ℂ𝔸ℙ𝕀𝕋𝕌𝕃𝕆 2: 𝕭𝖑𝖔𝖔𝖉 𝖗𝖆𝖎𝖓
A chuva ainda caia, fina e persistente, molhando meus ombros cada vez mais enquanto eu me aproximava.
Cada passo parecia mais pesado, como se meu corpo implorasse para parar. Já meu coração, batia rápido e ansioso, a ponto de conseguir senti-lo na garganta.
Eu estava bem ali, a poucos metros daquele homem.
Era ilário. O assassino que havia marcado minha vida para sempre, de joelhos na chuva, cuidando de um gatinho.
...Hah...
Eu fui me aproximando cada vez mais, até que em um momento sem nem perceber, acabei parando bem em frente a ele.
O silêncio permaneceu. Com apenas o som da chuva se fazendo presente sobre a luz daquele poste.
Ele sabia que eu estava ali. Mas ele não levantou o olhar, continuou com suas mãos grandes e cuidadosas acariciando o pelo molhado e surrado do pequeno, enquanto o observava comer uma lata de atum.
Eu estava tão perto que conseguia ver o vapor da respiração dele.
"Então você vai me ignorar, é?"
— ...O que você está fazendo aqui?
Eu disse quase autoritária.
Ele parou. Seus dedos, que até então repousavam sobre o gato, tremeram e congelaram no lugar.
Ele ficou ali, imóvel, como se o tempo tivesse parado. Até que então, lentamente ele levantou o rosto, hesitante, como se quisesse ter total certeza de que eu estava falando com ele.
E quando nossos olhares finalmente se cruzaram, senti um choque percorrer por minha espinha.
Aqueles olhos...
Eram pesados e mortos, assim como estava gravado em minha mente. Porém, também não eram "exatamente" como eu me lembrava. Através da máscara, era possível ver apenas um de seus olhos. Pois o outro estava completamente fechado, com uma cicatriz de aparência irregular que corroía toda a região, selando-o para sempre na escuridão.
A luz fraca do poste fazia o brilho da água da chuva acentuar os contornos da cicatriz. Eu me peguei perguntando como eu não me lembrava disso. Talvez seja porque em meio ao caos, aos gritos, ao sangue, não havia tempo para notar esse tipo de detalhe no rosto desse maldito repulsivo. Mas agora, era impossível ignorar.
Ele me olhava de volta, ainda hesitante, como se estivesse nervoso. Sua presença ali parecia ser um erro, como se ele não soubesse como agir ou o que falar.
— Ei. Eu estou falando com você. O que está fazendo aqui?
Perguntei novamente, com minha voz quase explodindo de raiva.
Então, ele finalmente se mexeu, como se tivesse se lembrado de respirar. Seu desconforto era nítido, patético.
Seus olhos se voltam para o gato por um momento. E então ele respondeu. Sua voz era baixa e um tanto tímida.
— Eu só... o... o gato... Ele estava sozinho. Se eu o deixasse aqui, ele... poderia morrer...
A resposta dele ecoava na minha cabeça como um martelar de uma marreta. Inconsciente eu sorri, um sorriso amarelo de pura descrença misturada com o torpor do meu ódio.
O homem cruel que havia matado meu pai estava aqui, preocupado com a vida da porra de um gato? Eu queria rir. Gritar. Isso só podia ser algum tipo de piada.
Que eu não achava graça alguma.
Eu olhei para aqueles olhos hesitantes, tentando conciliar o homem que arruinou minha vida com a figura vulnerável diante de mim. Algo dentro de mim gritava que aquilo era ridículo, quase ofensivo.
Mas aqueles olhos. Eu conhecia aqueles olhos. Mesmo que agora estivessem cobertos por uma timidez deplorável.
Suspirei e olhei em volta tentando me acalmar. Eu estava tremendo, controlando ao máximo minha vontade de abrir um buraco em sua testa e enterrá-lo ali mesmo.
Foi então que percebi algo ao lado dele, apoiado no chão.
Uma bengala.
Cerrei meus olhos. Uma bengala? Isso era dele?
— Você... está machucado?
Perguntei com desconfiança.
O demônio que eu lembrava era cruel, implacável, ágil... Muito longe de ser alguém que precisaria de uma bengala.
Ele não respondeu de imediato. Seus olhos, ou melhor, o olho que ainda se podia abrir, parecia perdido em pensamentos.
Ele estava visivelmente desconfortável com a pergunta. Mas eu realmente não me importava.
Depois de um momento de silêncio, ele se mexeu devagar, pegando o gatinho com uma de suas mãos, de forma incrivelmente cuidadosa, e o colocou por baixo do seu moletom, protegendo-o da chuva. Pude ouvir a criatura ronronando de dentro do moletom.
...Você acha que está seguro?
Em seguida, com um esforço perceptível, ele se levantou, com a ajuda daquela bengala. Eu vi a tensão nos músculos de seu corpo enquanto ele se erguia. E então, quando ele ficou finalmente de pé, minha respiração parou por um momento.
A altura.
Não restava mais dúvida nenhuma. Ele era muito alto, tal como eu me lembrava. A mesma silhueta imponente que dominava meus pesadelos.
Ao vê-lo de pé, dei alguns passos para trás. Eu senti o suor escorrer frio pelo meu pescoço. E meu sangue congelou, as memórias voltam de repente, e pude ver claramente quem ele era. Minha mão foi instintivamente até o coldre escondido em minha cintura.
Eu estava tensa em ficar com ele ali. Mesmo que parecesse ser outra pessoa ele ainda era o assassino em série que havia matado cruelmente um grupo pequeno de vigaristas por dinheiro. Agora que viu que seu acerto não estava completo, provavelmente me mataria também.
Mas logo o homem deu um passo desajeitado para trás, como se buscasse equilíbrio, e com isso, eu afrouxei minha mão da arma. Demorei um momento para perceber. Mas era impossível ignorar o ranger metálico que ecoou quando ele ficou de pé. Olhei para baixo um pouco hesitante, temendo que me atacasse quando baixasse a guarda, porém, ele não se mexeu e pude ver a perna esquerda dele. Ela não era de carne e osso. Era uma prótese.
Meus olhos se estreitaram. Desde quando...? Eu não conseguia entender. Isso é recente?
Eu estava vendo um homem completamente diferente daquele que eu me lembrava. No entanto, ao mesmo tempo, ele era exatamente a figura daquele monstro assassino.
— Você é policial?
Ele perguntou. Sua voz rasgando o ar e meu peito também. Ao ouvi-lo pude lembrar perfeitamente daquela vez.
"Está arrependido, garoto?"
Filho da puta.
— Isso te assusta?
Respondi com deboche. Minha mão ainda se encontrava sobre a arma, atenta a qualquer movimento. Bastava um passo em minha direção e eu com toda certeza o mataria.
— Sinto muito... Sei que está tarde, eu só estava passando por aqui quando vi o gato sozinho na chuva. Não fiz nada de errado.
Nada de errado...? Tem certeza que está tudo bem falar isso logo para mim?
— Quem é você? Como se chama?
A pergunta simplesmente escapou dos meus lábios. E ele levantou os olhos para mim, quase como se pudesse ler minha mente.
—....Eu fiz algo de errado..?
Eu não consegui mais me conter, e saquei minha arma. Mirando bem na altura da sua testa.
Minha respiração falhava e meu coração se descontrolou. Mas não deixei que essas emoções transparecessem, ou pelo menos, acho que não deixei.
— ..... Quem... é você?
Ele perguntou como se a conversa fosse quase casual. Mas eu não respondi. Não tinha nada para dizer. Meu rancor já dizia tudo através dos meus olhos, toda minha dor confessada em silêncio para aqueles olhos escurecidos pelo sangue das almas que carregava sem remorso.
Tudo acabaria ali. Eu poderia finalmente tirar o peso da culpa que carregava...
— .... Entendo, mas... Se for me matar... Leva o gato para um abrigo?
Eu congelo imediatamente. Afrouxando meu dedo do gatilho.
— Ah, desculpe...
— Mas... Não... sei quem é você. Nem sei o que tem comigo, mas... Poderia fazer isso? Não por mim. Ele não tem culpa de nada do que está acontecendo aqui...
Meus olhos se arregalam em total descrença, ele não me reconheceu? Pra que toda essa preocupação com um gato de rua quando há sangue de pessoas em suas mãos?
Só poderia ser um idiota que pediria algo assim pra pessoa que está apontando uma arma para sua cabeça. Ele não está levando isso a sério. Mais uma vez.
— VOCÊ ACHA QUE TEM DIREITO DE ME PEDIR ISSO?!
Disse quase gritando. E me aproximei dele com a arma ainda mais perto.
O silêncio que se seguiu foi quase ensurdecedor. Ele não disse mais nada depois disso, deixando seus olhos caírem em seus pés. O que é isso agora?
Ele vai se curvar como uma ovelha pronta para morrer? Quieto. Imóvel.
.... Ele quer que eu o mate?
— QUE MERDA!
— FOGO!
Vozes de desespero de repente rasgaram o céu noturno como uma lâmina. Cerrei minhas mãos no cabo da arma, não podia desviar meu olhar daquele homem. O que estava acontecendo?
Logo em seguida uma explosão forte e barulhenta iluminou toda a escuridão que nos envolvia. Os gritos se intensificaram, corroendo meus ouvidos. O som fez meu corpo se contrair instintivamente, como se esperasse o impacto da onda de choque. Meus olhos vacilaram por um segundo, mas ele permaneceu imóvel, como se já estivesse acostumado com caos.
Os gritos que antes eram de desespero agora se tornaram em puro horror. Eu tive vontade de me virar, mas o momento era crítico.
"Nem ferrando. Isso não vai me atrapalhar."
Tremendo, girei o tambor da arma, levando rapidamente meu dedo até o meio do gatilho. Eu não desviei meus olhos do dele em nenhum momento e ele não desviou seus olhos do gato dentro de seu moletom em nenhum momento também. Os gritos atrás de mim pareciam cada vez mais altos, a chuva que cobria minha cabeça e silenciava meus ouvidos já parava de cair, meu coração queimava no peito como ácido.
Eu nunca matei ninguém, mas matar alguém como ele deveria ser fácil. Eu já havia tentado antes, e não havia exitando quando inútilmente cravei um caco de vidro no estômago dele. Mas algo estava diferente. Eu não queria mais matá-lo, ao ver ele aqui hoje, acho que a morte seria um livramento. E para mim, uma nova prisão.
"Assassina...?"
"Eu sou uma idiota."
Logo me virei rapidamente, correndo com urgência em direção aos gritos da explosão. Deixando aquele homem para trás, nas sombras. Acho que sou eu quem deveria tomar um tiro agora.
Mas eu havia me decidido. Eu iria acabar com ele de forma limpa e justa, não faz sentido me tornar em uma assassina e acabar deplorável como ele.
Era disso que eu tentava me convencer. Sentia que talvez fosse eu tentando mascarar minha covardia, meu medo de permanecer ali, com ele. Mordi meus lábios como uma punição inútil. O que eu faria agora? Eu deveria ter atirado.
Eu ainda corria pelas ruas molhadas quando vi algumas pessoas fugindo às pressas da direção que veio a explosão, algumas mancavam, outras tinham ferimentos expostos e poucos iam em até aquela grande massa negra de fumaça que se formava no céu.
Quando eu dobrei a esquina tomei um susto ao ver aquele cinema totalmente destruído. O cheiro de fumaça invadiu minhas narinas, misturado ao som de sirenes distantes. Meus olhos percorriam os escombros, tentando entender o que havia acabado de acontecer.
~"~
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro