𝕮𝖆𝖕𝖎𝖙𝖚𝖑𝖔 2: Cicatrizes do Passado
A competição pela Coroa de Diamante havia se tornado um evento esperado por todos os setores, mas para Ayla Marin, uma jovem determinada e repleta de princípios, representava tudo o que ela desprezava. Para ela, não havia espaço para disputas fúteis que envolviam o reino e seus privilégios. Ao invés disso, ela se via mais alinhada à vida simples, de luta e sobrevivência que seu pai havia lhe ensinado. A caça era sua paixão, o arco e flecha, uma extensão de seu corpo, e a floresta, seu refúgio.
Mas o mundo ao seu redor, e a insistência de sua mãe, não lhe davam escolha. O anúncio da competição havia agitado o reino inteiro, e a possibilidade de se tornar rainha de Atlanta, mesmo sendo uma garota de origem humilde, era um sonho para muitas. As garotas de seu setor, Nigrum, estavam se alistando em massa, como se o destino as chamasse para uma glória que Ayla nunca quisera. Para ela, a Coroa de Diamante era um símbolo do que ela mais abominava: uma elite que jogava com a vida das pessoas, como se os pobres fossem meros brinquedos para se divertir.
Quando sua mãe insistiu mais uma vez, Ayla, com a certeza de que nada a faria mudar de ideia, rejeitou o caminho proposto, preferindo a liberdade de caçar, seu verdadeiro refúgio. Ela sentia o peso da tradição e das obrigações, mas a força que ela herdara do pai não a permitia ceder. Além disso, o Setor Nigrum era formado por guerreiros e estrategistas, e Ayla, sendo parte dessa linhagem, era mais do que capaz de se sustentar sem as artimanhas e falsas promessas da corte real.
Enquanto caminham pela floresta, a relação entre Ayla e Blacke reflete uma confiança mútua construída ao longo dos anos, longe dos olhares dos privilegiados. Blacke, por mais que conhecesse os sentimentos de Ayla, sabia que ela nunca se submeteria a algo que fosse contra seus princípios. A amizade deles era sua única válvula de escape, o único porto seguro em um mundo que parecia desmoronar. Ele não só respeitava a decisão de Ayla, mas também via nela algo que os outros não viam: a força bruta de uma mulher que não precisaria de uma coroa para ser respeitada.
Ao retornarem para casa, Ayla já sabia que sua decisão estava tomada. Não faria parte de uma competição que envolvia disputas cruéis e enganosas. Ela sabia que as jovens que se alistassem não só enfrentariam desafios implacáveis, mas também seriam forçadas a enfrentar os próprios medos e desejos por um futuro que talvez nem fosse seu. A "Coroa de Diamante" representava o topo da pirâmide, mas para Ayla, o preço para chegar lá parecia alto demais.
Ao entrar em casa, a paz que buscava em sua vida simples era interrompida pelas constantes discussões com sua mãe. Porém, Ayla sabia que poderia suportar isso por mais algum tempo. O destino dela estava em suas mãos, não nas mãos de um príncipe ou da farsa de uma competição sangrenta e cheia de promessas vazias.
Ayla entrou em casa com o semblante fechado, suas mãos ainda firmes sobre o arco que ela carregava. O som das batidas de suas botas ecoou pela sala silenciosa, até que a porta da cozinha se abriu e sua mãe apareceu, com o olhar ansioso, como sempre.
— Ayla, preciso de uma resposta. — Sua voz era suave, mas com uma leve tremulação que Ayla conhecia bem. Sua mãe sempre fora assim, preocupada, tentando suavizar as palavras para não ferir a filha. Mas Ayla não se deixava mais enganar.
Ela largou o arco na parede e olhou para a mãe, tentando controlar a raiva que crescia dentro de si.
— Não vou me alistar, mãe. Eu já te disse isso. — A voz de Ayla saiu mais áspera do que o esperado, mas ela não se importava.
Sua mãe suspirou, os olhos dela já começando a se encher de lágrimas, algo que Ayla odiava ver. Ela sabia que sua mãe apenas queria o melhor para ela, mas não compreendia por que ela não via o que estava bem diante de seus olhos. A competição pela Coroa de Diamante era uma armadilha, um jogo de poder cruel e sem escrúpulos, e ela se recusava a ser parte disso.
— Ayla... — a voz de sua mãe vacilou, mas ela se aproximou, com os braços estendidos. — Eu sei que você odeia tudo isso. Mas seu pai... ele sempre quis que você tivesse uma vida diferente da nossa. Ele acreditava que você poderia chegar a um lugar melhor. Não é só a Coroa de Diamante, é uma chance de mudar seu futuro, de... de honrar tudo o que ele queria para você. Ele sempre acreditou em você, sabia da sua força, e ele... ele teria querido que você tivesse uma vida de mais oportunidades.
As palavras da mãe cortaram Ayla como uma lâmina afiada. O nome de seu pai, que ela sempre tentava manter guardado no fundo de sua mente, agora estava ali, diante dela, como um peso insuportável. Seu coração apertou no peito, uma mistura de dor e raiva se espalhando por todo o seu corpo. O pai... seu querido pai, o homem que sempre acreditou nela, mas que fora arrancado de sua vida de forma tão brutal.
Ayla sentiu a raiva crescer, como uma chama incontrolável.
— Não fale dele! — Ayla gritou, a voz tremendo de frustração. — Você acha que eu não sei o que ele queria para mim? Você acha que ele queria que eu me sujeitasse a essas meras exibições de poder? Ele morreu! E o que ele deixou foi um monte de promessas vazias, que todos se apoderam para usá-las como moeda de troca!
Sua mãe ficou parada, com os olhos marejados, mas sem fazer um movimento sequer para se aproximar mais. Ela sabia que Ayla estava magoada, mas também sabia que esse era um sofrimento que a filha não demonstrava facilmente. O peito dela se apertava ao ver a dor crua nos olhos de Ayla, mas o que mais a feriu foi a raiva da filha, tão diferente da atitude calma e protetora que ela sempre tivera.
— Ayla, por favor, eu sei que você ainda sente a falta dele. Eu também. Mas não podemos viver no passado. Seu pai... ele não queria que você fosse uma prisioneira da dor, como ele foi. Ele queria que você fosse livre, que tivesse a chance de escolher seu próprio destino.
Ayla se afastou, suas mãos apertando a barra de sua camisa com força. Ela sentia os dentes cerrados e a respiração ofegante. Sua mãe estava tão certa e, ao mesmo tempo, tão errada. Ela não entendia! Nada do que a mãe dizia mudava a verdade que Ayla carregava: seu pai estava morto, e a única coisa que restava era a dor de uma perda irreparável, um vazio que nada mais poderia preencher.
— Eu não quero ser uma princesa, mãe. Não quero esse cargo, esse título que ele queria para mim. Eu quero que as coisas sejam diferentes. Quero ser mais do que isso. Não posso ser o que ele queria, e não quero viver a vida que ele imaginou para mim, porque, no final, ele não está aqui para ver. Ele foi embora. E o que sobrou foi eu. Apenas eu. E eu não vou seguir esse caminho.
A mãe de Ayla se aproximou, agora com as lágrimas visíveis escorrendo por seu rosto. Ela tocou suavemente o braço da filha, como se tentasse transmitir todo o amor e a esperança que ainda sentia, mesmo em meio à dor.
— Ayla... eu só queria que você soubesse que, mesmo sem ele, você tem tudo o que precisa dentro de si. Eu só... eu só não quero te perder também. Não quero que você viva sozinha nessa dor, filha.
Ayla fechou os olhos, o peito apertado, o vazio de seu coração se tornando ainda maior, mais profundo. Ela sentia o peso da dor, mas também sabia que a decisão estava tomada. Ela nunca seria uma peça num jogo de poder, mesmo que isso significasse se distanciar de tudo e de todos. Ela respirou fundo, enxugando uma lágrima que traiçoeiramente escapou.
— Não me perca, mãe... mas não me faça perder a mim mesma também. — Ayla disse, com a voz embargada.
A mãe de Ayla a observou em silêncio, o coração partido, mas entendendo, talvez, pela primeira vez, a profundidade da luta interna da filha. Ela sabia que, naquele momento, Ayla precisava de espaço para viver sua própria vida, sua própria dor. E, mesmo que isso significasse não seguir os passos de seu pai, a mãe sabia que a filha tinha a força de viver e lutar do jeito dela.
— Eu entendo, filha... — Ela murmurou, ainda com o olhar triste — Espero que me entenda também... — Terminou saindo de perto de Ayla em silêncio.
Na manhã seguinte, Nathan acorda com o sol inundando seu quarto. Ele grunhe, irritado, ao ouvir a voz de Morris, o mordomo, chamando-o para se levantar. Tentando evitar a realidade, coloca o travesseiro sobre a cabeça, ansioso por um pouco mais de sono, mas sua paz dura pouco. Um puxão repentino nas cobertas o faz perder o equilíbrio, e ele cai com um baque seco no chão.
Erguendo os olhos, vê Thomas, seu irmão mais novo, sentado na cama, gargalhando como um tolo. Nathan não perde tempo. Pega o travesseiro e o lança contra a cara de Thomas, que se assusta, mas logo se junta à risada.
— Levanta, Nathan! Não tem mais tempo! — Thomas diz, a voz cheia de energia, enquanto cruza os braços e o encara com seriedade. Ele tem uma mania de se achar mais maduro do que realmente é, o que só irrita mais Nathan.
— Eu estava levantando... — Nathan murmura, ainda sonolento, esfregando os olhos.
Thomas, com seus cabelos dourados e olhos verdes brilhando à luz da manhã, parece sempre cheio de vida. Em contraste, Nathan, com seus cabelos castanho-escuros quase negros e olhos cor de mel, se sente uma sombra. Ele é o único dos três irmãos a ter a aparência do pai, enquanto Cameron e Thomas puxaram as características da mãe.
— Não viu as fotos das candidatas? — pergunta Thomas, com um sorriso travesso, balançando a cabeça em desaprovação.
Nathan revirou os olhos e se levantou com preguiça.
— Quero conhecê-las pessoalmente. Confio em você e no Cameron para fazer a triagem.
Thomas resmunga e se afasta, mas a conversa de seu irmão ainda ecoa na mente de Nathan. Hoje será o início das visitas aos setores das candidatas, onde as mais qualificadas farão apresentações diante de toda a população local e da família real.
Mas Nathan não está interessado. Ele apenas obedece, como sempre. Seu coração não está ali. Em sua mente, ele tenta se concentrar no processo, sabendo que, como futuro rei, é sua responsabilidade dar atenção a tudo. Mas a sensação de vazio e cansaço o domina. As palavras de sua mãe sobre o significado da Coroa de Diamante e a necessidade de uma parceira para governar martelam em sua cabeça, mas ele não consegue evitar a sensação de que está sendo arrastado para algo que nunca desejou.
Após o banho rápido, sua mente ainda está distante, sem conseguir focar nas palavras de Thomas sobre as garotas que ele conhecerá. O irmão mais novo está animado, mas Nathan já sabe: nada disso importa. Ele tem uma missão a cumprir, e se isso significar um casamento sem amor, que seja.
O dia se arrasta. A ansiedade se mistura com a apatia. Ele sabe que terá que escolher uma representante de cada setor, mas não consegue enxergar além da obrigação, da pressão para manter a família unida e o império forte. Em seu peito, um peso se acumula, cada vez mais difícil de suportar.
Quando sua mãe entra no quarto, a luz dourada da manhã parece refletir em seus cabelos, e o sorriso maternal em seu rosto é reconfortante, mas Nathan não sente paz. Ele já sabe o que virá. Sua mãe sempre foi a bússola da família, firme e decidida, mas há algo em sua fala que o faz se sentir fraco, inseguro.
— Você ainda não está pronto, querido? — ela pergunta, sua voz suave e cheia de carinho. Ela se aproxima e começa a ajeitar a camisa dele com cuidado, como se isso fosse o suficiente para arrumar todas as suas preocupações.
Nathan, com um suspiro, levanta-se para a inevitável conversa.
— Eu sou capaz de me vestir sozinho, mãe. Não preciso de ajuda — responde, mas há uma fraqueza no tom, uma tentativa de negar o quanto sente o peso de suas responsabilidades.
Ela o olha com ternura, seus olhos verdes tão claros quanto a água cristalina, tentando perceber o que ele está escondendo.
— Sempre tão teimoso, Nathan... — ela diz com um sorriso carinhoso. — Está preocupado?
O silêncio entre eles pesa. Nathan sente o nó na garganta, como se as palavras que saem de sua boca não fossem suficientes para descrever a tormenta dentro dele.
— E se eu não for capaz... — ele começa, as palavras hesitantes, e por um momento se perde no vazio dos próprios pensamentos. — ...de amar?
Sua mãe, sempre calma, segura seu rosto entre as mãos e o olha com profunda compaixão. A suavidade do gesto a faz parecer uma fortaleza contra seus próprios medos.
— Enquanto seu coração bater, você será capaz de amar. Só precisa se permitir, Nathan — ela responde com suavidade. Sua voz é um bálsamo para o caos que habita o peito dele.
Ela se inclina e lhe dá um beijo na testa, como sempre fez quando ele era criança. Mas, enquanto ele a observa recuar, uma onda de angústia volta a invadir seu ser. Ela não sabe o peso da dor que ele carrega, e ele não sabe se algum dia conseguirá encontrar a paz em seu coração.
— Vamos, termine logo. Partimos em uma hora — ordena ela, com um tom de leveza, mas sua voz tem o poder de arrastar Nathan para a realidade. Ela sai do quarto, fechando a porta suavemente atrás de si.
Ele fica parado, encarando a madeira da porta fechada, seus pensamentos em desordem. A presença de sua mãe ainda ecoa, mas não é o suficiente para afastar as sombras em sua mente.
"Tomara que ela esteja certa", ele pensa, mas o medo de falhar, de não encontrar o amor ou de se perder na responsabilidade, o consome. O futuro parece um abismo distante, e a dúvida o acompanha a cada passo. Ele ainda se pergunta se conseguirá suportar tudo aquilo.
Com um suspiro profundo, Nathan termina de se vestir, ajeitando a camisa branca que sua mãe ajudou a abotoar. Ele encara o reflexo no espelho, os olhos cor de mel refletindo uma raiva contida e uma dor profunda que ele ainda não sabe como lidar. O pensamento de ter que seguir em frente, de se envolver com aquelas garotas e com a política, o incomoda. Ele não sabe o que é mais pesado: a responsabilidade ou o peso da perda que ainda o consome.
Thomas aparece na porta do quarto, dando uma risada irreverente, como sempre. Nathan não responde, apenas balança a cabeça, tentando desviar de mais um comentário irrelevante do irmão.
— Pronto para as visitas, irmãozão? — pergunta Thomas, com um sorriso travesso.
— Só por obrigação, como sempre, — Nathan responde secamente, sua expressão fechada. Ele não tem paciência para mais uma tentativa do irmão de torná-lo mais "sociável" com as candidatas.
Thomas percebe o tom de voz mais baixo de Nathan e franze a testa.
— Eu sei que não gosta disso, mas é importante. Não é só sobre o que você quer ou não. — A voz de Thomas, agora mais séria, parece tocar uma parte de Nathan que ele prefere não reconhecer.
Nathan suspira e se vira para o irmão, finalmente olhando-o nos olhos.
— Eu sei, mas isso não significa que eu tenha que gostar. E você sabe o que aconteceu com Louise... Isso não desaparece. Não sei se consigo fazer isso. Não sei se consigo sentir o que sinto que deveria.
Thomas parece um pouco abalado, mas ainda tenta oferecer um consolo.
— Nate, a gente vai dar um jeito, tá? Eu sei que o que aconteceu com a Louise... Isso não se esquece, mas você não está sozinho nisso. E você pode não achar que é capaz de amar de novo, mas um dia você vai perceber que a dor vai passar. Talvez não agora, talvez nem amanhã, mas um dia, você vai encontrar um jeito de se deixar sentir.
Nathan olha para o irmão, uma sensação de frustração subindo, mas ele apenas balança a cabeça.
— Acho que prefiro não me iludir, Thomas. Me iludir é o pior que posso fazer comigo mesmo.
O olhar de Thomas é cheio de preocupação, mas ele respeita o espaço do irmão, virando-se em direção à porta.
— Bom, vou te deixar em paz para se preparar. Mas se mudar de ideia, você me avisa. A gente vai passar por isso juntos.
Nathan observa o irmão sair e se vê mais uma vez sozinho, na quietude de seu quarto. A lembrança de Louise, seu amor perdido, invade seus pensamentos, como sempre acontece quando ele se vê diante de situações em que precisa abrir seu coração novamente. Ele sabia que seu coração havia sido completamente tomado por ela, e, apesar de tudo o que aconteceu, ele ainda não conseguia entender como seguir em frente sem ela.
Com o peso da dúvida em seus ombros, ele se prepara para o que está por vir, sem saber se algum dia conseguirá encontrar o que sua mãe pediu: se permitir.
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