16-Eu não sou ela
"...Amor, eu estou dançando no escuro
Com você entre meus braços
Descalços na grama
Ouvindo nossa música favorita
Quando eu vi você naquele vestido
Estava tão linda
Eu não mereço isso
Querida, você está perfeita esta noite..."
|Ed Sherran-Dancing in the dark traduzida|
Conversando com a mulher loira do vestido social branco e blazer rosa por cima combinando com o sapato de salto preto, acabei mostrando uma foto da minha irmã e dos meus pais também, Carlota adorou ter tal interação comigo, como quase nunca está em casa por ser uma mulher muito ocupada com questões do trabalho, ficou contente em compartilhar poucos minutos de diálogo comigo.
Marcos não pisou de novo na casa desde aquela maldita discussão e Júlia também não deu as caras, provavelmente não deve ter tido tempo por causa do consultório de odontologia que dirige.
Decidi manter em sigilo meus sentimentos, por enquanto pelo menos, pois não mudará nenhum fato que venha a acontecer, o que é para ser, será.
Mastigo meu chiclete com nervosismo, tentando não transparecer para que Victor não sinta a vibração que seu sexto sentido percebe toda vez que deixo escapar qualquer simples deslize.
Como se me conhecesse a anos.
— Poderia por favor pegar minha camisa preta, aquela que ganhei da Júlia semana passada. — Pede ele sem proferir feito um crime, humilde e até meigo... piorando a situação.
Não que eu goste de ser tratada mal, obviamente, porém esse tom de voz...afeta ainda mais minha esperança boba de tê-lo comigo algum dia... improvável demais.
Deslizo a escova por seus cabelos desgrenhados e termino de arruma-lo para a ocasião especial que acontecerá hoje... o amor triunfando sob minha frustração.
Retiro os joelhos do edredom macio e deixo o pente sob a cômoda branco com espelho.
Victor permanece sentado e tranquilo, tamborilando os dedos em cima da própria coxa coberta por calça jeans azul escura.
"Não seja covarde, anda, fala logo que ama ele sua boba". Ordena a voz autoritária do subconsciente, o domínio dela fugiu de mim para a caralholandia.
Encontro a camisa citada por Victor e retorno a beira da cama para entregar a ele do lado certo.
Segurando a camisa, ele a coloca por cima da regata preta que expõe os braços musculosos.
Do fundo da alma, espero que algo saia da linha neste dia.
A tala no braço não foi necessária, foi somente uma luxação após a queda, então o clínico geral que nos atendeu apenas pediu raio-x e passou spray para dor e remédio para inchaço.
Tudo está desabando sob meu crânio e daqui a pouco sinto que vou vomitar.
Ajudo a abotoar o último botão próximo ao pescoço dele e aprecio o ar quente atingindo minha pele negra... quero beijá-lo, até que não reste vestígios de palidez nestes lábios carnudos.
— Acha que ela vai gostar do anel? — Sou violentamente tirada da conexão solitária que quase me fez roçar o nariz no dele, por um fio não deixei escapar.
Por que Victor, por que tem que ocupar sua mente com Júlia? Ela não te deseja da maneira que tanto anseio por ti.
Entenda... por favor, perceba.
— Tenho certeza, que mulher não gostaria de ser pedida em casamento e ainda ganhar uma joia assim, não é...— Expresso o mais direta o possível, distancio o corpo do dele e ajeito a postura.
Mesmo que eu suba em cima de uma prancha e use preto, escute rock e prefira o inexplorado e odeie elementos fofos... não significa que negaria tal bajulação, tal gesto de romantismo.
Cantalorando uma música qualquer, sigo junto a ele rumo ao jardim, pois Victor quer colher girassóis, suponho que pretende dar a ela... que erro, que mentira.
O meu maior pivor do ódio e indignação é: Eu não sou ela.
Não sou Júlia e sim, sinto inveja por isto.
Que se foda, nada mais será como antes.
Aguardo pacientemente Victor sentir e cheirar as flores da estufa enquanto canto uma música qualquer da Beyoncé — sou pega por uma sensação contagiante de dejavú novamente... não é o efeito Mandela.
Sentimento mais retrógrado... estranho e caloroso, trás conforto de alguma forma.
Enrosquei um dedo no outro e mantive a cabeça baixa por causa do sol ardente atingindo minhas íris escuras sensíveis.
"Estrague tudo, tente impedir de alguma forma, ou ele será dela e você ficará aí mastigando a porcaria do chiclete e ser a tia solteirona amarga".
Espanto e xingo a voz inesperada outra vez aparecendo.
— Está falando com quem? — Ouço a voz vibrante e descontraída dizer do outro lado da estufa coberta por vidro arredondado.
— Nada não... estava cantando. — Replico mentindo, remexo o pé dentro do sapato, a roupa parece mais quente e está insuportável ficar dentro dela.
Quantas horas mais vai durar esta tortura cruel? A incógnita preenche os ares frios ao meu redor.
Ninguém me avisou que o amor machuca e tampouco que destroça o coração não correspondido...da forma que se quer.
Horas depois.
Na adolescência, sempre era deixado de lado nas paqueras, ninguém queria a chata esquisitona da Le, não ligava muito apesar de obviamente ser ruim para meu coraçãozinho bondoso e livre e bobo.
Cresci e ignorei qualquer oportunidade de me relacionar com alguém por anos, terminei os estudos e não desviei dos meus objetivos e focos, bastava ter dinheiro e estava feliz, tinha minha família e ainda tenho.
Porém, cada fração da minha alma deseja retornar no tempo e buscar aquela Leila ingênua e conformada e livre da inveja e dos desejos impuros, da raiva, do amor solitário.
Morreu, simplesmente ela foi morrendo até não restar nenhum vestígio.
— Leila, preciso falar contigo. — Ouço Carlota me chamar e retorno a realidade, distanciado do caos particular que entrei.
Deixo a xícara contendo café em cima da mesa e dou ouvidos a mulher que mais parece estar sendo perseguida, correndo riscos.
— Meus filhos não podem saber...ninguém pode. — Carlota aproxima o rosto do meu para manter extrema particularidade.
Deve ser bem grave e importante para exigir tanta discrição.
— Pode dizer senhora. — Articulo o mais baixo que consigo, observando ao redor atentamente, para não sermos pegas de surpresa e o segredo escapar.
— Fui ao médico fazer alguns exames e os resultados já saíram, decidi que somente contaria tudo para você... É a única pessoa que confio plenamente. — Nem mesmo sua nora foi alvo da tamanha sinceridade, nem mesmo os filhos? O que deve ser?
Concentro o foco total nela e escuto, aquele presságio desgostoso envolve meu peito e aperta impiedosamente... sensitiva ou não, algo não está totalmente correto.
— Tenho um tumor na cabeça, as saídas não são para ir até a empresa na maioria das vezes, foram para realizar uma bateria de exames, a dor crônica e o diagnóstico do médico é o que me faz querer acordar todas as manhãs tendo a esperança de que Marcos e Victor irão se entender, fazer as pazes. — O tremer das mãos dela e o medo no olhar me afligem.
— Eles são minha vida, tudo que faço é pelos dois, apenas quero que vivam em paz quando eu partir...
— Partir? — Interrompo angustiada, espetos furam minhas articulações e a língua fica áspera.
— Sim, ele me deu poucos meses de vida, é inevitável, Leila quero ser bem clara e direta... Peço por tudo que mais ama, que cuide do Victor quando eu morrer, não poderei estar mais segura e em paz se não você quem cuidará dele. — Pede a mulher que agora chora desolada.
Perco três palpitações nisto.
Tal depósito de confiança foi inesperado.
— Promete que se não puder cuidar dele, pelo menos certificará que ele esteja em boas mãos? — As mãos levemente enrugadas apertam as minhas em súplica, dolorosamente Carlota me encara ansiando por respostas.
Júlia não tem a confiança da sogra para cumprir tal dever com o próprio namorado.
— Fique tranquila, cuidarei dele com muito amor. — Porque é toda sinceridade, amor este que consome minha alma, singelo.
Abraço a senhora oferecendo apoio e conforto do modo que posso, Carlota desaba em meu ombro.
Notícia terrível, perderei minha amiga, aquela que me deu a oportunidade de conhecer Victor e ajudar minha família.
Considero-a como uma figura materna secundária.
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