002. Enquanto durou

ERA IDIOTICE PENSAR TANTO em algo que já havia decidido. Já havia decidido isso há muito tempo, quando deu as costas para os céus e desceu para a Terra, ficando junto da espécie que realmente lhe agradava. Definitivamente já havia decidido que não voltaria para o céu, de maneira alguma iria retornar para um lugar que tanto lhe deu dor de cabeça.

Mesmo que tivesse adquirido um hábito de passar a noite de olhos fechados, por não precisar dormir, havia sido diferente naquela noite em específico. Depois que Castiel saiu de sua casa, ela não conseguiu fechar os olhos de maneira alguma e passou a madrugada inteira andando de um lado para o outro dentro de casa. Mentalmente amaldiçoou o anjo por ter aparecido, o maior desejo dela era que nunca mais tivesse a ótima oportunidade de se encontrar com um anjo desde que desceu, tanto que evitava ao máximo se olhar no espelho.

Já estava claro quando ela finalmente deitou na sua cama. Pensou uma, duas, três vezes em ligar a rádio angelical, pensou muito em escutar a voz de velhos conhecidos naquela barulhenta frequência que normalmente nunca ficava em silêncio. Pensou, mas não o fez. Não fez, porque sabia que se fizesse, iria voltar no mesmo minuto que algum deles percebe se que ela estava ligada à eles novamente. Não fez porque não confiava em si mesma.

Naquele dia, Hazel ━ ou Lúcia, como era conhecida por seus vizinhos e demais pessoas desde que chegou ao Brasil ━ não saiu de dentro de sua casa, para a estranheza de seus conhecidos; ela não ligou a televisão, nem o rádio, muito mesmo conversou sozinha com suas plantas. Sua mente estava enfrentando um turbilhão de pensamentos. Pensou de novo na situação, quem sabe não devesse escutar Castiel ? Voltaria para o céu. Não, teria uma possibilidade de se tornar alguém como Zacarias e isso estava totalmente fora de cogitação. Mas também lembrou-se dos que eram realmente bons, e de novo, ela se contradiz em seus próprios pensamentos, nenhum deles eram realmente bons.

Ela foi retirada à força de seus pensamentos quando ouviu sua campainha tocar. Olhou para o relógio, não haviam se passado vinte e quatro horas ━ e Castiel ou nenhum outro anjo, iria ter o bom senso de tocar a campainha. Levantou-se e foi em direção à porta, sem noção alguma do que estava a esperando.

O FINAL DA TARDE ESTAVA CHEGANDO e com ela o tão esperado jogo que Hazel iria assistir. Já estava à caminho do barzinho quando encontrou alguns vizinhos que também estavam utilizando a camisa do Flamengo, assim como ela. Desceram a rua juntos e conversando animados pelo jogo, alguns apostaram o placar do jogo, mas a mulher preferiu ficar de fora dessa vez.

O bar estava lotado, o clima estava ótimo e já estavam na segunda rodada de petiscos que estavam sendo bancados pelo ricaço do bairro; embora tentasse ao máximo não tirar seu foco do que estava acontecendo ao seu redor, ficava difícil cada vez que seu pensamento corria de volta para a noite anterior. Suspirava a cada dois minutos e nem ao menos conseguiu comemorar como normalmente fazia quando seu time fez o primeiro gol aos quinze minutos do primeiro tempo.

Alguns de seus conhecidos passavam por ela e a cumprimentavam, alguns ainda tentavam jogar conversa fora, mas a maneira automática como a mulher estava respondendo foi o suficiente para que eles se despediram com um sorriso e um "até logo".

Mas agora, ela não tinha a menor certeza de que voltaria ou não a vê-los novamente.

NO FINAL DO JOGO, Hazel conseguiu mais uma vez apreciar como os humanos eram seres simples, que tinham uma felicidade genuína com coisas simples, como quando o seu time ganhava em uma partida de futebol, ou quando eles conseguiam concluir mais um dia longo de trabalho, ou até mesmo quando apenas acordaram para ter que enfrentar mais dificuldades, mas com uma fé de que poderiam superar aquelas e de que conseguiriam sorrir no final do dia.

Se despediu dos seus amigos e cantavam o hino do time em alto e bom som, comemorando a vitória que tiveram sob o rival. Agora Hazel estava retornando para sua casa sozinha, mas o tempo de caminhada não era o suficiente para que pudesse pensar com clareza. Sabia que se já não estivesse lá, Castiel não demoraria muito tempo para abrir suas asas e aparecer em sua casa, tal como uma assombração que deveria ter ficado no passado ━ e era exatamente isso que a mulher pensava de todos os anjos, que eles deveriam ficar em seu passado, sem maneira alguma de retornar. Mas nada saiu como ela havia planejado.

Bom, pelo menos ela tinha aproveitado enquanto tudo havia durado. De fato, não estava em posição de reclamar.

PACIENTEMENTE, Hazel esperou. Ela, com toda a certeza que tinha em seu corpo, negaria firmemente que estava ansiosa com a decisão que ela própria havia tomado. De um lado, sentia que estava traindo ela mesma, por outro, pensava que se não fosse, estaria traindo seu povo. Assim como fez pela primeira vez. Temia que fizesse de novo.

Já havia perdido as contas de quantas vezes havia olhado para o céu naquele dia, sem que fosse apenas para admirar a beleza dos astros que estavam dispostos lá, mas sim tendo o pensamento conflitante da parte "angelical" do céu, com barulhentos seres que juravam que eram servos e cavalheiros do Senhor e dos céus, criados exclusivamente para proteger o que o Criador havia feito.

Mas o pai não estava em casa agora. Não conseguia imaginar se os seus estavam perdidos ou não, embora fossem seres que supostamente deveriam seguir ordens, ela sabia que havia a possibilidade de que eles se tornassem imprevisíveis se não tivessem a quem seguir. Mesmo que tivesse se tornado completamente contra essa ideia de seguir apenas uma pessoa, seguir ordens e de se manter na linha, ela teria que admitir para si própria que talvez fosse perigoso deixar seres tão poderosos à mercê da própria arrogância e desespero por um líder.

━ E então ? ━ a voz atrás de si lhe chamou a atenção ━ Você irá ?

Hazel virou-se, e encarou Castiel tão profundamente que o outro quase podia sentir que ela desejava lhe arrancar de sua casca e mandá-lo de volta aos céus por meio de chutes. Mas, se fosse isso que ela tinha em mente, não foi o que demonstrou.

O levantar de ombros que ela tinha acabado de entregar a decisão final do anjo.

━ Se quiser, faça o anúncio na rádio, Castiel. ━ falou, abrindo as asas em seguidas, tão grandes e com uma bela coloração dourada que lembravam um fim de tarde, que quase ocuparam todo o espaço da sala onde estavam os dois ━ Hazel irá retornar para onde lhe era destinado antes.