08
Não há mais nada a dizer agora. Não há mais nada a fazer agora.
É fácil para Dust esquecer como chegou a Alexandria, como esteve prestes a acabar com tudo acreditando que já não havia nada para ele.
É fácil também esquecer tudo o que fez antes e o que o levou a tomar aquela decisão - o sangue que manchava suas mãos e que jamais o abandonaria.
O pai de Noah foi apenas o começo, e, naquele ponto, Dust já havia perdido a conta de quantas vidas tirou e de como o fez. Mas a verdade permanecia inalterada: ele havia realizado todas aquelas coisas cruéis que qualquer pessoa comum temeria sofrer.
Culpando os adultos, justificava-se dizendo que apenas assim conseguiria sobreviver. Gritava com força durante as noites, atormentado por pesadelos em que todas as pessoas que matou voltavam para cobrá-lo, para lhe fazer justiça.
Era fácil esquecer que ser apenas uma criança não era desculpa suficiente. Suas palavras jamais apagariam o que fez, e a satisfação que sentiu ao cometer tais atos só podia ser reflexo de algo profundamente perturbador dentro de si.
Revirando-se na cama, evitando o toque de seu amigo, Dust encontrou-se incapaz de dormir novamente após despertar daquele pesadelo.
Dessa vez, Noah o perseguia. O sonho parecia tão real que era difícil acreditar que, em algum momento, ele poderia acordar.
Ele olhou para o criado-mudo ao lado de Ron e pensou nas palavras que escrevera, no quanto havia permitido que aqueles dois garotos soubessem sobre ele, quando havia prometido a si mesmo que nunca deixaria isso acontecer.
Ninguém deve saber quem você foi. Dust é outra pessoa agora.
Enterre o passado o mais fundo possível e não deixe que ninguém o encontre.
Não fale. Apenas ouça.
Deixe que eles digam tudo, que carreguem a responsabilidade de suas palavras. Pare. Não diga mais nada.
Dust, não fale.
Mas, com o retorno daquele homem à sua vida, uma coisa ficou clara para Dust: o passado nunca morre.
Não é algo que se pode abandonar e esquecer, como ele tanto desejava.
Com cuidado para não acordar os dois garotos, levantou-se da cama, desviou de Mikey para não pisá-lo e foi até o outro lado, onde pegou o caderno em mãos.
A luz fraca que vinha da janela sugeria que faltavam apenas algumas horas para o amanhecer. Com as mãos trêmulas por conta do pesadelo ainda fresco em sua mente, Dust abriu o caderno e estudou sua própria letra, onde relatava o que aconteceu com Noah.
Ele respirou fundo, em uma tentativa frustrada de aliviar o peso esmagador em seu peito, e arrancou a página onde contava tudo. Deixou à frente apenas a página sobre o jogo de verdade ou desafio, que naquele momento não lhe preocupava.
Deixou o caderno cair ao chão e começou a rasgar a folha que agora segurava com ambas as mãos.
Pare de dar informações. Não fale mais. Não diga nada. Não os deixe entrar na sua mente. Não permita isso.
Dizia para si mesmo enquanto juntava os pedaços de papel que caíam ao chão. Guardou-os no bolso da calça cargo, decidido a queimá-los mais tarde, como uma nova promessa para lembrar que não deveria revelar seu passado a ninguém.
Enquanto voltava para a cama ao lado do amigo, Dust pensava em como poderia resolver o problema que a presença de Noah trazia, da forma mais rápida possível.
Não posso matá-lo; o grupo dele saberia.
Talvez causar sua morte e fazer parecer um acidente?
Cortar sua língua, suas mãos, tirar seus olhos para que não pudesse se comunicar?
Não... Isso seria pior que estar morto. Noah não merece isso.
Talvez...
Mas nenhuma das ideias que vinham à mente de Dust parecia algo que Noah merecesse. Afinal, ele ainda se lembrava do moreno como um velho amigo, alguém com quem havia rido e chorado inúmeras vezes.
Dust sabia bem que, agora, eles não eram mais amigos. Ele nem sequer podia dizer que conhecia aquele Noah. Dust sabia como esse mundo pode mudar as pessoas.
Mas, e se ele ainda for o mesmo garoto gentil que me salvou naquela vez? Talvez ele não seja uma ameaça.
Não devo subestimá-lo... As pessoas que chegaram tão longe neste mundo sempre serão as mais perigosas.
Entre esses e tantos outros pensamentos, Dust finalmente conseguiu adormecer novamente, mas o descanso não durou muito.
Os gritos estridentes de Ron e Mikey o despertaram, seguidos por algumas reclamações de Enid.
Dust se virou na cama e puxou o travesseiro sobre a cabeça. Quando sua mão tocou o lugar onde Ron costumava dormir, percebeu que estava frio, indicando que o loiro já havia se levantado há algum tempo.
- E ele matou o pai dele assim, pum, pum, sem nem pensar! - gritava Mikey, cujo tom animado revelava que provavelmente estava pulando perto de Dust.
- Garotos... Acho que vocês não deveriam me dizer isso, se Dust... Ai, sai daqui, Ron! - reclamou Enid, interrompida por um baque forte, possivelmente Ron caindo no chão.
- Aí que grossa! - protestou Ron. - Relaxa, Dust não liga que a gente conte.
- Dust te disse isso? - perguntou Enid, com um tom sarcástico que fez Mikey cair na gargalhada.
- Ok, ok, vou pedir desculpas quando ele acordar, - brincou Ron, e, de repente, o quarto ficou em silêncio.
Mas o silêncio durou pouco. Logo, Dust sentiu um peso em suas costas. Ron havia se jogado sobre ele.
- Ei, Dust, acorda! A Enid já chegou! - exclamou Ron, em uma voz tão aguda que parecia caricata. Ele tentou puxar o travesseiro que cobria a cabeça de Dust, mas este segurou com mais força, soltando um grunhido frustrado. - Estão vendo? Ele já está acordado!
Dust girou o corpo bruscamente, o suficiente para derrubar Ron no chão.
- Hoje é o dia de derrubar o Ron no chão? - zombou Mikey, com um sorriso no rosto. - Ron, vem cá! Agora é minha vez!
- Cala a boca, idiota! - retrucou Ron, irritado.
Dust, finalmente sentado na cama, olhou para os três com a testa franzida, tentando fazer seus olhos se ajustarem para identificar os rostos ainda borrados à sua frente.
- Oi, Dust, - saudou Enid, com um tom tranquilo, enquanto se acomodava ao lado dele.
Dust apenas assentiu em resposta, levando a mão aos cabelos cacheados, afastando-os do rosto.
- Esses dois idiotas estavam me contando sobre o que aconteceu com aquele garoto... Noah? Você quer me contar? - perguntou Enid, tentando parecer desinteressada, mas o brilho em seus olhos entregava sua curiosidade.
Dust negou com a cabeça, lembrando do papel rasgado no bolso e buscando o olhar de Ron, apenas para descobrir que o loiro estava brigando com Mikey.
-Espera, espera. - interrompeu Ron, soltando o punho de Mikey e deslizando o braço do pescoço do amigo, que tentara golpeá-lo e acabou quase sem ar. - Dust?
Dust piscou lentamente, sem a menor intenção de quebrar o silêncio. Ele devolveu o olhar intenso de Ron, como se estivesse avaliando-o.
- Está com fome? - perguntou Mikey, confuso. - Você perdeu o café da manhã e o almoço.
- Sim, sim, isso também. Mas, além disso...
Dust inclinou a cabeça em direção a Enid, e dessa vez Ron entendeu.
- Oh, claro. Quer que eu conte a ela sobre ontem?
Dust assentiu, e Ron finalmente se afastou de Mikey. Sentando-se na cama ao lado deles, ele começou:
- Então, depois que o cara matou os pais do Dust... bem, Dust matou ele e fugiu do grupo para evitar que tentassem fazer justiça, por assim dizer.
- E agora o filho desse cara é o tal Noah. Ele ficou sussurrando coisas desde que chegou, e Dust acha que talvez irão matá-lo em breve.
Talvez eles tentem. Dust corrigiu mentalmente, certo de que, se realmente quisessem matá-lo, não teriam a menor chance.
Podem trazer quem quiserem. Depois da morte dos meus pais, fui criado por assassinos. O pensamento arrancou um sorriso interno de Dust, algo que ele fazia questão de manter em segredo.
Havia muitas partes de seu passado que deveriam permanecer ocultas para sempre, algumas que ele já havia mencionado por engano. Como, por exemplo, sobre como conheceu Noah. Mas agora não havia mais o que fazer.
- Mhm... Podem até tentar, mas nós não vamos deixar. - concluiu Enid, vendo que Ron já não tinha mais nada a dizer.
Ela pousou uma mão no ombro de Dust, lançando-lhe um olhar tranquilizador.
Dust arqueou uma sobrancelha, divertido, querendo dizer que não precisava de proteção, mas apenas deu de ombros.
Enid pareceu entender o recado, pois revirou os olhos e lhe lançou um sorriso cúmplice.
Certo, ela já me viu matando todos os mortos à minha frente quando saímos de casa.
- Ron? - uma voz feminina ecoou do lado de fora do quarto, seguida de duas batidas na porta.
Enid se levantou para abrir, revelando Jessie, a mãe de Ron.
- Oi, mãe?
- Vou visitar os novos vizinhos. Quer que eu pergunte se o menino pode vir brincar com vocês? Deve ser solitário ser o único garoto. - sugeriu Jessie, com uma expressão genuinamente preocupada. Dust se perguntou se ela também havia sido a responsável pelo primeiro contato entre ele e Ron.
- Claro, estávamos pensando nisso mesmo. - respondeu Ron, rapidamente, observando o sorriso aliviado no rosto da mãe, que logo se afastou.
- E o que vamos fazer com ele? - perguntou Mikey, esfregando as mãos enquanto sua expressão assumia um tom ligeiramente sinistro.
- Nada, idiota. Não vamos fazer nada. - declarou Ron, dando um tapa no ombro dele.
- A menos que ele seja uma ameaça ao Dust. - completou Enid.
- O que quer dizer com isso? - perguntou Ron, e agora os três olhavam para ela com curiosidade.
Enid parou ao ver Dust balançar a cabeça e apontar para o caderno caído no chão.
Mikey, que ainda estava sentado pelo golpe que Ron lhe deu, engatinhou até o caderno e o jogou para Dust.
Todos esperaram em silêncio, enquanto Dust escrevia o que tinha a dizer.
- Você podia simplesmente falar, sabe. - murmurou Mikey, impaciente. Ron o chutou levemente, arrancando uma risada nervosa. - Só estava brincando! Calma, Ron!
"Ninguém vai fazer nada. Sei me proteger, idiotas."
Dust mostrou o que havia escrito, e os três se aproximaram para ler.
- O "idiotas" é desnecessário. - queixou-se Ron, fazendo um pequeno bico. Dust apenas sorriu e deu de ombros.
- Sabemos que você sabe se proteger, mas... - Enid começou, mas se interrompeu ao perceber o olhar afiado de Dust.
- Tá bom, tá bom! Do jeito que você quiser. - resmungou Enid, levantando as mãos em rendição.
- E agora, o que fazemos enquanto esperamos o garoto? - perguntou Mikey.
- Agimos normalmente? - arriscou Ron, confuso.
- Vocês são uns idiotas. - respondeu Enid, caminhando até a pilha de quadrinhos, pegando um deles e subindo na cama ao lado de Dust.
Ele mostrou a ela outro papel que havia escrito: "Estou morrendo de fome."
Mostrando diretamente para Ron, Dust se levantou e caminhou até a porta.
- Quer que eu vá com você? - perguntou Ron, segurando o caderno.
Dust negou com a cabeça. Só estava avisando, pensou, mas não disse nada. Ele desceu as escadas em busca de algo para comer.
Enquanto vasculhava a cozinha, abrindo os armários, se perguntou como seria o tal novo garoto. Ele deveria se preocupar?
Como será você, garoto novo?
Ugh, que fome.
Revisado.
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