003. Gio, o que foi isso?
Giovanna Elgohary Terena
P.O.V.
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— Gio!
Mesmo com a cabeça lotada de tanta preocupação, eu reconheceria aquela voz e aquele entusiasmo de longe. Raquel não é a típica roqueira trevosa que muitos imaginam que ela é — julgando apenas pela sua forma de se vestir. A minha prima tem uma personalidade que, particularmente, me lembra muito uma menina doce e apaixonada por livros de ficção adolescente. Ouvir rock é apenas um diferencial nela.
— Raquel! — Eu fui ao seu encontro para nos abraçarmos. Ela estava um pouco trêmula, provavelmente de preocupação comigo. E não é pra menos: assim que ela me ligou, eu a pedi para comparecer na delegacia. Se eu estivesse no seu lugar, eu também estremeceria.
— O que houve? — Ela se soltou dos meus braços e passou a fitar a minha face, sem esboçar qualquer tipo de reação identificável.
Eu não sei, porém acho que a vista dela no céu tem alguma coisa a ver com o pouso do jatinho Learjet na pista de Guarulhos. Com o passar do tempo eu aprendi a não desconfiar da intuição de Raquel. Uma vez ela me salvou de ser atropelada — isso foi quando eu havia acabado de me mudar para essa cidade e encontrei um sinal de pedestres aberto. O que eu não sabia era que aquele sinal, na verdade, estava quebrado, e eu fui atravessando a rua sem olhar para os lados. Se Raquel não tivesse me dito que era pra eu prestar atenção nos barulhos naquele dia, eu não perceberia que uma moto desgovernada estava vindo na minha direção com muita velocidade, e não teria pulado para o outro lado nos quarenta e cinco do segundo tempo.
E eu não duvidava que ela pudesse ter sentido que os Mamonas Assassinas voltariam à vida, porque uma vez eu a ouvi falar no telefone com uma amiga que alguma coisa aconteceria no aeroporto. Sei que o assunto não era dirigido à mim, porém eu estava de passagem pelo corredor dos quartos e acabei escutando alguns trechos daquela conversa. Basicamente, só isso de interessante poderia ser ressaltado — o resto se tratava apenas de fofoca.
— Mais cedo você me disse que viu alguma coisa no céu — eu tive que pensar rápido para lhe preparar para esta conversa. — Por acaso o tal "OVNI" estava indo em direção ao aeroporto?
— Você sabe que eu não sou boa com Geografia — ela me respondeu quase que em tom repreensível.
Aquela conversa não seria fácil, definitivamente.
— Raquel, aconteceu uma coisa realmente muito estranha, e eu preciso que você me ajude! Você é a única pessoa que pode me ajudar com alguma coisa! Por favor, tenta ser boa só um pouquinho?
Ela me olhou bastante desconfiada.
— Eu acho que estava indo, sim — respondeu, porém parecendo confusa. — Mas, já que você quer ajuda, eu preciso saber do que se trata.
Certo, ela venceu essa batalha. E, pensando bem, um segredo como aquele não ficaria escondido por muito tempo da mídia, então logo, logo a minha prima saberia, de uma forma ou de outra.
Eu respirei fundo antes de te mandar na lata.
— Não sei como, porém o avião dos Mamonas Assassinas pousou.
Ela continuou me encarando, porém dessa vez de uma forma ainda mais intensa do que antes, por longos segundos. Um silêncio reinou entre a gente enquanto isso, até que ela abriu a boca para responder:
— Só isso?
— Só isso? — Eu elevei o meu tom de voz, mesmo sem querer. — Como assim só isso? Você tem noção de que eles foram dados como mortos há vinte e seis anos?
— Eu tive um sonho — ainda assim a morena não perdeu a sua postura ou elevou a sua voz, como eu. — Eu tive um sonho com eles pousando — ela colocou uma de suas mãos sobre a barriga. — Porém eu sonhei com isso há tantos anos que… Desacreditei que aconteceria.
— Então você sabia que o que você viu no céu foi, na verdade, o avião deles?
— Não — ela respondeu e um sorriso começou a apontar nos cantos do seus lábios. — Isso eu estou descobrindo agora, com você.
"Puta que pariu", foi o que eu pensei logo em seguida ao levar a minha destra à minha testa e notar o quanto ela estava enrugada de preocupação. E encabulamento. Devo ter desbloqueado um novo tipo de trauma ao cair a minha ficha de que, sim, aquele provavelmente seria o caso mais difícil de resolver que eu receberia em todo o meu currículo policial.
— Você tá sozinha nessa, né?
Acompanhada da doce voz da minha prima, senti ambas as suas mãos delicadas repousando sobre os meus ombros. Balancei a cabeça em um sinal positivo.
— Gio, eu não sei como eu lhe posso ser útil, porém você sabe que eu te ajudarei com o que estiver no meu alcance.
Eu sabia. Desde que me mudei para cá, a minha prima não tem medido esforços para me ajudar com alguns casos. Com esse não seria diferente.
Lancei um sorriso tímido na sua direção.
— Eu acho que você pode me ajudar agora — falei. — Me explica melhor essa visão que você citou que estava com medo, no telefone.
— Você acha que tem alguma coisa relacionada? — Ela perguntou e eu confirmei com a cabeça. — Pois bem, não sei em qual lugar foi, porém foi amedrontador. Passou bem diante dos meus olhos, foi como se eu estivesse no local. Eu vi um jatinho batendo em uma pedra; ele explodiu, porém se remontou segundos depois.
— O que você acha?
— Se isso está relacionado com o pouso da banda, eu não sei. Porém, por via das dúvidas, eu daria uma vasculhada no avião, só para constar se possui alguma pista inicial.
— Mas isso não está no meu posto de trabalho, eu não sou policial investigativa.
— Sendo assim, você não deveria nem estar cuidando deles. Porém, já que este fardo lhe foi jogado, e como eu sei que você é curiosa, eu aconselharia ir mais fundo. Ou talvez nem tão fundo, só dar uma vasculhadinha no jato, mesmo, sabe?
Ela até que tinha razão. Razão até demais.
— Raquel, alguém já te disse que você é um gênio?
— Não preciso que me digam — ela esboçou um sorriso travesso. — Mas e aí, me chamou aqui só para perguntar isso ou quer me apresentar aos membros da banda? Afinal, depois de vinte e seis anos, eu serei a primeira plebéia a conhecer os renomados Mamonas Assassinas?
Raquel estava em um tom brincalhão. Em resposta, lhe esbocei um sorriso entretido e deferi um soco leve em seu braço.
— Primeira não. Eu fui a primeira!
Nós, que até então estávamos plantadas na calçada da delegacia, a adentramos.
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Tive que esperar os nove saírem da sala do delegado para poder escoltá-los até a sala que eu tinha deixado Raquel nos esperando. Eu não sabia bem o que faria com eles depois de conversar com todo mundo, mas eu tentei não me preocupar com nada além do meu trabalho. Talvez no futuro me surgiriam mais coisas para fazer em relação ao meu posto de policial penal, e eu definitivamente não queria me envolver em investigações. Eu faria o que a Raquel me aconselhou, mas faria só até eu cumprir o que me foi designado e depois deixaria o duro para o tenente George "dar os seus pulos".
Assim que saíram, eu os levei primeiramente até um lugar que possuía computador — a fim de tentar lhes arrancar alguma informação útil sobre o contato de suas famílias. Primeiro tentei com os quatro que não eram membros da banda, começando pelo piloto. Ele me deu o endereço da sua casa e o número do telefone fixo que usavam na época, porém eu não conseguia localizar a residência e nem ligar para o número. Mas eu consegui puxar a ficha dele pelo banco de dados: segundo ela, ele tinha uma filha. E foi através do Instagram que eu consegui encontrar o perfil da filha dele e lhe mandar uma mensagem privada.
Enquanto aguardava uma resposta, ele se sentou em um banco enquanto eu atendia o co-piloto. Ou, pelo menos, tentava atender… O coitado não falava quase nada de português, apenas o básico. Ele falou que nasceu no Japão e veio para o Brasil, logo toda a sua família estava lá. Isso significava que eu teria que entrar em contato com a polícia japonesa para resolver o caso dele. Por sorte, eu conhecia alguém que talvez pudesse me ajudar nessa parte. Se tratava de uma sargento da Força Aérea descendente asiática — e gostosa — que eu conhecia. Mandei uma mensagem dizendo que eu tinha problemas e ela não demorou muito a responder, dizendo que já tinha sido notificada sobre o ocorrido e que, no dia seguinte, estaria indo ao aeroporto verificar o avião. Marcamos de nos encontrar lá para conversar, ao meio dia.
Aos poucos, um a um eu fui atendendo. Não consegui localizar o endereço de ninguém, mas o Instagram nesse caso pode ser considerado um milagre que a tecnologia me proporcionou. Através dele eu consegui enviar mensagens para vários parentes, amigos e antigos conhecidos da banda, então o que me restava agora era só esperar pelas respostas.
"Esperar" parecia ser uma palavra que entediava os integrantes da banda. Dos nove, eles eram os que mais perguntavam se alguém já tinha respondido. Desligado o computador, eu chamei os cinco para levá-los até a sala aonde Raquel estava. Os garotos me seguiram no mais profundo silêncio — o que eu julguei ser um tanto anormal, pensa: para quem passou mais de vinte anos fora de radar, eles não iam me disparar várias perguntas? Mas eu tentei deixar isso pra lá. Queria que eles vissem a minha prima e ela os visse. Talvez eles interagindo, alguma informação importante para mim fosse dita.
— Demorou, hein? — Assim que abri a porta, a morena me disparou essa fala. Ela estava debruçada sobre uma janela olhando a lua, porém quando ouviu o barulho da entrada sendo aberta, se virou na direção dela e passou a me encarar. — Achei que ia me deixar aqui como uma detenta.
— E eu bem que poderia — murmurei. — Porém, eu trouxe cinco marmanjos para você conhecer.
Cheguei para o lado para dar espaço para eles adentrarem no local e lhes fiz um sinal. Os garotos entenderam e, em fila, chegaram ali. Ao cair os olhos neles, Raquel pareceu desacreditada — tanto que ficou até boquiaberta por alguns segundos. Os mamonas se entreolharam e eu pude escutar alguns se perguntando por que eu havia os levado ali. Só que, repentinamente, o burburinho cessou. Raquel levou o indicador até a altura dos lábios, pedindo silêncio para mim — que tinha aberto a boca para perguntar por que pararam de falar, porém fui interrompida pela minha prima —, antes de falar em voz alta:
— Alguém ouviu isso?
Ninguém respondeu, a princípio. Porém, o que ela tinha ouvido para perguntar aquilo?
— Eu não ouvi nada — falei. — O que você ouviu?
— Não sei bem… — Ela encolheu os ombros. — Algo parecido com um vulcão prestes a entrar em erupção.
Ai, sério? Tive que me segurar muito para não soltar uma gargalhada.
— Não tem vulcão em São Paulo, Raquel!
— É, mas eu também ouvi — o Sérgio falou logo quando eu terminei.
— Eu também — quando pensei que seria só o Sérgio a se pronunciar, o Bento também confirmou.
Aos poucos um a um foi dizendo que escutou o tal vulcão. Eu estava começando a achar que aquilo não se passava, na verdade, dos membros da banda tentando salvar a pele da minha prima de um possível esporro que eu daria nela, quando alguém bateu na porta. Fui abrir e era a secretária que ficou lá fora com os outros quatro passageiros do avião. E, para a minha surpresa, assim que deu de cara comigo, a fala dela foi:
— Desculpa atrapalhar, senhora, mas os senhores que ficaram na recepção comigo relataram ter ouvido um barulho alto de explosão, semelhante à um vulcão entrando em erupção.
Era o quê? Devo ter feito uma cara de pamonha nessa hora, porque a secretária precisou estalar os dedos na altura da ponta do meu nariz para me trazer de volta para a realidade.
— Senhora?
— Traga-os aqui — foi o que ordenei assim que despertei do meu transe.
A moça apenas concordou com a cabeça e se retirou. Segundos depois, os quatro apareceram na porta e eu os coloquei pra dentro. Entretanto, assim que a fechei — antes ainda de voltar a me virar para o grupo —, escutei gritos deles. Quando olhei, todos ali estavam com as mãos nos ouvidos, tampando-os com força, como se estivessem escutando um som tão estridente a ponto de deixá-los surdos.
Raquel até caiu de joelhos no chão, agonizando. Eu corri em sua direção para ajudá-la com sei lá o que quer que fosse aquilo, porém quando cheguei perto, ela parou de gritar e tirou as mãos dos ouvidos — assim como todos os outros fizeram, simultaneamente.
Sim, isso o que tinha acabado de acontecer era muito, muito estranho!
Ela olhou pra mim, primeiramente, e depois percorreu o seu olhar à todos os presentes naquela sala, antes de voltar a me fitar — perplexa — e perguntar:
— Gio, o que foi isso?
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