu coração, ou seria capaz de... me apaixonar ainda mais. Já sentiram isso? Esse desejo de não dizer nada, querendo poder sentir tudo sem deixar as faíscas escaparem com facilidade.
"Está tudo bem, sempre está tudo bem Patrick. Porque..." eu não lembro o que disse no fim.
Patrick segurou a minha mão, esticou-a entre as suas, e fitou com atenção. Analisando as linhas, os calos, as cicatrizes. Parecia procurar algo, porém, não disse uma palavra. Apertei-lhe fortemente, enlaçando meus dedos nos seus. Igualmente assumindo um silêncio misterioso, sem coragem de olhar nos seus olhos, de explicar em palavras o que acontecia quando podia senti-lo tão próximo, sem realmente tocá-lo... eu somente estava ali. Flutuando, quente e dormente, como uma alma sem corpo.
A verdade é que mal posso distinguir as memórias de antes e depois do álcool, da tontura e do calor intenso. Tudo se confundia e, se Patrick achasse que eu estava embriagado, melhor, pensei. Envergonhado poderia desejar simplesmente esquecer, mas no fim daquela noite, não havia muito mais que... uma coragem. Para finalmente, abrir a concha.
Ele estava bem ali, tão perto de mim, tão perto que podia ver a cor dos seus poros mais fundos... E ainda assim, nunca parecia ser o suficiente. Naqueles últimos meses eu seriamente senti como se tivesse endoidecido. Pensar demais no outro chegava a doer. Adormecido na cadeira ao lado, ele não notava.
Minha tentativa de saber se até mesmo alguém como ele, digo alguém sem medo de se abrir para qualquer um, poderia ter algo preso no fundo. Pensava intensamente naquela concha, sem saber.
A curiosidade era mais perigosa do que o próprio veneno.
Fitando seu rosto interrogativamente, eu finalmente entendi. O egoísta que eu era, por anos, tão aberta e claramente quase como um talento.
Não queria aquilo. Não gostei do que vi.
E somente por isso, percebi que mesmo querendo tocá-lo, destrinchá-lo e observá-lo, Patrick era... mais do que um ser exótico preso num vidrinho na estante do meu quarto. Nunca fui verdadeiramente um igual com ele, nunca fui... verdadeiramente eu, concluí.
É claro, aquilo poderia ser apenas uma curiosidade, porém, isso me faria apenas um tipo de pervertido, não é?
Poderia ter sido simples assim, se naquela época eu tivesse pensado mais na pessoa que me tornava, e menos na que eu ainda achava que era...
Enfim, o ponto daquela noite foi um pouco antes.
Estava exausto e só queria ir para o meu quarto. Duplamente mais bêbado do que eu, Patrick me seguia pelas escadas, tagarelando, atropelando as palavras, mutilando frases e rindo sozinho, tão animado quanto seria normal estar depois de todas as garrafas que ele e Thomas esvaziaram no caminho de volta.
Era a segunda vez que ele dormiria no meu apartamento, e eu não estava detestando tanto quanto queria aquela situação. Queria que ele ficasse. Mesmo que fosse o lugar onde me refugiava quando não queria receber interrogações de Tânia, mesmo que fosse meu casulo, não me senti invadido.
Escorando-se pelas paredes, largando os sapatos em qualquer direção, vomitando na minha banheira... não liguei pra nada disso. E sim, estava realmente surpreso comigo mesmo.
Andei até meu quarto, retirando o casaco e de repente ele veio atrás de mim, sentou-se confortável e despreocupadamente na minha escrivaninha e ficou ali, dizendo o mesmo de sempre enquanto tentava fitar um dos meus quadros na parede, ao mesmo tempo que não parava de sacudir os pés, para frente e para trás, fazendo um barulho repetitivo que contratava com as pausas de sua própria voz. "É incrível", disse, sobre um quadro que já tinha visto milhões de vezes antes. Não havia simplesmente nenhuma mudança, e ainda assim, toda vez ele agia como se fosse uma nova invenção, um olhar completamente novo. Me peguei na ideia de que, talvez fosse assim que ele se sentisse quando olhasse pra mim. Ou quem sabe nós, eu e meus quadros, fôssemos aos seus olhos a mesma coisa.
Patrick apenas ficou ali, sorrindo o mesmo sorriso inocente, corando pelos cantos, em seus instantes de lucidez, ele me disse, tão dolorosamente entusiasmado, que aquilo tudo... a noite, o céu, a alegria infundada e até mais exagerada do que qualquer emoção entre seus dedos... era porque... Muitas coisas iriam mudar em sua vida. Não, muitas coisas já haviam mudado. E toda aquela sua atitude desleixada, seus pés infantis a balançar no balanço de ferro, eram o analgésico.
Mercedes disse que pretendia ficar daquela vez, e que se não retornassem à Paris, poderiam se casar em Coven, ou algo assim, narrava as possibilidades com aquele tom bêbado e sonolento, que já não distinguia quais eram as especulações e quais eram os fatos.
Ele me disse muitas coisas, mas essas duas informações foram as únicas que ouvi. Mercedes ficaria, eles ficariam juntos definitivamente. Explosivo como fogos de artifício dentro do seu crânio.
No fim, nem mesmo quando queríamos, podíamos nos ouvir. Minha mente descarregara como uma bateria sem energia. Aquele sorriso bailava na minha frente e eu só queria conseguir entender porque naquele instante, mesmo estando a sós e tão supostamente expostos ao outro, eu sentia que... enfim, nos perdemos. O sonho se tornaria um sonho.
Sem respostas ou perguntas, quem sabe só precisássemos dormir. Me senti solitário, e um idiota.
Um estúpido com todos aqueles cuidados e pensamentos calados, palpitações estupidas e desejos vergonhosos... um idiota preso num ponto sem continuação.
Tudo estava frio e eu senti meus pés afundarem no chão, de uma vez, com uma única e pesada pancada na cabeça.
Naquela noite de neve que precedera a chuva, muitos sentimentos me tomaram, quem sabe aqueles dois, os mais próximos do chão, tenham vindo pela mesma razão e da mesma direção, para se complementarem. Quem sabe, esquecidos daquela certeza que nada nunca muda eu pude esquecer também que tinha enormes fraquezas, antes de todas aquelas que recentemente assimilei.
Quem sabe o sorriso verdadeiro não pôde florescer em mim vindo apenas para dar a luz a cópias fajutas, que no fim, já não contém uma única gota do original.
Mas eu sabia, sabia que uma verdadeira despedida nunca acabaria com um sorriso.
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