𝕮𝖆𝖕𝖎𝖙𝖚𝖑𝖔 6: O Sabor da Dor
Ayla começa a sentir o impacto do torneio, e os primeiros sacrifícios são feitos.
Ayla correu, seus olhos atentos a cada detalhe do chão à sua frente. O campo minado parecia ter vida própria, um monstro adormecido esperando para devorar as candidatas. O silêncio mortal era interrompido apenas pelo som abafado de botas tocando o chão e pela respiração ofegante das candidatas. A névoa rasteira complicava ainda mais a visão, criando sombras e ilusões que desafiavam sua percepção.
No entanto, Ayla sabia que hesitar seria fatal. Ela saltou sobre uma linha fina que parecia ser um fio disparador, apenas para aterrissar ao lado de uma placa metálica quase imperceptível. Seu coração disparou enquanto ela desviava, por um triz, de um buraco camuflado com galhos secos e terra solta.
Atrás dela, um som metálico de estalo ecoou, seguido por um grito agudo. Uma das candidatas havia acionado uma armadilha. Ayla não se virou para olhar, mas o som do impacto – algo que parecia uma lâmina se fechando – foi suficiente para enviar um calafrio pela espinha dela.
Conforme as jovens avançavam, vozes começaram a ecoar pelos alto-falantes estrategicamente espalhados pelo campo. Era a voz do mestre de cerimônias, grave e sádica, projetando uma mensagem para as candidatas e para a plateia:
— Atenção, participantes! Para aquelas que acreditam que o destino individual é tudo o que está em jogo, tenho uma revelação: cada passo seu carrega um peso muito maior.
As palavras pairaram no ar como uma sentença de morte. Ayla franziu o cenho, seu foco dividido entre a prova e as implicações sombrias da mensagem.
— Se falharem em alcançar o destino final, as consequências não serão apenas suas, — continuou a voz. — Vidas foram conectadas às suas. Famílias inteiras nos setores mais pobres, ligadas a cada uma de vocês, estão sob nossa vigilância. Para cada candidata que não atravessar o campo, uma dessas famílias sofrerá... permanentemente.
Ayla sentiu o sangue congelar. Seu corpo quase parou por reflexo, mas ela forçou as pernas a continuar movendo-se. A ideia de que vidas inocentes dependiam de sua sobrevivência tornou o desafio ainda mais brutal.
Enquanto ela avançava, pequenas esferas brilhantes foram projetadas no ar ao redor do campo, como hologramas espectrais. Cada esfera exibia imagens nítidas: homens, mulheres e crianças de rostos pálidos e olhos desesperados, todos em cabanas precárias ou em campos agrícolas. Ayla reconheceu uma das figuras imediatamente – era sua irmã mais nova, Lia, segurando um pedaço de pão velho com as mãos trêmulas.
— Não, não pode ser... — murmurou Ayla, o horror dominando seu rosto.
A voz continuava, fria e impiedosa:
— Cada uma dessas almas representa uma conexão com as candidatas. E para a plateia, deixo claro: não é apenas o espetáculo da coragem que estamos apresentando, mas o peso da responsabilidade.
As risadas de alguns nobres ecoaram das arquibancadas, como chicotadas no coração de Ayla.
Adiante, uma série de pilares estreitos surgia. Cada um parecia ser uma passagem segura em meio ao caos, mas a superfície escorregadia de pedra molhada era traiçoeira. Ayla subiu no primeiro pilar, sentindo o equilíbrio fugir de seus pés por um instante antes de recuperar o controle. Ela saltou para o próximo, e depois para outro, enquanto ouvia mais gritos atrás de si.
De repente, uma explosão sacudiu o campo, lançando terra e fumaça no ar. Ayla se agachou instintivamente, protegendo o rosto com as mãos. A detonação havia atingido uma das candidatas que ficara para trás, e um dos hologramas exibiu a destruição de uma casa em chamas, enquanto os habitantes corriam desesperados para salvar o que podiam.
— Corra, Ayla! — ela ouviu a voz de sua própria mente gritar.
Finalmente, à distância, ela avistou a linha de chegada: um arco de ferro decorado com brasões do reino. Mas entre ela e a linha, uma última série de armadilhas parecia ainda mais mortal do que o restante do percurso. Pontas de metal emergiam e recuavam do chão em padrões aleatórios, enquanto labaredas de fogo explodiam de tubos enterrados na terra.
Ayla respirou fundo, ajustando o ritmo de sua corrida. Ela sabia que não podia parar agora, não quando Lia e tantos outros estavam em jogo.
Com passos calculados e um olhar fixo no objetivo, Ayla começou a atravessar o último desafio, o peso da vida e da morte apertando seu peito.
O som de explosões distantes e gritos de desespero ainda ecoava no campo enquanto Ayla avançava, seus pés tocando o chão com a precisão de alguém que estava acostumada a dançar na beira do abismo. Cada passo era uma escolha cuidadosa entre a vida e a morte.
Quando Ayla alcançou o último segmento do campo, ouviu um grito atrás de si – um grito estridente e desesperado. Ela se virou instintivamente e viu Amélia Falcks, uma das candidatas mais jovens, tropeçando em um emaranhado de fios que brilhavam sob a luz fraca das tochas. O tempo parecia desacelerar quando Amélia, tentando desesperadamente se desvencilhar, pisou em uma mina enterrada.
Houve um estalo surdo, seguido por uma explosão ensurdecedora. Ayla foi lançada para trás pela onda de choque, o calor da explosão queimando a borda de sua capa. Quando se levantou, tossindo pela poeira que agora impregnava o ar, seus olhos encontraram o corpo de Amélia. A jovem estava caída em uma posição grotesca, o rosto ainda congelado em uma expressão de puro terror.
Ayla queria desviar o olhar, mas não conseguiu. Ela sentiu o estômago revirar enquanto observava o sangue de Amélia manchando o solo, misturando-se à terra escura como se o campo tivesse fome de mais vidas.
— Amélia... — Ayla sussurrou, a voz falhando.
Um holograma próximo piscou, mostrando a imagem de uma família chorando. Era a família de Amélia, que agora pagava um preço devastador por sua falha.
A voz do mestre de cerimônias ecoou novamente, fria e impassível:
— Uma queda, uma consequência. Que isso sirva de lembrete para as demais.
Ayla apertou os punhos, a raiva e o desgosto crescendo dentro dela como uma chama incontrolável. Ela sabia que não podia parar, que não podia se permitir ser consumida pelo luto naquele momento. "Não posso salvar Amélia", pensou, "mas ainda posso salvar minha família."
Com o rosto sujo de terra e suor escorrendo pelas têmporas, Ayla avançou em direção à linha de chegada. Cada passo era um desafio para seus músculos exaustos e sua mente dilacerada pelo que havia testemunhado. O último obstáculo, um corredor estreito ladeado por estacas de metal que deslizavam do chão em intervalos irregulares, parecia um teste final à sua coragem.
Ela prendeu a respiração e começou a atravessar, calculando cuidadosamente o tempo entre cada movimento das estacas. A dor latejava em suas pernas, mas a vontade de alcançar o fim era maior. Quando finalmente pulou sobre a última armadilha, sentiu o chão firme sob os pés e ouviu o som distinto de trombetas ecoando.
— A candidata Ayla Marin cruzou a linha de chegada! — anunciou a voz nos alto-falantes, com um misto de ironia e solenidade.
Ayla mal ouviu. Ela caiu de joelhos, seu corpo tremendo enquanto a adrenalina se dissipava. O campo mortal agora estava atrás dela, mas as imagens dos rostos que perderam a vida naquela noite continuavam gravadas em sua mente.
No entanto, ela tinha sobrevivido. E isso significava que Bia, sua irmã, ainda tinha uma chance.
Quando Ayla levantou o rosto, ela encontrou os olhos de dezenas de nobres observando-a das arquibancadas, alguns sorrindo de forma perversa, outros aplaudindo como se ela fosse uma atração em um circo grotesco. O rei, sentado em seu trono no nível superior, ergueu uma taça dourada em um gesto de aprovação mecânico.
Ayla se levantou, os ombros retos apesar do peso em seu coração. A prova havia terminado, mas o verdadeiro jogo estava apenas começando. E ela sabia que teria que lutar com todas as forças para continuar – não apenas por sua vida, mas pelas vidas que dependiam dela.
Após a primeira prova da Coroa de Diamante, as quatro candidatas que haviam sobrevivido foram convocadas a se dirigir ao Palácio de Mármore Escarlate. O grandioso edifício, feito de mármore cor de sangue, refletia a ostentação e a crueldade do reino. Os ventos gélidos que sopram de suas altas torres pareciam carregar consigo segredos sombrios, e o palácio, imponente e sombrio, abrigaria as jovens mulheres por tempo indeterminado, enquanto se preparavam para os desafios futuros.
Ali, elas seriam treinadas nas artes de se portar diante dos nobres, nos jogos de poder e etiqueta que dominavam os corredores da corte. Para a maioria, isso significava esquecer sua essência e se transformar em algo que o reino esperava delas: perfeitas, moldadas para o desejo dos poderosos.
Mas para Ayla Marin, a mudança era algo que ela não desejava. Ela poderia aprender a encenar, a sorrir nas ocasiões certas, mas nunca deixaria de ser quem era: uma jovem determinada, com uma paixão feroz pela arte do arco e flecha. No Palácio de Mármore Escarlate, ela encontrou uma espécie de refúgio na arena do treinamento, onde sua habilidade com o arco era a única coisa que ainda a conectava com sua verdadeira identidade.
Certa manhã, Ayla se levantou cedo, ignorando as luxuosas roupas que a esperavam, e vestiu sua túnica simples, com os bolsos cheios de flechas. Ela queria se distanciar da sofisticação forçada do palácio e, em vez disso, se concentrar naquilo que a fazia se sentir viva: o treino. Quando chegou ao campo de arquearia, encontrou alguns dos guardas do palácio disputando para ver quem tinha a melhor pontaria. Os risos e as provocações tornaram o ambiente leve, e Ayla sentiu uma onda de satisfação ao ver os soldados competindo de maneira descontraída, como se estivessem de volta ao campo de batalha, longe da rigidez da corte.
Ela se aproximou, observando o líder da competição, um guarda alto com cabelos escuros e olhos penetrantes. O comandante, com um sorriso de desafio, a encarou e provocou, já reconhecendo Ayla como uma rival à altura.
— Não acha que uma dama como você deveria estar em outro tipo de treinamento, Marin? — ele disse com um tom sarcástico.
Ayla não hesitou. Ela ajustou o arco nas costas e se preparou para entrar na disputa.
— Acho que você vai ter que me convencer a sair daqui, soldado — respondeu com firmeza, seu olhar desafiador fixo no homem.
Os soldados riram e se afastaram, dando-lhe espaço. A competição já estava prestes a começar, quando uma presença silenciosa interrompeu a cena.
Era Nathan Crowther, o príncipe, que se aproximava com uma postura imponente. Ele observou Ayla com olhos atentos, mas não disse uma palavra. Seu olhar se deteve sobre a jovem, como se estivesse medindo algo além da habilidade com o arco.
Ayla, sem desviar o olhar, perguntou diretamente:
— Você também quer competir, Alteza?
O príncipe a estudou por um momento antes de responder, sua voz tranquila e autoritária:
— Eu não sou um soldado, Marin. Mas estou interessado em ver o quanto você realmente é boa.
Ayla sentiu um leve sorriso se formar em seus lábios. Aquela competição agora tinha um novo elemento, algo mais intrigante do que apenas a vitória. Ela se concentrou novamente no alvo à sua frente.
O príncipe ficou em silêncio, observando enquanto ela se preparava, seu corpo tenso e focado. Ayla respirou fundo e, com um movimento ágil, disparou a flecha, cortando o ar com uma precisão impecável. A flecha cravou-se no centro exato do alvo.
A multidão ao redor estourou em aplausos, mas Ayla não olhou para os outros. Ela manteve os olhos fixos no príncipe, como se esperasse que ele reagisse à sua habilidade. Nathan, por sua vez, apenas a observou em silêncio, uma expressão indecifrável no rosto. Era óbvio que ela o impressionara, mas ele se manteve impassível.
Sem mais palavras, o príncipe se afastou, deixando os guardas e as outras candidatas para observarem o que parecia ser apenas mais um dia no palácio. Ayla, no entanto, sentiu algo mudar no ar. O jogo de poder estava começando de verdade, e ela não sabia ainda até onde esse príncipe estaria disposto a ir para conseguir o que queria. Ela, por outro lado, estava disposta a jogar o seu próprio jogo.
Enquanto a competição se intensificava, Ayla sabia que, no fundo, o mais importante não era vencer ou perder — mas manter sua integridade. E para ela, isso significava seguir sua própria linha de tiro, não importa o que o palácio ou o príncipe esperassem dela.
Ayla acordou abruptamente no meio da noite, seu corpo suando e a respiração irregular. O pesadelo ainda estava vivo em sua mente, uma visão nítida e cruel que parecia se repetir a cada vez que ela fechava os olhos.
No sonho, ela estava de volta ao campo de minas. O cheiro de pólvora e terra queimando invadiu suas narinas, e a tensão estava no ar, densa e sufocante. O chão tremia sob seus pés, e, antes que pudesse reagir, o estalo de uma mina explodindo ecoou, seguido pelo grito angustiado de Amélia Falcks. A jovem havia pisado em uma mina, e Ayla, incapaz de alcançá-la a tempo, assistiu impotente enquanto a explosão a dilacerava.
O sangue e os pedaços de carne espalhados pelo campo ficaram gravados em seus olhos, o rosto de Amélia se contorcendo em agonia enquanto a vida se esvaía rapidamente. O grito da candidata ecoava em sua mente, uma lembrança que a assombrava. Ela tentou correr até o corpo de Amélia, mas o terreno estava irregular, as minas a cada passo, ameaçando a própria vida de Ayla. Não havia escapatória.
Ela acordou no exato momento em que a figura de Amélia se dissolvia nas chamas da explosão. O som da respiração ofegante de Ayla foi o único som que preencheu o quarto silencioso e escuro.
Com um suspiro pesado, Ayla se levantou da cama, sentindo um nó no estômago e uma sensação opressiva no peito. O pesadelo a deixara fraca, mas, para não sucumbir à angústia, ela decidiu caminhar pelos corredores do palácio. O silêncio do lugar a confortava de alguma forma. O vasto palácio, com suas paredes frias e mármore reluzente, era agora seu refúgio temporário, um espaço onde ela podia tentar recuperar a compostura.
Ela caminhava pelas passagens silenciosas, a luz das tochas iluminando frações do caminho à medida que avançava. Era uma noite tranquila, sem ruídos, exceto pelo som distante do vento que passava por entre as janelas. Ayla sentia o peso da noite sobre ela, mas sua mente continuava girando, tomada pelo horror que acabara de vivenciar no pesadelo.
Foi então que uma conversa interrompeu seus pensamentos.
Ayla parou abruptamente ao ouvir vozes, abafadas, mas nítidas, vindas de uma das portas discretas. Ela se aproximou cautelosamente, tentando manter-se escondida nas sombras, e conseguiu ouvir claramente as palavras que estavam sendo ditas.
— O setor 5 está em plena ebulição. A situação lá está começando a ficar fora de controle — disse o Rei Crowther, sua voz carregada de frieza e impaciência.
A secretária, que estava ao lado dele, respondeu com uma voz suave, mas calculista. Ayla podia sentir a tensão nas palavras dela, embora tentasse manter a calma.
— Eles estão começando a perceber o que está acontecendo. A fome está se espalhando mais rapidamente do que esperávamos, e a revolta é iminente. Mas não podemos permitir que isso se espalhe. Eles precisam ser controlados, e rápido.
Ayla sentiu um frio percorrer sua espinha. O "setor 5" era uma região conhecida por sua miséria e pobreza. Pessoas ali viviam em condições subumanas, lutando por comida e água, enquanto a elite do palácio vivia em luxo. As palavras da secretária mostravam claramente que o sofrimento daquelas pessoas era visto apenas como uma questão a ser "controlada", um fardo que precisava ser mantido em silêncio.
O Rei Crowther parecia não demonstrar nenhum tipo de empatia, apenas uma necessidade de lidar com o problema de forma pragmática.
— Deixe-os pensar que ainda têm controle sobre suas vidas — ele disse com uma frieza cortante. — Se eles começarem a questionar, teremos um motim nas mãos. Que eles se mantenham quietos e obedeçam. A crise pode ser usada a nosso favor.
A secretária fez uma pausa, ponderando sobre as palavras do rei, antes de falar novamente.
— E quanto às meninas da coroa de diamante? Algumas delas podem ser um problema, especialmente a Marin. Ela parece ser mais do que uma simples competidora... há algo nela, algo que a torna diferente.
O rei fez um som baixo, quase imperceptível, que Ayla não soubera identificar se era aprovação ou desprezo.
— Ela é forte, isso é inegável. Mas todos sabem o que acontece com aqueles que se destacam demais. Se ela não se adaptar, não será difícil fazê-la desaparecer. De qualquer forma, o que importa é que ela não ameace nossa estabilidade. As outras garotas não são uma preocupação. Mas Marin... Precisa ser controlada.
Ayla sentiu o sangue ferver em suas veias, a raiva tomando conta de seu corpo. Ela sabia que o rei a via como uma ameaça, mas ela não se importava. Se achavam que ela seria facilmente manipulada ou descartada, estavam redondamente enganados.
O silêncio se fez entre os dois, e Ayla, com o estômago revolto, se afastou lentamente, tentando não ser ouvida. O que o rei e sua secretária estavam planejando era uma condenação não apenas para o povo do setor 5, mas para todos aqueles que se atreviam a questionar o sistema injusto que ele mantinha.
Enquanto caminhava de volta aos seus aposentos, uma determinação firme crescia dentro de Ayla. Ela sabia que tinha que lutar. Não apenas pela coroa, mas por algo maior. O povo precisava saber a verdade, e ela faria tudo o que fosse necessário para revelar a crueldade que estava por trás do palácio de mármore escarlate.
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