ᝬ 🥀 𖠵 chapter three, damn goddess.𓄹
Estou acordando em cinzas e pó
Enxugo minha testa e suo minha ferrugem
Estou inalando os produtos químicos
[...]
Estou acordando, sinto isso em meus ossos
O bastante para explodir meus sistemas
Bem-vindo à nova era, à nova era
IMAGINE DRAGONS - Radioactive
Mabel Queen
Atualmente...
O GRANDE PROBLEMA DE SE JOGAR DE UMA colina a oitenta quilômetros por hora em cima de uma bandeja de petiscos, junto com alguém que supostamente é seu amigo, é que, se na metade da descida você perceber que essa foi uma péssima ideia, já é tarde demais..
Escapamos por pouco de batermos em uma árvore, ricocheteamos em uma grande pedra e giramos trezentos e sessenta graus enquanto voava rumo à autoestrada. A bandeja idiota não tinha direção hidráulica. Na metade do caminho, desisti e apenas enterrei meu rosto contra o peito de Percy.
Ouvi as irmãs górgonas gritando, abri um dos olhos e dei uma espiadinha pelo ombro de Percy e vi de relance as cobras-corais dos cabelos de Euríale no alto da colina, mas não tive tempo de me preocupar com isso.
— Ok, então, eu acho que a gente vai bater.
Arregalei os olhos.
— O que quer dizer?
Me virei e vi que o telhado do prédio de apartamentos estava abaixo de nós como a proa de um encouraçado. Colisão frontal em dez, nove, oito...
Percy conseguiu nos virar de lado para evitar quebrar as nossas pernas com o impacto. A bandeja deslizou pelo telhado e disparou pelo ar. Ela voou para um lado e eu e o projeto de estrela do fomos para o outro. Enquanto caía na direção da autoestrada, uma imagem horrível cruzou minha mente como um raio: meu corpo se arrebentando contra o para-brisa de um SUV, e o motorista, irritado, tentando livrar-se de mim com o limpador de para-brisa: Adolescente idiota caindo do céu! Eu estou atrasado!
Por um milagre, uma rajada de vento nos lançou para um lado — o suficiente para nos desviar da estrada e nos fazer cair em cima de uns arbustos. Não foi uma aterrissagem suave, mas era melhor que asfalto.
Resmunguei um palavrão enquanto Percy gemeu, eu quase desmaiei.
Ele se levantou primeiro e depois, me ajudou a ficar de pé. Olhei ao redor, tentando superar a tontura e fiz um rápido inventário: havia alguns arranhões pelo meu corpo e um pequeno machucado no braço que estava sangrando, mas fora isso, o pior da queda havia sido absorvida por Percy, como sempre, as mochilas ainda estavam com a gente e minha arma havia voltado a ser simples prendedores de cabelo, a espada de Percy havia sumido, mas logo iria voltar para seu bolso, então tudo sob controle.
— O que a gente faz agora?
Percy fez uma careta e me indicou a colina. Era difícil não ver as górgonas, com seus cabelos coloridos de cobras e os coletes verdes do Bargain Mart. Elas vinham descendo com cuidado a encosta, mais devagar que a gente, mas com um controle muito maior. Aqueles pés de galinha deviam ser bons para escalar.
— Temos cerca de cinco minutos até elas nos alcançarem.
— Uma média ótima, considerando os últimos dias — murmurei.
Perto de nós, uma grade alta de arame separava a estrada de um bairro de ruas sinuosas, casas aconchegantes e eucaliptos altos. A grade provavelmente estava ali para impedir que as pessoas fossem para a autoestrada e fizessem coisas idiotas — como deslizar para a pista de velocidade sentado em uma bandeja de petiscos —, mas a grade possuía vários buracos grandes. Podíamos entrar facilmente no bairro. Talvez conseguisse encontrar um carro e dirigir para oeste rumo ao oceano. Eu não gostava da ideia de roubar carros, mas nas últimas semanas, em situações de vida ou morte, descobri que Percy tinha um talento especial para pegar vários "emprestados", inclusive uma viatura policial. Ele tivera a intenção de devolvê-los, mas eles nunca duravam muito e ser perseguidos por monstros provavelmente não entrava no seguro.
Olhei para o leste, como havia imaginado, a uns cem metros acima, a autoestrada atravessava o pé da colina. As entradas de dois túneis, uma para cada mão do trânsito, fitavam-no como órbitas oculares em um crânio gigante. No meio, onde estaria o nariz, uma parede de cimento se projetava da encosta da colina, com uma porta de metal que parecia a entrada de um bunker.
Poderia ter sido um túnel de manutenção. Provavelmente era o que os mortais achavam, se é que percebiam a porta. Mas eles não podiam ver através da Névoa.
Podia ser mais do que isso...
Dois garotos de armadura ladeavam a entrada. Usavam uma mistura bizarra de elmo romano emplumado, peitoral, bainha de espada, calça jeans, camiseta roxa e tênis brancos. O guarda da direita parecia uma garota, embora fosse difícil ter certeza por causa da armadura. O da esquerda era um cara robusto com um arco e uma aljava nas costas. Os dois empunhavam longos bastões de madeira com pontas de ferro, como arpões antiquados.
Cutuquei Percy, chamando sua atenção para aquilo.
O meu radar interno enlouqueceu. Depois de tantos dias horríveis, a gente finalmente havia alcançado nossa meta. Meus instintos me diziam que, se conseguisse entrar por aquela porta, eu poderia encontrar segurança pela primeira vez desde que os lobos nos mandaram para o sul.
Mais acima na colina, as górgonas atravessavam o telhado do complexo de apartamentos. A três minutos de distância, talvez menos.
— Você também sente que tem algo errado?
— Uma voz interior gritando que aqui não é o nosso território? Sim.
— Você tem razão, é claro — disse uma voz ao nosso lado.
Pulei pelo susto e agarrei o braço de Percy, que havia voltado ao estado de alerta.
A princípio, pensei que Beano havia conseguido aproximar-se da gente sorrateiramente de novo, mas a velha sentada nos arbustos era ainda mais repulsiva que uma górgona. Parecia uma hippie que tinha sido jogada para a beira da estrada uns quarenta anos antes, e desde então vinha reunindo lixo e trapos. Usava um vestido feito de tecido tingido, colchas rasgadas e sacolas plásticas de mercado. Seu chumaço de cabelos crespos era castanho-acinzentado, como espuma de cerveja escura, preso por um elástico com o símbolo da paz. Verrugas e pintas cobriam-lhe o rosto. Quando ela sorria, mostrava exatamente três dentes.
— Não é um túnel de manutenção — confidenciou ela. — É a entrada do acampamento.
Um calafrio percorreu a minha espinha. Acampamento. Sim, era de um lugar assim que a gente vinha. Um acampamento. Talvez aquele fosse nosso lar.
Mas algo parecia errado.
As górgonas ainda estavam no telhado do complexo. Então Esteno deu um grito de prazer e apontou na direção de Percy.
A velha hippie ergueu as sobrancelhas.
— Não há muito tempo, crianças. Vocês precisam decidir.
— Quem é você? — perguntou Percy.
Eu não tinha certeza se queria realmente saber a resposta daquilo. A última coisa de que precisava era outra mortal inofensiva que na verdade fosse um monstro.
— Ah, pode me chamar de Juno. — Os olhos da velha cintilaram, como se ela tivesse acabado de fazer uma ótima piada. — Estamos em junho, não é? Deram o nome a esse mês em minha homenagem.
Me inclinei na direção de Percy.
— Eu acho que essa velha é louca — sussurrei.
Ele concordou lentamente.
— Certo... Olhe, precisamos ir. Duas górgonas estão vindo para cá. Não quero que elas a machuquem.
Juno juntou as mãos sobre o coração.
— Que gentil! Mas isso faz parte da escolha de vocês!
— Nossa escolha... — Percy olhou, nervoso, na direção da colina.
As górgonas haviam tirado os coletes verdes. Asas brotavam de suas costas, pequenas asas de morcego, que brilhavam como latão. Desde quando elas tinham asas? Talvez fossem só enfeite. Talvez fossem pequenas demais para erguer uma górgona no ar. E, então, as duas irmãs saltaram do edifício e planaram em sua direção.
Ótimo. Simplesmente perfeito.
— Sim, uma escolha — disse Juno, como se não tivesse a menor pressa. — Vocês podem me deixar aqui, à mercê das górgonas, e ir para o oceano. Chegariam lá em segurança, eu garanto. As górgonas adorarão me atacar e deixá-lo partir. No mar, nenhum monstro vai importuná-los. Você poderiam começar uma vida nova, viver até uma idade avançada, ter uma família e evitar grande parte da dor e do sofrimento que os esperam no futuro.
Olhei esperançosamente para Percy.
— Você ouviu isso? Porque eu ouvi e adorei — sussurrei — Nós podemos viver em uma cabana, na praia...
Ele me lançou um olhar, parecendo tentado com aquela opção, mas então ele suspirou.
— Ou?
— Ou podem fazer uma boa ação para uma velha senhora — disse Juno — e me levar até o acampamento.
— Carregar a senhora? — Percy parecia ter esperança de que ela estivesse brincando.
Então Juno subiu a saia e mostrou-lhe os pés inchados e roxos.
A mão de Percy procurou instintivamente a minha e entrelaçou nossos dedos, parecendo dividido. Aparentemente, ele infelizmente tinha um irritante senso do que era certo, coisas de heróis.
— Não consigo chegar lá sozinha — disse ela. — Carregue-me até o acampamento, do outro lado da estrada, do túnel, do rio.
Fiz uma careta com aquilo, ela parecia bem pesada se eu fosse sincera. As górgonas estavam a apenas cinquenta metros, planando preguiçosamente na direção da gente como se soubessem que a caçada chegava ao fim.
Percy olhou para a velha.
— E eu e Mabel faríamos isso porque...?
— Porque é uma gentileza! — replicou ela. — E porque, se não fizerem, os deuses morrerão, o mundo que conhecemos desaparecerá e todas as pessoas de suas antigas vidas serão destruídas. Claro, vocês não se lembrariam delas, então suponho que isso não tenha importância. Vocês estariam a salvo...
As górgonas gritavam e gargalhavam enquanto se preparavam para a matança.
Ele apertou a minha mão e então me encarou, ainda parecendo dividido com tudo aquilo. Nossos olhos se encontraram e eu suspirei, mesmo que a ideia de vivermos até ficarmos velhos em alguma cabana beira mar, ainda haveria aquela coisa irritante, dentro da minha cabeça, onde as memórias deveriam estar.
Suspirei.
— Se a gente for para o acampamento — disse ele — vamos conseguir recuperar nossas memórias?
— Com o tempo — respondeu Juno. — Mas saiba que vão sacrificar muita coisa! Você perderá a marca de Aquiles. Sentirá dor, aflição e privação com mais intensidade do que jamais sentira. Mas talvez tenham a chance de salvar seus antigos amigos e suas famílias, e de reconquistar suas antigas vidas.
Passei as mãos pelo rosto, frustrada.
— Já falaram que você é irritante?
As górgonas voavam em círculos acima das nossas cabeças. Provavelmente estudavam a velha, tentando entender quem era a nova figura antes de atacarem
— E quanto àqueles guardas na porta? — perguntou Percy.
Juno sorriu.
— Ah, eles vão deixá-lo entrar, querido. Pode confiar naqueles dois. Então, o que me diz? Vai ajudar uma velha indefesa?
Eu duvidava profundamente que aquela velha fosse indefesa e pelo olhar de Percy, ele também. Na pior das hipóteses, aquilo era uma armadilha. Na melhor, era algum tipo de teste.
Desde que perdi a memória, minha vida toda era um grande "preencha as lacunas". Eu era __________, de __________. Sentia-se _________, e se algum monstro o pegasse, eu estaria ___________.
Peguei a mochila de Percy e ajeitei a minha própria nas costas, ele me lançou um olhar e eu sabia que a decisão já havia sido tomada.
— Vou carregá-la.
E pegou a mulher no colo.
Atravessamos a primeira pista do trânsito correndo. Um motorista buzinou. Outro gritou algo, que se perdeu no vento. A maioria apenas desviou e pareceu irritada, como se, aqui em Berkeley, fosse preciso lidar com um monte de adolescentes maltrapilhos atravessando a rodovia carregando hippies idosas e uma garota os seguindo enquanto segurava mochilas. Uma sombra o cobriu.
Esteno gritou alegremente:
— Garoto esperto! Encontrou uma deusa para carregar, é?
Uma deusa?
Juno gargalhou, encantada, e murmurou "Ops!" quando um carro quase os atropelou.
Em algum ponto à nossa esquerda, Euríale gritou:
— Pegue-os! Três prêmios são melhores que dois!
A gente disparou pelas pistas restantes. De alguma forma conseguimos chegar vivos à faixa entre as duas pistas da autoestrada. Vi as górgonas mergulhando e os carros se desviando dos monstros acima deles. Me perguntei o que os mortais viam através da Névoa — pelicanos gigantes? Asas-deltas desgovernadas? A loba Lupa disse que as mentes dos mortais podiam acreditar em praticamente qualquer coisa, exceto na verdade.
Corremos rumo à porta na encosta. Juno parecia ficar mais pesada a cada passo pela expressão dele.
Um dos guardas gritou. O cara do arco armou uma flecha.
— Espere! — gritou Percy.
Mas o garoto não mirava na gente. A flecha passou acima das nossas cabeças. Uma górgona uivou de dor. O segundo guarda, a garota, preparou a lança, gesticulando freneticamente para que a gente se apressasse.
Quinze metros de distância. Dez metros.
— Peguei! — berrou Euríale.
Olhei para trás no momento em que uma flecha acertou a testa dela. Euríale desabou na pista de alta velocidade. Um caminhão chocou-se contra ela e a carregou uns cem metros para trás, mas a górgona simplesmente escalou para ficar acima da cabine, arrancou a flecha da cabeça e voltou a se lançar no ar.
— Uau, essa foi boa!
Finalmente alcançamos a porta.
— Obrigado — Percy agradeceu aos guardas. — Belo tiro.
— Aquilo devia tê-la matado! — protestou o arqueiro.
— Bem-vindo ao nosso mundo — murmurou Percy.
— Frank — disse a garota. — Leve-os para dentro, rápido! Aquilo são górgonas.
— Górgonas? — A voz do arqueiro soou aguda. Era difícil saber muito sobre o garoto, oculto sob o elmo, mas ele parecia corpulento como um lutador, talvez com quatorze ou quinze anos. — A porta vai detê-las?
Nos braços de Percy, Juno gargalhou.
— Não, não vai. Adiante, Percy Jackson! Atravesse o túnel, cruze o rio! Vamos, Mabel Queen!
— Percy Jackson? Mabel Queen? — A guarda tinha a pele escura, e cabelos encaracolados saíam pelas laterais do elmo. Parecia mais nova que Frank... devia ter uns treze anos. A bainha de sua espada ia quase até seu tornozelo. Mesmo assim, ela falava como se estivesse no comando. — Certo. Obviamente vocês são semideuses. Mas quem é a...? — Ela olhou para Juno. — Deixe para lá. Entrem logo. Vou atrasá-las.
— Hazel — disse o garoto. — Não seja louca.
— Vão! — ordenou ela.
Frank xingou em outra língua — seria latim? — e abriu a porta.
— Vamos!
A gente o seguiu, Percy estava cambaleando por causa do peso da velha. Eu não sabia como a tal da Hazel iria segurar as górgonas sozinha, mas estava cansada demais para discutir.
O túnel atravessava a rocha sólida e tinha mais ou menos a altura e a largura do corredor de uma escola. A princípio, parecia um típico túnel de manutenção, com fios de eletricidade, placas de advertência e caixas de disjuntores nas paredes, e lâmpadas em gaiolas de arame ao longo do teto. À medida que a gente avançava morro adentro, o piso de cimento ia dando lugar a um mosaico de placas. As lâmpadas cederam lugar a tochas de bambu, que queimavam, mas não produziam fumaça. Algumas centenas de metros adiante, eu vi um quadrado de luz do dia.
Atrás de nós, as vozes das górgonas ecoavam pelo túnel. Hazel gritou. Me virei para trás e coloquei uma flecha no meu arco, pronto para ajudar a garota, mas então o túnel inteiro sacudiu com o estrondo de pedras caindo. Ouvi um grasnido igual ao que as górgonas haviam emitido quando Percy jogou um caixote de bolas de boliche nelas, em Napa. A extremidade oeste do túnel agora estava cheia de poeira.
— Será que não devíamos dar uma olhada em Hazel? — perguntou Percy.
— Ela vai ficar bem... Espero — disse Frank. — Ela é boa em ambientes subterrâneos. Continue andando! Estamos quase lá.
O que ele quer dizer com isso?
— Quase onde? — perguntei, confusa.
Juno deu uma risadinha.
— Todos os caminhos levam até lá, crianças. Vocês deveriam saber disso.
— À punição? — perguntou Percy.
— A Roma, crianças — disse a velha. — A Roma.
Pisquei, confusa com aquilo.
— Hã, eu tenho quase certeza de que Roma não fica na Califórnia...
Juno me encarou como se eu fosse estúpida, o que me fez torcer para que Percy deixasse aquela velha cair com tudo no chão.
Continuamos correndo. A luz no fim do túnel ficou mais forte e por fim a gente saiu à luz do sol. Diante de nós havia um vale côncavo com vários quilômetros de largura. O solo era marcado por pequenas colinas, planícies douradas e áreas de floresta. Um riacho límpido traçava um curso sinuoso a partir de um lago no centro e ao longo do perímetro, como um G maiúsculo.
A geografia podia ser de qualquer parte do norte da Califórnia — carvalhos e eucaliptos verdes, colinas douradas e céu azul. Aquela montanha grande afastada do mar — como era mesmo o nome? Monte Diablo? — erguia-se ao longe, exatamente onde deveria estar.
Mas eu tinha a sensação de que tinha entrado em um mundo secreto. No centro do vale, aninhada à margem do lago, havia uma pequena cidade de construções em mármore branco com telhados vermelhos. Algumas tinham domos e pórticos sustentados por colunas, como monumentos nacionais. Outras pareciam palácios, com portas douradas e jardins amplos. Eu podia ver uma praça descoberta com colunas independentes, chafarizes e estátuas. Um coliseu romano de cinco andares brilhava ao sol, perto de uma comprida arena oval que parecia uma pista de corrida.
Do outro lado do lago, ao sul, havia outra colina, com construções ainda mais impressionantes — templos, eu imagino. Algumas pontes de pedra cruzavam o rio que serpenteava pelo vale, e, ao norte, uma longa fila de arcos de alvenaria estendia-se das colinas até entrar na cidade. Pensei que aquilo parecia uma ferrovia elevada. E então me dei conta de que devia ser um aqueduto.
A parte mais estranha do vale ficava bem abaixo do ponto em que a gente se encontrava. A cerca de duzentos metros dali, do outro lado do rio, havia uma espécie de acampamento militar. Tinha mais ou menos dezesseis hectares, com barreiras de pedra nas quatro faces cobertas por espigões pontudos. Do lado de fora dos muros havia um fosso seco, também demarcado com espigões. Torres de vigilância de madeira erguiam-se em cada canto, guarnecidas por sentinelas armadas com bestas enormes montadas nos parapeitos. Estandartes roxos pendiam das torres. Do outro lado do acampamento, um amplo portão aberto estava voltado na direção da cidade. Junto à margem do rio havia um portão mais estreito, fechado. O interior da fortaleza fervilhava de atividade: dezenas de garotos entrando e saindo de alojamentos, carregando armas, lustrando armaduras. Eu ouvi o clangor de martelos em uma forja e senti o cheiro de carne cozinhando em uma fogueira.
O lugar lhe parecia muito familiar, mas algo não encaixava.
— Acampamento Júpiter — disse Frank. — Estaremos em segurança assim que...
Passos ecoaram no túnel atrás de nós. Hazel emergiu de repente. Estava coberta de poeira e respirava com esforço. Havia perdido o elmo, e agora seus cabelos castanhos encaracolados caíam-lhe sobre os ombros. Sua armadura tinha cortes compridos feitos pelas garras de uma górgona. Um dos monstros havia colado nela um adesivo de 50% DE DESCONTO.
— Eu as atrasei — disse ela. — Mas vão chegar aqui a qualquer instante.
Frank praguejou.
— Precisamos atravessar o rio.
Juno apertou ainda mais o pescoço de Percy.
— Ah, sim, por favor. Não posso molhar meu vestido.
Percy me encarou, não era difícil de perceber que ele já estava perdendo a paciência com aquela velha irritante.
— Vamos atravessar a porcaria do rio então — resmunguei.
A velha deu um sorriso brilhante. Ele tropeçou algumas vezes enquanto corriam para o rio. Frank e Hazel o ajudaram a se equilibrar enquanto eu tentava não perder as mochilas e nem meu arco.
A correnteza era rápida, mas o rio não parecia fundo. A poucos metros de distância erguiam-se os portões do forte.
— Vá, Hazel. — Frank encaixou duas flechas ao mesmo tempo. — Acompanhe Percy e Mabel para que as sentinelas não atirem neles. É minha vez de retardar as malvadas.
Hazel assentiu com a cabeça e entrou no rio, comigo a seguindo. Olhei para trás, notando que Percy parecia hesitar em entrar na água, o que era estranho, pois eu já havia percebido que ele simplesmente amava água.
— O Pequeno Tibre — disse Juno de forma afetuosa. — Ele corre com a força do Tibre original, o rio do império. Esta é sua última chance de recuar, criança. A marca de Aquiles é uma bênção grega. Você não pode conservá-la se entrar em território romano. O Tibre irá tirá-la de você.
— Se eu o cruzar, não terei mais pele de ferro?
Juno sorriu.
— Então, o que vai ser? A segurança ou um futuro de dor e possibilidades?
— Percy, vem!
Atrás dele, as górgonas guinchavam ao sair voando do túnel. Frank disparou as flechas.
Empurrei as mochilas para Hazel e preparei meu próprio arco, colocando uma das minhas flechas explosivas e atirei, pegando na asa de uma das górgonas, explodindo a mesma.
No alto das torres de vigilância cornetas soaram. As sentinelas gritaram e giraram as bestas na direção das górgonas.
Percy me encarou e então entrou dentro do rio, avançando. Logo, conseguimos chegar do outro lado do rio, ele colocou a velha no chão enquanto os portões se abriam. Dezenas de garotos de armadura emergiram deles.
Hazel voltou-se para Percy e eu com um sorriso de alívio. Então olhou por cima dos nossos ombros, e sua expressão transformou-se em horror.
— Frank!
Frank estava na metade do rio quando as górgonas o pegaram. Elas mergulharam do céu e o agarraram pelos braços. Ele gritou de dor quando as garras se enterraram em sua pele.
As sentinelas gritaram, mas eu sabia que elas não teriam como disparar. Acabariam matando Frank. Os outros garotos sacaram espadas e se prepararam para se lançar na água, mas chegariam tarde demais. Encarei Percy, sabendo que só havia um jeito de salvar o garoto.
Percy estendeu as mãos e o Tibre obedeceu à sua vontade. O rio se ergueu. De ambos os lados de Frank formaram-se redemoinhos. Mãos gigantes de água ergueram-se da superfície, imitando os movimentos de Percy. Elas agarraram as górgonas, que, surpresas, largaram Frank. E então levantaram as monstras estridentes com a força de um torno líquido.
Ouvi os outros garotos gritarem e recuarem, mas Percy permaneceu concentrado em sua tarefa. Ele abaixou os punhos com força, como se esmagasse algo, e as mãos gigantes mergulharam as górgonas no Tibre. As monstras atingiram o fundo e viraram pó. Nuvens brilhantes de essência de górgona se esforçavam para se recompor, mas o rio as desmanchava como um liquidificador. Em pouco tempo, todo e qualquer traço das górgonas foi levado pela correnteza. Os redemoinhos desapareceram, e o rio voltou ao normal.
Percy ficou parado na margem, parecendo perdido dentro da própria mente. Me aproximei e ele agarrou a minha mão, me puxando contra seu corpo e enterrou o rosto contra os meus cabelos.
— É estranho — sussurrou perdido — Eu me sinto... Vulnerável.
— Eu estou aqui.
Ele suspirou.
— Eu sei.
Eu estava tão presa no meu próprio mundinho, que demorei para perceber o silêncio perturbador ao nosso redor. Me afastei minimamente de Percy, mas ele ainda manteve o braço ao redor da minha cintura, como se estivesse com medo que eu desaparecesse.
Todos olhavam para nós dois. Somente a velha Juno parecia indiferente.
— Bem, foi um passeio delicioso — disse ela. — Obrigada, Percy Jackson e Mabel Queen, por me trazerem ao Acampamento Júpiter.
Uma das garotas emitiu um som engasgado.
— Percy... Jackson? E... Mabel Queen?
Ela falou como se reconhecesse os nomes. Eu a observei, na esperança de ver um rosto familiar. Ela era obviamente uma líder. Usava um suntuoso manto roxo sobre a armadura. Seu peito estava decorado com medalhas. Devia ter mais ou menos a nossa idade, com olhos escuros e penetrantes e longos cabelos negros. Eu não a reconhecia, mas a garota nos encarava como se tivesse nos visto em seus pesadelos.
Juno riu, encantada.
— Ah, sim. Vocês vão se divertir muito juntos!
E, então, para deixar o dia mais estranho ainda, a velha começou a brilhar e a mudar de forma. Ela cresceu até se tornar uma deusa reluzente de mais de dois metros de altura, usando um vestido azul, com os ombros cobertos por um manto que parecia feito de pele de cabra. Seu rosto era severo e imponente. Em sua mão havia um cajado com uma flor de lótus no topo.
Os campistas ficaram ainda mais perplexos, se é que isso era possível. A garota com o manto roxo se ajoelhou. Os outros a imitaram. Um dos meninos abaixou-se com tanta rapidez que quase se espetou com a própria espada.
Hazel foi a primeira a falar.
— Juno.
Ela e Frank também se ajoelharam, fazendo com que Percy e eu fôssemos os únicos de pé. A gente provavelmente deveria se ajoelhar também, mas aquela velha era uma folgada e eu não sentia a mínima vontade de demonstrar algum respeito.
— Juno, hein? — disse Percy — Se passei em seu teste, podemos ter as nossas memórias e as nossas vidas de volta?
A deusa sorriu.
— A seu tempo, Percy Jackson, se tiverem êxito aqui no acampamento. Vocês se saíram bem hoje, o que é um bom começo. Talvez ainda haja esperança para vocês.
Ela voltou-se para os outros garotos.
— Romanos, eu lhes apresento o filho de Netuno e a filha do Cupido. Há meses eles estão entorpecidos, mas agora despertaram. O destino deles está em suas mãos. O Festival de Fortuna se aproxima rapidamente, e a Morte deve ser desencadeada se vocês quiserem ter alguma esperança na batalha. Não me decepcionem!
Juno tremeluziu e desapareceu.
Eu olhei para Hazel e Frank, à espera de algum tipo de explicação, mas eles pareciam igualmente confusos. Frank segurava algo que eu ainda não havia percebido — dois pequenos frascos de argila com rolhas, como poções, um em cada mão. Eu não tinha a menor ideia de onde eles haviam surgido, mas vi Frank guardá-los nos bolsos. Frank me lançou um olhar como se dissesse: Falaremos sobre isso mais tarde.
A garota do manto roxo deu um passo à frente. Ela observava Percy e eu atentamente, e eu não conseguia deixar de sentir que ela queria me atravessar com a adaga.
— Bem — disse ela com frieza — um filho de Netuno e uma filha do Cupido que vem até nós com a bênção de Juno.
— Olhe — disse Percy — nossas memórias estão um pouquinho confusas. Na verdade, ela desapareceu. Eu conheço você?
A garota hesitou.
— Eu sou Reyna, pretora da Décima Segunda Legião. E... Não, eu não conheço vocês.
Essa última parte era mentira. Eu podia ver em seus olhos. Mas também compreendi que, se discutisse isso ali, na frente dos soldados dela, a garota não ia gostar e eu já estava com problemas o suficiente, não seria inteligente arrumar mais um.
— Hazel — disse Reyna — traga-os para dentro. Quero interrogá-los na principia. Depois os enviaremos para Octavian. Precisamos consultar os augúrios antes de decidir o que fazer com eles.
— Como assim? — perguntou Percy. — Decidir o que fazer comigo?
— Sem querer dizer nada, mas "interrogatório" soou meio ameaçador. Já temos a benção da deusa lá, isso não é o suficiente? — retruquei, cansada.
A mão de Reyna apertou com mais força o punho da adaga. Ela obviamente não estava acostumada a ter suas ordens questionadas.
— Antes de aceitar qualquer pessoa no acampamento, precisamos interrogá-la e ler os augúrios. Juno disse que o destino de vocês está em nossas mãos. Temos que saber se a deusa nos trouxe dois novos recrutas...
Reyna olhou para a gente como se achasse a ideia duvidosa.
— Ou — disse ela, mais esperançosa — se nos trouxe um inimigo para matar.
Percy se colocou protetoramente na minha frente e eu percebi, uma expressão séria surgindo em seu rosto e eu percebi, que mesmo que todo aquele exército tentasse nos atacar, o garoto em minha frente não deixaria eles tocarem em nem um fio de cabelo meu.
Mesmo após perdendo sua invulnerabilidade, Percy Jackson ainda emanava uma aura de poder.
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