𖦹 XXXIII. CONFIANÇA
33. CAPÍTULO TRINTA E TRÊS
SCAR NÃO SE LEMBRAVA da última vez em que havia dormido tão profundamente, sem os pesadelos que a perseguia ou o peso das noites em claro. Mas aquela noite não foi como as outras. Não era apenas a exaustão, nem o calor dos momentos intensos que havia compartilhado com Vi horas atrás. Era a presença dela ao seu lado.
O calor do corpo de Vi irradiava conforto, enquanto a respiração suave e ritmada acariciava sua pele. O braço que a envolvia com firmeza, mostrava que, mesmo em sono, Vi não queria soltá-la.
Abriu os olhos devagar, piscando contra a pouca claridade do ambiente. Sua atenção foi imediatamente atraída para o rosto adormecido de Vi, a linha bem definida de seu maxilar relaxado, os cabelos em desordem, e um leve rubor subiu às suas bochechas. Ela não conseguiu evitar o pequeno sorriso que curvou seus lábios.
Quem poderia imaginar que algo assim seria possível?
O passado entre elas era um território hostil, repleto de desentendimentos, mágoas e escolhas difíceis. A ferida do término ainda doía – um rompimento abrupto e doloroso que havia deixado marcas impossíveis de serem esquecidas facilmente. Mas agora, com Vi segurando-a como se ela fosse a coisa mais preciosa, Scar sentiu um lampejo de dúvida sobre suas certezas. Talvez as coisas não fossem tão irreparáveis quanto acreditava.
Lentamente, ela passou os dedos pela mão de Vi, pousada sobre sua cintura. O toque foi hesitante, quase reverente, enquanto uma onda de calor subia por seu peito, espalhando-se até aquecer algo que ela nem sabia estar tão gelado. Era aterrorizante a intensidade com que seu coração reagia à ela.
A respiração de Vi mudou levemente, indicando que ela já estava acordando. Quando os olhos dela se abriram, trazendo consigo um brilho genuíno e um sorriso preguiçoso que parecia ter sido feito sob medida para desarmá-la, Scar sentiu o chão desaparecer sob seus pés.
Por que tinha que ser tão fácil?
━━━ Apreciando a vista? — ela perguntou enquanto sorria, aproximando mais o corpo.
Scar estremeceu com a proximidade, não estava acostumada com aquilo, e Vi, parecendo perceber, fazia de tudo para provocá-la ainda mais, deixando o espaço entre elas quase inexistente. O olhar intenso de Vi parecia atravessar todas as barreiras de Scar, e o sorriso nos lábios dela carregava uma confiança que fazia Scar perder o foco por um instante.
━━━ Já vi coisas melhores... mas até que você é bonitinha — respondeu sorrindo, tentando esconder o impacto que Vi causava. Mas o brilho malicioso nos olhos dela e o jeito como inclinou a cabeça, ainda mais próxima, deixavam claro que Scar não estava tão no controle quanto pensava.
━━━ Horas atrás você não diria isso, Scar — provocando, ela inclinou levemente a cabeça, os olhos cravados nos de Scar, desafiando-a ━━━ Não foi você que não conseguia nem mesmo falar enquanto... você sabe.
Scar sentiu o rosto esquentar, mas não deixou que a expressão de embaraço tomasse conta. Apertou os lábios, tentando ignorar o sorriso cada vez mais largo de Vi, e virou o rosto.
━━━ Não se empolgue, Violet — rebateu, o rosto começando a esquentar com as lembranças ━━━ Eu não disse nada para não te envergonhar. Achei que precisava de um incentivo.
Vi soltou uma gargalhada curta, o corpo quase em cima dela ao se aproximar cada vez mais, até que seus rostos ficaram a centímetros de distância.
━━━ Ah, é? Então foi ruim? — a voz dela baixou, rouca e intencional, e Scar engoliu em seco.
━━━ Eu deveria ir embora, não acha? — Scar retrucou, tentando recuperar o controle da situação, mas sua voz traiu um leve tremor.
Vi arqueou uma sobrancelha, claramente se divertindo com a luta interna de Scar, e deslizou um dedo pelo braço dela, fazendo Scar prender a respiração.
━━━ Ir embora? Depois de tudo? — Vi sorriu, o tom carregado de ironia, mas também de algo mais profundo que Scar não sabia se queria ou conseguia enfrentar ━━━ Você pode tentar ir embora, Scar. Mas será que consegue?
Scar apertou os punhos, as palavras presas na garganta. Ela odiava o efeito que Vi estava tendo sobre ela, como a simples presença dela conseguia retirar todas as suas defesas tão facilmente. Mas, ao mesmo tempo, parte de Scar não queria ir. Não agora. Não enquanto aquele calor ainda estava entre elas.
━━━ Não testa minha paciência, Vi — murmurou, desviando o olhar, mas sem se mover para longe.
Vi apenas riu de novo, se jogando para trás na cama.
━━━ Tá bom, Scar. Eu deixo você ficar mais um pouco na minha cama — o sussurro era suave, as palavras fazendo o coração bater mais rápido, mesmo que ela não quisesse admitir em voz alta.
Scar sentia uma onda inesperada de calor no peito, algo que a deixou mais confusa do que qualquer outra coisa. Não era só o toque de Vi, mas a maneira como os dedos dela se moviam devagar, quase como se estivessem mapeando cada centímetro de sua pele. Os toques eram leves, quase imperceptíveis, mas deixavam uma sensação reconfortante que não sabia como processar.
Ela nunca havia se permitido algo assim nos últimos anos. Nunca deixara alguém se aproximar tanto, física ou emocionalmente. E, mesmo que sua mente insistisse em erguer barreiras, seu corpo parecia se moldar ao carinho de Vi como se fosse o lugar certo para estar.
Vi, por sua vez, não parecia nem um pouco receosa. Ela se movia com a naturalidade de quem sabia exatamente o impacto que tinha e causava, mas sem pressa ou pretensão. Apenas deixava os dedos deslizarem suavemente pela curva da barriga de Scar, o polegar traçando pequenos círculos que enviavam arrepios bons pelo corpo dela.
Scar fechou os olhos por um momento, tentando ignorar o quanto aquilo parecia bom e estranho ao mesmo tempo. O jeito como Vi a tocava não tinha nada a ver com desejo bruto ou necessidade de controle. Era algo mais íntimo, quase gentil demais para o que Scar estava acostumada. Quase como era antes.
━━━ Está tudo bem? — Vi perguntou, a voz baixa, quase um sussurro, enquanto seu toque permanecia constante.
Scar abriu os olhos devagar, encontrando o olhar de Vi fixo no seu, repleto de uma ternura que parecia irreal. Ela sentiu o peito apertar outra vez, uma mistura de vulnerabilidade e conforto que sabia que sentiu falta por muito tempo.
━━━ Acho que está sendo fácil demais — murmurou, quase sem perceber que estava falando em voz alta.
Vi inclinou a cabeça levemente, um sorriso suave e triste curvando seus lábios.
━━━ Não tem que ser tão difícil como pensa, Scar. Não com a gente.
Os dedos dela continuaram seu caminho lento, subindo levemente até a lateral do corpo de Scar, que prendeu a respiração por um instante. Mas, ao invés de se afastar, ela deixou escapar um suspiro baixo, relaxando sob o toque de Vi.
Pela primeira vez em muito tempo, Scar sentiu algo próximo a paz. Uma paz que, contra todas as probabilidades, estava vindo de alguém que ela jurou manter à distância a qualquer custo. E, naquele momento, ela decidiu não lutar contra isso. Não agora.
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━━━ Agora deveríamos conversar sobre o que você veio fazer aqui? — Vi perguntou, sentada de frente para Scar, já vestida ━━━ Não estou reclamando, mas agora quero realmente saber.
Scar suspirou, o peso da realidade voltando a cair sobre seus ombros. Ela assentiu brevemente, o olhar desviando por um instante. Tudo o que havia acontecido entre elas, a reconexão inesperada, a intensidade das últimas horas... por um momento, ela havia se permitido esquecer o motivo real de estar em Piltover.
Jinx deveria estar arrancando os cabelos nesse exato momento.
━━━ Sim — murmurou, sua voz soando baixa mesmo que estivessem muito próximas ━━━ Mas você tem que acreditar em mim e, acima de tudo, não surtar, ok?
Vi inclinou-se levemente, os olhos fixos nos de Scar, como se pudesse enxergar através de cada camada que ela tentava esconder. Em um gesto quase automático, Vi colocou a mão na coxa de Scar, enquanto a outra subia para tocar seu rosto com uma delicadeza que fazia o coração de Scar apertar.
Era bom demais. E esse era o problema.
Scar sentiu a familiar onda de desconforto, não pelo toque em si, mas pelo que ele representava. A intimidade silenciosa que parecia tão natural para Vi a assustava em um nível que ela não conseguia explicar. Os olhares de Vi, os gestos sutis e significativos, o jeito como parecia querer cuidar dela... Era como se, por um instante, nada tivesse mudado entre elas.
Mas tudo havia mudado.
━━━ Ei — a voz de Vi a trouxe de volta, suave, mas firme ━━━ Seja lá o que for, só... me conta, 'tá bom?
Scar piscou, encarando os olhos de Vi.
━━━ Certo... Tudo bem — ela suspirou, arrastando-se pela cama para ficar mais perto dela ━━━ É o Vander.
Vi franziu as sobrancelhas, o nome pesando no ar como uma pedra jogada em águas calmas. A mão que antes tocava o rosto de Scar deslizou lentamente, os dedos passando de leve pelo ombro dela antes de cair na cama, a palma aberta, imóvel. Por um momento, Vi parecia processar o que havia acabado de ouvir, o olhar perdido em algum ponto entre Scar e o passado que ela sempre evitava relembrar.
━━━ Vander? — ela finalmente murmurou, a voz baixa, quase como se testar a palavra fosse menos doloroso ━━━ O que ele tem a ver com isso?
Scar respirou fundo novamente, sentindo o peso das palavras que precisavam ser ditas. O olhar de Vi estava fixo nela, intenso, mas cheio de incredulidade. Era como encarar uma tempestade prestes a se formar.
━━━ Não é exatamente o Vander que conhecemos, Vi — Scar insistiu, sua voz firme, mesmo que por dentro sentisse uma ponta de hesitação ━━━ Ele está... diferente.
Vi passou as mãos pelo rosto, como se precisasse se agarrar à realidade, antes de cruzar os braços e encarar Scar de cima.
━━━ Diferente? O que é tudo isso, Scar? — perguntou, a voz carregada de uma mistura de dor e raiva ━━━ Isso é outra jogada da Jinx? Porque, se for...
━━━ Não é jogada nenhuma! — Scar interrompeu, erguendo a voz mais do que pretendia. Ela se forçou a respirar fundo antes de continuar, mais calma ━━━ Vi, eu não estou mentindo. Eu sei o quanto isso é difícil de acreditar, mas é verdade. Ele foi... ele foi transformado. Eu não sei como, mas ele está vivo. Ou pelo menos algo parecido com vivo.
Vi balançou a cabeça, dando um passo para trás.
━━━ Isso não faz sentido. Se ele estivesse vivo, por que não voltou?
━━━ Porque ele não é o mesmo — Scar levantou-se, aproximando-se dela ━━━ Ele não sabe quem ele é. Não de verdade. Mas, por algum motivo, ele se lembrou da Jinx. Foi isso que nos mostrou que era ele.
Vi ficou em silêncio por um longo momento, o peito subindo e descendo de forma irregular. Seus olhos estavam distantes, perdidos entre o que Scar estava dizendo e as memórias.
━━━ Ele se lembrou da "Jinx"... — murmurou, quase para si mesma, antes de encarar Scar novamente ━━━ E o que vocês fizeram?
━━━ Não conseguimos fazer nada.
Vi sentou-se de volta na cama, os ombros curvados e o olhar fixo no chão. O peso das palavras de Scar parecia mais difícil de carregar do que qualquer golpe que já havia recebido. Ela esfregou as mãos no rosto, tentando encontrar sentido em tudo aquilo, mas a ideia de Vander estar vivo era mais do que sua mente conseguia processar.
Scar deu um passo à frente, parando de frente para ela. Vi levantou os olhos, encarando o rosto dela, e por um momento, o silêncio entre elas era tão denso quanto o ar de Zaun.
━━━ Sei que é complicado, mas você precisa acreditar em mim — a voz de Scar era baixa, mas carregava uma urgência que fez o coração de Vi apertar ━━━ Jinx pediu para eu vir te procurar. Ela queria que você nos ajudasse. Confie em mim. E confie na sua irmã.
Vi soltou um riso seco, cheio de dor, e balançou a cabeça.
━━━ Ela não é minha irmã. Minha irmã era a Powder.
Scar apertou os punhos ao ouvir aquilo, tentando controlar a raiva que subia. Mas, em vez de recuar, inclinou-se levemente, mantendo o olhar fixo no de Vi.
━━━ Se ela não é sua irmã, o que eu sou, Vi?
A pergunta pairou no ar como uma faca, cortante e direta. Vi abriu a boca para responder, mas as palavras não vieram. Ela viu a intensidade nos olhos de Scar, a mistura de mágoa, esperança e algo mais que ela não sabia se estava pronta para enfrentar.
Scar continuou, a voz mais séria agora.
━━━ Você precisa decidir, Violet. Não só sobre Jinx, mas sobre nós. Porque eu estou aqui, agora, pedindo que confie em mim. E, se não puder, talvez nunca devêssemos ter recomeçado isso.
Vi fechou os olhos, respirando fundo, tentando organizar os pensamentos e ignorar o aperto que sentia no peito.
Ela abriu as pálpebras devagar, olhando para a loira com os olhos perdidos. O silêncio que se seguiu era denso, incômodo. Finalmente, Vi ergueu a mão, pousando-a sobre a de Scar, como se aquele simples gesto pudesse preencher o vazio que havia crescido entre elas ao longo dos anos.
━━━ Eu... ok. Vou tentar — a voz dela saiu baixa, carregada de incerteza, mas o toque em sua mão permaneceu firme ━━━ Só não sei se consigo acreditar que o Vander realmente esteja vivo.
━━━ Você não precisa acreditar agora — Scar respondeu, sua voz calma, mas carregada de seriedade ━━━ Só precisa vir comigo e ver por si mesma. Depois disso, você decide o que fazer.
Vi ficou em silêncio por um momento, os olhos ainda fixos na mão de Scar, antes de finalmente assentir.
Havia um peso em seu peito que parecia impossível de aliviar, mas, ao mesmo tempo, a presença de Scar dava a ela uma força que ela não sabia que ainda tinha. Mesmo que cheia de dúvidas, Vi sabia que não podia fugir disso. Não mais.
Scar era capaz de a salvar e a destruir ao mesmo tempo. E com a mesma facilidade.
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