
━━ 𝒔𝒐𝒎𝒆𝒕𝒉𝒊𝒏𝒈 𝒃𝒍𝒖𝒆
Um grito de angústia assombrava seu sonho. Afiado, grosseiro e mais cruel que a morte, ele zumbia em seu ouvido como o som agudo de um mosquito.
Os olhos de Myris se abriram. Sua língua estava pesada com um gosto amargo, e o quarto estava quente demais para qualquer conforto. Ela se encolheu no escuro do seu quarto. A noite havia caído enquanto dormia.
Entorpecida era a única forma de descrever a sensação de perda que a envolvia. Com a mente ainda confusa pelo sono, ela só conseguia pensar em uma coisa: sua mãe.
Era possível sentir tanto ao ponto de não sentir nada? Myris achava que sim.
Suas mãos subiram para seu rosto, esfregando as trilhas de lágrimas secas que coçavam suas bochechas. Ela não se lembrava de ter voltado para o quarto. Uma respiração leve e ritmada roçava a nuca.
A forma exausta de Rhaenyra estava encolhida ao lado dela. Pelo pouco de luz que o fogo fornecia, ela pôde ver que as lágrimas da irmã eram mais recentes. Linhas de preocupação marcavam sua testa, e um franzido puxava seus lábios. Nem mesmo no sono ela conseguia escapar.
Myris suspirou pelo nariz. Sua garganta doía terrivelmente.
A jovem princesa saiu da cama com cuidado para não acordar a irmã.
Ela passou pela comida fria deixada na mesa, dois pratos intocados, pegou o jarro de água em vez disso. Sua face se contorceu enquanto engolia o líquido. A bebida fresca fez pouco para lavar o gosto rançoso do remédio para dormir de Mellos.
Rhaenyra não havia recebido o mesmo tratamento. Se tivesse, seu sono não pareceria tão arduamente conquistado. Myris a observou em silêncio. Depois de um tempo, sua irmã se mexeu e se espreguiçou. Ao perceber que a cama estava menos cheia, Rhaenyra agarrou o travesseiro de Myris e o abraçou. Com um suspiro de conforto, voltou a dormir.
Observar esse gesto foi o suficiente para que os olhos de Myris queimassem novamente.
Ela se levantou da cadeira e caminhou de volta para a cama, e então passou por ela. Na parede ao lado, seus dedos finos deslizaram pela borda de um mural de dragões sobre a Baía da Água Negra.
A hora avançada era irrelevante enquanto ela se movia sem impedimentos pelos corredores estreitos escondidos nos salões de Maegor. Nada podia detê-la enquanto descia pelo labirinto que passará tantos anos mapeando.
Algo a atraía para os quartos sombrios abaixo do castelo, um anseio que a forçava a continuar por cada túnel estreito e degrau íngreme que tentava tropeçá-la.
Ela queria ver sua mãe.
Sor Harrold, o guarda juramentado da Rainha, protegia-a mesmo na morte. O rosto desolado do velho cavaleiro se iluminou com descrença, completamente perplexo ao vê-la se aproximar do altar das Irmãs Silenciosas no porão do septo. Suas grossas sobrancelhas brancas se franziram enquanto ele abria a boca.
Ela não lhe deu tempo para objetar.
── Eu quero ver minha mãe. ── como pedra, Myris não demonstrou nenhuma emoção em sua voz tensa.
── Princesa... ── Harrold implorou.
── Você me negaria? ── um tom afiado cortava suas palavras. ── De novo?
A traição estava em cada palavra. Parecia que ela já havia atuado nessa peça com ele antes. Ela não aceitaria o mesmo desfecho.
Sor Harrold engoliu o nó na garganta, sua língua pesada com o aviso que ele não podia dar. Ele acreditava que ela deveria lembrar da mãe como a mulher viva que ela era: bondosa, paciente, rápida de raciocínio e apreciadora dos prazeres simples da vida. A Princesa não encontraria conforto no corpo vazio que a aguardava.
No entanto, não era seu lugar fazer tais sugestões.
── É má sorte olhar para a morte, Princesa. Este não é um lugar para a juventude.
── O Estranho não é estranho a esta Casa, Sor. ── o olhar de Myris estava vazio. ── Ele já caminhou por estes salões mais vezes do que posso contar.
Como uma maldição, ele não esperava ociosamente pela velhice. Fogo e Sangue eram suas palavras, e Fogo e Sangue os haviam encontrado.
Envelhecido dez anos nos últimos dois dias, Westerling não encontrou forças para discutir mais. O cavaleiro manteve seu olhar firme enquanto se afastava. Por Aemma, ele disse a si mesmo.
Myris pausou por um momento apenas para reunir sua coragem antes de marchar para a frente.
As Irmãs Silenciosas olharam para cima com sua chegada abrupta.
── Saíam. ── ordenou Myris com uma voz cansada demais para alguém tão jovem.
Elas inclinaram a cabeça e saíram da sala. Sor Harrold não fechou a porta, retomando seu posto na soleira enquanto escutava por qualquer sinal de angústia.
Myris sorriu melancolicamente enquanto se aproximava do altar onde sua mãe descansava. Nem mesmo a morte podia diminuir o amor que ela sentia.
A testa de Aemma estava relaxada, seus olhos fechados, e seus lábios não formavam nem sorriso nem careta. Apesar da palidez azulada de seus lábios e do cinza de sua pele, sua mãe parecia mais tranquila que estivera em meses, quase como se estivesse dormindo.
Sua mão penteou suavemente o cabelo prateado de sua mãe, calmamente. A mudança de papéis não passou despercebida por Myris. Era apenas uma gota de afeto na paciência aparentemente interminável que sua mãe sempre tivera por ela.
── Eu faria mil tapeçarias com detalhes tediosos se você apenas abrisse os olhos.
Uma barganha inútil, mas que ela se sentia compelida a fazer. O silêncio doía mais do que ela estava preparada. Suas lágrimas vieram rápida e suavemente. Myris não fez nenhuma tentativa de escondê-las.
Por um tempo, ela ficou ali, passando os dedos pelo fino cabelo de sua mãe, exatamente como Aemma sempre fazia por ela nas noites inquietas.
Daella, mãe de Aemma, também morrera no parto. Será que alguém alguma vez consolará sua mãe da mesma forma que sua mãe as consolava? As sobrancelhas de Myris se contraíram com esse pensamento desconcertante.
Sua mãe nunca parecerá tão pequena. Os olhos de Myris vagaram pelo corpo curto de sua mãe. Um tecido modesto cobria seu peito, e outro, sua cintura, com o ventre ainda inchado destacado entre eles.
Apesar das centenas de velas que iluminavam a sala escura, o sangue de Myris gelou.
À espreita, na borda do tecido baixo, estava uma ferida vermelha. Ela levantou a borda do pano, um pouco, depois mais, e depois mais, enquanto a ferida parecia não ter fim.
A mão de Myris cobriu sua boca para abafar seu grito.
Grande e profundo, o corte retorcia a pele, os pontos grossos mal seguravam a carne dilacerada. Era um horror para o qual ela não estava preparada. De quadril a quadril, sua mãe quase havia sido partida ao meio.
── Por favor, não... Viserys, não!
Os olhos de Myris se fecharam com força enquanto o som dançava ao vento. Náusea invadiu sua boca.
O ruído de passos tropeçando nas pedras a despertou das imagens. Assustada, Myris largou o tecido para esconder o trauma. Ela se virou para a fonte do som, ainda com o horror estampado em seu rosto.
O rei Viserys passou tropeçando pela forma rígida de Sor Harrold enquanto entrava na sala. Profundamente imerso em seu luto, e em seus copos, seus olhos marejados tentavam enxergar o cômodo iluminado pelas velas com pouco sucesso. O choque tomou conta de seu rosto quando eles se focaram na forma borrada de sua filha.
── Aemma? ── ele murmurou, como se estivesse vendo um fantasma.
Ele não tinha tanta sorte.
Uma raiva, quente e ofuscante, parecia consumi-la. A mão de Viserys se estendeu para acariciar sua bochecha com reverência enquanto ele se aproximava, mas Myris a afastou friamente.
── O que você fez? ── ela olhou para o pai como se fosse uma besta estrangeira, seu tom tão gelado e profundo quanto o de sua mãe quando contrariada.
── Aemma... ── ele suspirou novamente, seu estupor embriagado, carregado de arrependimento, nublava tanto a mente quanto os olhos.
── Não. ── Myris sussurra de volta. Ele não tem o direito de dizer o nome dela daquela maneira: lamentoso, carinhoso.
A mente nublada de Viserys clareou ao olhar para ela e depois para o corpo atrás dela. Um suspiro de desespero foi tudo o que conseguiu oferecer. Seus braços se ergueram, convidando-a para seu abraço.
── Não! ── a Princesa rosnou, empurrando-o para longe da mesa que ela guardava.
Ambas as mãos pressionaram seu peito enquanto ele tentava segurá-la, confortá-la, e com mais força do que deveria, ela o fez tropeçar para trás.
── Não, você não tem esse direito! ── cada palavra foi pronunciada com veneno.
Sor Harrold e o Lorde Comandante Redwyn correram para a sala ao ouvir o grito.
Os cavaleiros observaram, escandalizados, enquanto Myris ficava sobre o pai em um ataque de punhos cerrados e empurrões, afastando-o ainda mais. Viserys fez pouco para se defender ou dissuadi-la, aceitando o castigo com silenciosa aceitação enquanto era forçado para trás.
Com um grito furioso, Myris o empurrou de volta contra uma mesa de ferramentas, o vidro e o metal se estilhaçaram no chão com o impacto. O rosto de Viserys se contorceu de dor.
Westerling agarrou os braços da Princesa, puxando-a para trás e contra ele antes que ela pudesse avançar mais sobre o Rei bêbado. A expressão pesarosa de Viserys apenas a enfureceu ainda mais.
── Você prometeu! ── Myris acusou o Rei, suas palavras foram um golpe mais afiado do que qualquer soco. ── Você prometeu que...
Sua voz falhou em um soluço enquanto perdia o pouco de firmeza que ainda lhe restava.
── Não é justo! ── o lamento doloroso rasgou sua garganta quando ela percebeu que Harrold não a soltaria. ── Não é justo!
Por que ninguém se importava além dela?!
Harrold só pôde segurar a garota.
── Eu sei, Princesa... ── ele sussurrou de volta. ── Eu sei.
Ele a acalmava suavemente.
Harrold não podia ser imparcial à sua dor. Não de novo. E quando a luta de Myris se foi, e ela caiu ao chão sob o peso de tanta tristeza, Harrold se ajoelhou com ela.
── Vossa graça? ── Lorde Redwyn parecia completamente dividido ao olhar entre o Rei agredido e a Princesa. Viserys se ergueu com dificuldade, gemendo quando sua mão queimou de dor. Pequenos rastros de sangue pingavam de seus dedos.
O coração de Harrold afundou em medo quando percebeu que o Rei estava ferido. Redwyn parecia angustiado com a descoberta. Qualquer outro agressor já teria sido atravessado por uma espada ou arrastado para a masmorra. A mão de Harrold apertou protetoramente ao imaginar que Redwyn poderia ordenar isso apenas por princípio. Ele se inclinou mais sobre a jovem garota, protegendo-a da possibilidade.
Redwyn aguardava as ordens do Rei. Apenas os soluços suaves de Myris quebravam o silêncio tenso da sala.
Viserys não deu atenção à preocupação deles. Um tanto entorpecido pela dor devido ao estado de embriaguez, ele observou os danos quase atônito. Um vidro havia se quebrado sob seu peso, e o pequeno fragmento escuro em suas feridas brilhava sob a luz pesada das velas.
── Meu rei... ── o tom preocupado de Lorde Redwyn o incitava a mostrar-lhe o ferimento.
Viserys, em vez de mostrar a gravidade de suas feridas, apertou o punho. Mais sangue escorreu dos cortes enquanto Viserys escondia o dano. Ele olhou para sua filha com um olhar estranho...
Sor Harrold sentiu seu coração bater dolorosamente com o pensamento sombrio de que o Rei poderia exigir sua cabeça.
── Vossa graça... ── ele sabia que sua voz tremeu de medo.
Viserys ignorou os dois cavaleiros que aguardavam sua direção. Ele apenas olhou para a garota chorando no chão, de costas para o pai, enquanto soluçava nos braços de outro. Aemma não poderia mais consolar sua doce garota.
Diga-me o que fazer, ele implorou silenciosamente à esposa. Aemma não respondeu.
Viserys testemunhou seu maior medo se desenrolar diante de seus olhos. O mundo se tornou dolorosamente claro naquele momento. O desespero o consumiu novamente.
── O que eu fiz? ── Viserys perguntou a si mesmo.
Aemma permaneceu imóvel, indiferente aos gritos que costumavam levá-la à ação de qualquer canto dos corredores.
── Vossa graça, o senhor está ferido, deixe-me...
Viserys se afastou de todos eles, o sangue fluindo de sua mão enquanto ele tropeçava de volta à porta.
── Cuide de minha garota. ── um pedido, não uma ordem, na voz quebrada do homem.
O silêncio na sala era ensurdecedor.
Os soluços de Myris haviam cessado.
O sol da manhã tardia subia enquanto os sinos do Grande Septo ecoavam.
Multidões de centenas haviam se reunido no monte, seguindo a carruagem fúnebre, cada rosto pintado com uma tonalidade marcante de luto. Cada vestido preto, cada véu, cada estandarte anunciava uma perda. Uma Rainha amada tirada cedo demais…
E um herdeiro aguardado que nunca teve uma chance.
O pequeno conselho do Rei estava à frente das massas em silêncio, os lordes e damas que haviam se reunido para o torneio de Viserys logo atrás. As únicas cores em exibição eram as capas vermelhas e brancas dos cavaleiros e homens de armas jurados à Casa Targaryen.
Dos sete membros da Guarda Real, apenas um estava afastado do Rei. Sor Harrold posicionou-se próximo às jovens Princesas, protegendo as garotas enlutadas dos olhares que pôde. O Príncipe Daemon, em um raro ato de humildade, juntou-se a ele.
Myris não prestava atenção em nenhum deles.
Era costume dos Targaryen queimar seus mortos.
Colocada sobre uma pira funerária de rosas brancas e louros, o corpo da Rainha Aemma estava envolto em tecido fino algodão, cada centímetro meticulosamente bordado com os motivos de dragões, falcões e escamas que deveriam protegê-la, um sudário fúnebre digno de uma Rainha.
Em uma pira adjacente menor estava um segundo corpo delicadamente envolto. Miniatura comparado ao outro, sua forma pequena era fácil de se perder. Baelon.
Nenhuma das formas dava qualquer indício dos horrores que escondiam. Myris, no entanto, sabia.
Seus olhos, tão vermelhos e irritados quanto os de sua irmã, só podiam fitar a cabeça de sua mãe. A coroa da rainha Alysanne, agora de sua mãe, estava ajustada sobre sua testa envolta. Queimar o símbolo do fardo compartilhado da coroa era uma mensagem por si só. Um ato de contrição, se é que já vira um.
Myris lançou um olhar vazio ao pai.
O Rei estava afastado de suas filhas, devastado ao ponto de estar sem palavras e sem sentido enquanto observava as piras. Se alguém notou o curativo em sua mão, não se demorou nisso. Um acidente, poderia-se supor, dado seu estado.
O dragão de Rhaenyra, Syrax, estava no topo da colina, aparentemente tão perdida quanto sua cavaleira sobre o que fazer a seguir. Seus grunhidos impacientes de angústia não trouxeram consolo. Ela deu um chamado triste, chorando da maneira que sua cavaleira vinculada gostaria de fazer.
Rhaenyra não cedeu ao impulso. Como poderia, com o estado de sua irmã e pai? Ela também compartilhava o olhar abatido da irmã, mas outra emoção endurecia seu rosto. Raiva. Ela não conseguia olhar para nada além do horizonte por muito tempo.
O funeral inteiro parecia estar olhando para elas, o peso dos olhares pressionando-as a fazer algo, qualquer coisa. Mas o luto é uma coisa teimosa...
Apenas Daemon foi corajoso o suficiente para avançar. Ele se inclinou para o ouvido de Rhaenyra, esperando incitar algum sinal de vida.
── Eles estão esperando por você. ── ele também estava desesperado para que o constrangimento acabasse.
Se Rhaenyra o ouviu, ela não fez nenhum movimento para obedecer.
Um olhar para o lado provou ser igualmente inútil; Myris estava perdida em seu próprio olhar distante.
Ele ofereceu sua mão, esperando que desse a Rhaenyra a coragem para continuar. Era seu dragão que supervisionava a pira, e seria ela quem teria que dar o comando.
Sua urgência teve um efeito adverso.
── Nyke pendagon lo... ── Rhaenyra estalou em Alto Valiriano. ── Syt lī dorolvie bona ñuha lēkia glaestan, ñuha kepa biarves.
(Eu me pergunto se, por aquelas poucas horas em que meu irmão viveu, meu pai finalmente encontrou felicidade.)
Daemon lançou seu olhar ao irmão enlutado, a intensidade suficiente para queimar um buraco. Viserys, perdido em seu luto, era uma casca do homem que fora dois dias antes.
── Aōha kepa jorrāelagon ao sir tolī mirre. ── o incentivo e a simpatia eram estranhos de ouvir em sua língua.
(Seu pai precisa de você agora mais do que nunca.)
Suas palavras, embora bem-intencionadas, lembraram Rhaenyra da amarga verdade:
── Kesan dōrī sagon iā tresy.
(Eu nunca serei um filho.)
Rhaenyra respirou fundo, endurecendo seus nervos ao se afastar da irmã e do tio, caminhando em direção ao seu dragão dourado.
── Dr... ── ocomando engasgou em sua garganta, seu som perdido no vento e nas ondas que sussurravam ao redor deles. Ela congelou. A céu aberto, não havia tio ou cavaleiro para se esconder. O peso de sete reinos repousava sobre seus ombros para o comando.
Assim que seu joelho estremeceu e seu pé começou a dar um passo para trás, ela sentiu uma mão. Pequena, mas forte, ela a firmou na base de suas costas, recusando-se a deixá-la recuar.
O encorajamento silencioso de Myris deu-lhe a coragem para continuar.
── Dracarys, Syrax!
A jovem dragão abriu a boca, expelindo uma coluna de chamas brilhantes que acenderam ambas as piras funerárias com um único sopro. Os corpos foram consumidos pelo calor incomparável.
Rhaenyra puxou a mão de Myris de suas costas, entrelaçando seus dedos em um aperto desesperado enquanto observavam mãe e irmão queimarem.
Das cinzas sua casa uma vez se ergueu e às cinzas retornariam.
── Os Deuses são cruéis. ── decidiu Rhaenyra enquanto assistiam o vento levar a fumaça negra. ── Para finalmente dar ao nosso pai seu herdeiro apenas para roubá-lo no mesmo dia.
── Se os Deuses quisessem que ele tivesse um filho, mamãe teria dado. Mas os Deuses não decidiram seu destino, não é?
Rhaenyra apertou a mão de Myris com mais força, sem aceitar ou discordar de suas palavras. Em meio à fumaça e à brisa do mar, permaneceram em silêncio nas recordações de tempos mais felizes. Quão cruel, de fato, que o momento cheirasse a lar.
Atrás delas, seu pai estava sozinho diante de um mar de enlutados, nenhuma mão estendida para ele.
A morte da Rainha Aemma abalou profundamente os alicerces da Casa dos Dragões.
A outrora família unida parecia ter se dissolvido da noite para o dia, com cada membro mergulhando na solidão para esconder seu luto.
Viserys se refugiou em seus aposentos, saindo apenas quando convocado para o conselho. Seu antigo passatempo casual tornou-se uma obsessão implacável. A Velha Valíria parecia ter sido esculpida em pedra em questão de dias, já que cada momento acordado era gasto se fixando na civilização caída e em sua maquete em escala. Era mais fácil perder-se com um fantasma do que permanecer muito tempo com outro.
Rhaenyra também mergulhou em sua paixão para escapar do peso que havia no castelo. Ao amanhecer, ela se levantava para voar nas asas douradas de Syrax. Só ao anoitecer retornava. Ela começou a fazer suas refeições sozinha em seu quarto, já que nem Viserys nem Myris pareciam participar mais de encontros em família.
Myris não fugiu com a severidade de sua irmã, nem permaneceu parada para apodrecer como seu pai. Ela se tornou ainda mais evasiva em seus movimentos. Tanto que um rumor se espalhou pelo castelo de que ela havia usado a antiga magia de sangue de Visenya para mudar de forma. Como alguém poderia explicar como ela se movia pela Fortaleza como um rato na noite, presente em um momento e desaparecida no outro? Seu lampejo de cabelo prateado-dourado era visto apenas de passagem, enquanto ela evitava guardas e damas com maestria.
Até o Sor Harrold havia desistido de persegui-la.
Infelizmente para Myris, uma jovem dama estava ainda mais determinada a encontrá-la.
Nos tranquilos jardins reais, Myris estava sentada na beirada do lago de pedra, com suas botas deixadas de lado, descansando os pés na água rasa. Suas costas estavam curvadas de forma desajeitada enquanto ela se concentrava no esboço em seu colo. Uma flor crescendo da água estava retratada com grande detalhe.
── Você é muito talentosa. ── uma voz melodiosa interrompeu o silêncio dos jardins.
Alicent Hightower alisou sua saia enquanto se sentava na borda da fonte. Nenhuma outra dama seria tão ousada a ponto de se sentar ao lado dela. Alicent, no entanto, era tão querida por ela quanto uma irmã.
Myris apenas a olhou de relance antes de continuar a desenhar.
── Prefiro pintar.
── Ah? ── Alicent não se intimidaria com palavras curtas, ela fora requisitada para verificar o estado das Princesas, e isso faria.
── É mais fácil cobrir os erros.
── É um lindo dia para pintar. ── disse a dama, olhando para o céu azul e límpido acima delas. ── Por que não pinta?
── Acho que o mundo anda sem cores ultimamente.
Alicent franziu a testa, notando o vestido preto que a princesa estava usando.
O preto sempre foi uma cor da Casa Targaryen, mas nunca de Myris. A jovem preferia cores claras como rosa e lilás ou tons mais ricos como dourado e vermelho. E, ocasionalmente, havia o azul, a cor de sua mãe, mas nunca o preto.
Agora, era tudo o que ela vestia desde o falecimento de sua mãe.
── É um lírio-d’água estranho. ── Alicent referiu-se ao desenho em preto e cinza que Myris sombreava.
── Uma aguapé. ── corrigiu a Princesa. ── O jardineiro vai arrancá-lo em breve. É uma espécie invasora agressiva, por mais bonita que seja. ── Myris parou o lápis e se virou para a garota. ── Há algo que você queira, Ali?
A dama se animou com o termo afetuoso, sem perceber a alfinetada.
── Eu só queria conversar com você e... Ver como está. Não a encontrei quando fui visitá-la. E bem, queria dizer que, se houver algo que eu possa fazer por você, é só pedir.
── Você pode me deixar em paz. ── o carvão que Myris usava se partiu sob a pressão da sombra. Ela pegou a pequena lâmina ao seu lado, afiando o carvão com uma crescente agressividade.
── Myris...
O tom de simpatia fez Myris estremecer. Ela estava cansada de ser tratada como uma criatura tímida, admirada e bajulada a cada momento.
── Eu não vim aqui para conversar, vim para ficar sozinha. Gosto do jardim. Os jardineiros não me incomodam com perguntas idiotas como ‘como estou’ ou se ‘preciso de algo’. Eles não me perguntam quando meu pai planeja voltar à corte ou se encontro consolo em saber que minha mãe se foi rapidamente. ── a palavra parecia amarga em sua boca. ── Eles não me assediam com olhares de pena e simpatias vazias. Eles me deixam em paz, que é a única coisa que pedi para fazerem.
Myris parou sua mão, uma segurando a pedra de afiar enquanto a outra segurava levemente seu carvão estragado.
── Você pode me dar isso? ── ela claramente esperava que a dama fosse embora.
Alicent, para seu crédito, não recuou diante do desabafo.
── Quando minha mãe morreu, as pessoas só falavam comigo em enigmas. Tudo o que eu queria era que alguém dissesse que sentia muito pelo que aconteceu comigo.
A dama permitiu que sua dor persistente tingisse cada palavra enquanto buscava os olhos de Myris, entendimento, não pena, estava em seu olhar.
── Sinto muito, Myris.
A Princesa ficou impactada pelas palavras. Lágrimas brilharam em seus olhos arregalados, apesar de suas tentativas de piscá-las. Por um momento, Alicent sentiu esperança, animada pela ideia de que havia acalmado a tempestade que parecia ferver na jovem garota.
Myris lentamente virou a cabeça para Alicent, seus olhos suaves a estudando.
── Você acha que quero um pedido de desculpas? ── sua cabeça se inclinou com curiosidade.
Alicent engoliu em seco, sentindo os pelos da nuca se eriçarem sob um olhar que ela nunca havia visto antes.
── Eu não quero um pedido de desculpas. Eu quero minha mãe. ── sua voz vacilou. Na sua forma mais fria e calculada, a raiva tingiu os olhos tristes de Myris. ── Eu quero justiça. Eu quero sangue. Você pode me dar isso?
A dama Hightower engoliu em seco.
Os olhos de Myris suavizaram ao reconhecer o medo no rosto de Alicent. Uma parte distante dela reconhecendo que não era da garota que ela estava com raiva.
── Então me deixe.
Alicent não encontrou coragem para contestar a ordem.
Sangue.
O pensamento disso assombrava Alicent enquanto ela caminhava pela Torre da Mão.
Ela tinha visto o rastro no fim, pintado no chão de pedra pelos lençóis encharcados que os servos carregavam para fora dos aposentos da Rainha. Parecia mais o resultado de uma chacina do que de um parto.
Foi naquele momento que ela entendeu por que Rhaenyra havia sido confinada aos seus aposentos enquanto os Meistres cuidavam de sua irmã naquele dia. Quando Alicent entrou, a Princesa a olhou apenas uma vez antes de cair em lágrimas. Alicent a acolheu em seus braços, afundando no chão com ela sob o peso de tanta dor.
Nunca antes ela havia sido tão grata pela longa doença de sua própria mãe. Embora Alerie Florent tenha sido levada muito cedo, o Estranho ao menos teve a decência de permitir que dissessem adeus. A ideia de ser arrancada de sua mãe sem isso era insuportável.
Alicent forçou os pensamentos sombrios para longe de sua mente ao se aproximar de seu destino.
A porta do escritório de seu pai sempre estava aberta quando ele estava presente. Era mais fácil assim, com o vai e vem dos Meistres mensageiros. A solidão não podia existir em um homem tão ocupado quanto ele.
── Minha querida. ── o longo rosto de Otto Hightower se iluminou com a chegada dela, dispensando o Meistre que aguardava suas cartas.
Ela sorriu apesar do clima sombrio, feliz por saber que ao menos alguém estava contente em vê-la.
── Pai...
Otto se levantou, recebendo-a nos aposentos com um afago carinhoso em sua bochecha enquanto a acolhia parcialmente em um abraço. Ele notou que ela estava tão abatida e sem sono quanto o resto deles.
── Como estão as Princesas?
A lembrança de olhos vermelhos trouxe o próprio olhar úmido de Alicent. As garotas, antes tão ousadas e adoradas, pareciam tão pequenas e solitárias. Pela primeira vez, Alicent não encontrou nada para invejar em sua posição.
── Rhaenyra está... Quieta. E Myris... ── um suspiro trêmulo escapou. ── Myris está com raiva.
── Em relação a quê?
── A tudo... A nada. ── a cabeça de Alicent balançou enquanto se lembrava de seu olhar ferido e raivoso. ── Elas perderam a mãe.
Otto murmurou, sua empatia era compreensível.
── A Rainha era muito querida por todos. Talvez por ninguém mais do que por aquela garota. ── ele sorriu melancolicamente ao pensar em tanta devoção. ── Hoje me peguei pensando em sua própria mãe.
Ele não foi o único. A jovem sorriu tristemente, piscando para afastar as lágrimas enquanto tentava afastar a dor que as palavras traziam. Ela não queria se aprofundar nisso.
── Como está Sua Graça? ── ela redirecionou a conversa.
── Abatido. Muito abatido. ── o sorriso sumiu do rosto de Otto. ── E é por isso que mandei chamá-la. Pensei que você poderia ir até ele, oferecer-lhe conforto.
A ideia, por mais chocante que fosse, tinha seus méritos. O Rei Jaehaerys também se beneficiou de sua companhia em seus últimos dias. O Rei Sábio gostava de ouvi-la ler seus livros, aproveitando os restos de sua vida enquanto ela o lembrava disso. Alicent tinha quase nove anos na época.
Apesar da lógica da tarefa, ela não se sentia à vontade com isso. Ela olhou para a janela da torre, a noite logo cairia.
── Nos aposentos dele? ── ela perguntou.
Seu pai apenas a olhou, a resposta era claramente sim.
── Eu não saberia o que dizer...
── O que você disse às Princesas? ── Otto incentivou. ── Pouco importa. Ele ficará feliz por receber uma visita.
A distância entre o Rei e suas filhas criava uma tensão perceptível e quase palpável na corte. Otto temia que o fogo logo seguisse se ele não colocasse rapidamente os dragões em ordem.
Metaforicamente e também não.
Alicent levou distraidamente os dedos à boca, mordendo as cutículas já roídas.
── Pare com isso.
A reprimenda severa de seu pai fez com que ela baixasse a mão. Ela a abaixou com crescente inquietação, esperando por mais repreensões ou persuasão. Ela não obteve nenhuma das duas.
Otto não disse mais nada enquanto voltava ao trabalho sobre sua mesa. Como qualquer boa Mão, ele guiava e sugeria, mas não dava ordens diretas.
Alicent ficou em silêncio.
Seu pai não se deu ao trabalho de esperar por uma resposta, ou sequer de levantar os olhos de sua carta, ao chamá-la.
── Você poderia usar um dos vestidos de sua mãe. Talvez algo... Azul?
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