
02, ruínas do sentimento
Seis meses depois,
King's Landing, Westeros
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Não importava se Vermithor e Syrax tivessem queimado os corpos de Aemma e Baelon, nada havia sido capaz de retirar aquele ódio e angústia do âmago de Maëlys. Contrária às ordens do pai, a princesa havia ficado fora de Porto Real até que as chamas da pira cessassem e restassem apenas as cinzas de sua família.
A visão se repetiu em sua mente por noites e noites que passou acordada enquanto encarava a lareira em seu quarto, imaginando quando aquele luto finalmente a deixaria respirar outra vez, mas, com o peso das decisões de Viserys pressionando seus pulmões em pânico, tudo parecia mais e mais difícil. O único conforto que a princesa tinha era, nas noites mais claras, olhar as estrelas e contar histórias de gerações para Rhaenyra junto a Maegor, e, nas noites mais frias, ouvir a irmã lhe contar as histórias que lia nos livros antigos.
Sem o apoio do pai para passarem por aqueles dias difíceis, só tinham uma a outra, fortificando seu elo de irmãs, e fazendo Maëlys entender que jamais poderia deixar Rhaenyra desamparada, ou ela estaria sozinha em um castelo cheio de pessoas vazias.
E teve ainda mais certeza disso quando Viserys a chamou para uma conversa em particular, citando exemplos de reis do passado e como queria que suas filhas tivessem a bravura de Aegon. Pela primeira vez, o rei havia se referido às suas filhas como suas herdeiras.
— Você é pior do que qualquer piada que eu já tenha ouvido sair da boca infame de Daemon — Maëlys o respondeu, seu tom de voz não carregando nenhum sentimento ao proferir aquelas palavras contra o próprio pai.
Nem mesmo culpa ou medo.
— Ainda guarda rancor? Sabe que eu tinha uma escolha.
— Sua escolha era não a ter feito passar por seis partos após já ter dado à luz a duas crianças saudáveis. Se você se desse ao trabalho de ouvir alguém além do seu conselho, minha mãe estaria viva agora.
— Você não entende o que eu... — Viserys tentou argumentar, mas foi interrompido pela voz da filha, mais alta e mais consistente que a sua própria.
— Você queria um filho homem, era nisso o que pensava. Aborto após aborto, a cada filho natimorto que tinha, só pensava em ter um verdadeiro herdeiro.
— Você e sua irmã são minhas herdeiras! Minhas filhas, descendentes do sangue de Aegon.
— E ainda assim nunca fomos suficientes.
O silêncio tomou o cômodo, Viserys encarava os olhos frios da primogênita, as irises lilases o fazendo respirar fundo algumas vezes antes de tentar continuar a falar, mas as palavras não vieram.
— Eu sempre soube que eu não seria, mas não imaginaria em mil mundos que você também pensa isto de Rhaenyra — Maëlys continuou. — Ela sempre se esforçou por você, estuda tantos livros, tantas coisas, para agradar você, ainda tendo esperanças de que você vai aceitá-la e fazer dela uma rainha.
A princesa podia ver claramente como as palavras acertavam seu pai onde deveriam. O olhar do homem agora estava preso à miniatura de seu castelo, seu maior passatempo.
— Anuncie Rhaenyra como herdeira.
As palavras dela fizeram o olhar perdido de Viserys se transformar em sobrancelhas franzidas, um rei sem palavras encarando de volta.
— Você é a minha mais velha, eu... Essa conversa inteira deveria ser sobre você...
— Rhaenyra será melhor rainha do que eu. No fundo, você sabe disso — Ela sequer contestou, ignorando completamente que teria sido proclamada herdeira. Mas conhecia bem demais a si mesma, não era isso o que seu coração desejava. — Anuncie Rhaenyra antes que o conselho o obrigue a casar outra vez.
— Eles não irão...
— Sim, irão. Nós dois sabemos que sim. Rhaenyra deve ser a herdeira proclamada antes que você se case outra vez, assim não haverá argumentos quando um próximo filho nascer.
— Maëlys...
— Eu não quero ouvir. Não estou aqui para argumentos e desculpas, você já sabe como me sinto em relação a ser rainha, deve fazer o certo, não o fácil. Deixe suas escolhas gananciosas e infelizes de lado, uma vez apenas, e faça dela a futura rainha.
E assim foi feito.
Maëlys nunca havia sentido em si o desejo de governar, sabia que não era para aquilo que havia nascido e a ideia de ser rainha nunca a encheu os olhos. Queria ser livre, e estar atrelada ao governo de um reino, tão cedo, era uma das responsabilidades que ela preferia passar. Sabia bem que sua irmã era forte e ascenderia ao trono como era seu direito.
Não importava quem se opusesse. Pouco importava quem achasse má escolha, ou quem julgasse Viserys por prometer uma mulher ao futuro governo dos Sete Reinos. O Rei havia dado ouvidos à escolha da filha, e, em pouco tempo, conseguiu reunir seus senhores para fazê-los dobrar o joelho e jurar sua lealdade à princesa, agora futura rainha legítima, herdeira do trono de ferro.
Naqueles meses que sucederam, Rhaenyra então passara a intensificar seus estudos e conhecimentos sobre os sete reinos e as principais casas dos Senhores de Westeros, estando agora tendo que escolher um novo cavaleiro dos Mantos Brancos para ser seu Escudo Juramentado.
— Qual seria sua opção, Sor Erryk? — Maëlys perguntou baixo, deixando que sua irmã ouvisse os homens a qual foram selecionados. Nenhum deles tendo experiência suficiente, aparentemente.
— Não acredito que nenhum destes seja bom para a princesa, mesmo levando em consideração a necessidade de um novo escudo.
Sor Erryk encara os homens que se apresentavam para a princesa com um olhar cético, parecendo combinar com o mesmo olhar de Sor Harrold, que ainda assim, não disse nada. Mesmo quando Rhaenyra optou claramente por Criston Cole, e, notando a nítida desaprovação por parte de Maëlys, ele limpou a garganta, se aproximando.
— Ainda podemos estar errados em nossas suposições, alteza.
— Espero que sim — Maëlys comenta, o olhar vazio sobre Criston Cole quando o mesmo fora escolhido. Não trouxe nenhum conforto, mesmo que estivesse curiosa sobre o que o homem poderia fazer.
Ou causar.
— Ficaremos por perto.
— Como uma nuvem, alteza? — Erryk perguntou, e Maëlys assentiu devagar, aquele sendo um código entre princesa e cavaleiro sobre alguém que não apresentava confiança.
— Como uma nuvem, Sor Erryk.
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O dia seguinte trouxe uma manhã morna, a sensação da noite anterior não havia deixado o peito de Maëlys. Numa vã tentativa de se reconciliar emocionalmente com as duas filhas e, consequentemente, estreitar laços com Rhaenyra enquanto ela continuava em seus estudos para o comando do reino, Viserys havia ordenado o preparo de um jantar em uma ala separada do castelo, para apenas ele e as duas filhas.
Ainda assim, não havia sido o suficiente para que Maëlys tirasse aquele desgosto de si, e o pai pôde perceber isso. Suas feições não enganavam ninguém, nem mesmo quando tentava sorrir para agradar à irmã, não era suficiente. Os assuntos então permaneceram em explicações sobre a Triarquia em Stepstones.
E, agora, Maëlys observava enquanto Rhaenyra e Rhaenys debatiam entre si sobre a possível relação de Viserys e Laena, que conversavam amigavelmente no jardim abaixo. Assim como previu, o conselho ainda forçava o rei a encontrar uma nova esposa, silenciosamente desgostosos pela ideia de terem que obedecer a uma rainha no futuro.
E a conversa entre ambas perdurou por todo o momento enquanto os dois conversavam, Viserys claramente desagradado pela jovialidade da menina, fazendo jus às palavras das duas na companhia da princesa, sabendo que ele a recusaria por sua idade, algo que, mesmo que minimamente, trazia extremo conforto a Maëlys. Mesmo sabendo quem era a sua possível opção.
Qualquer escolha certamente seria desconfortável.
O lugar de sua mãe deveria permanecer intacto.
— E com quem você vai se casar, Lys?
A pergunta de Rhaenyra tirou Maëlys daquele turbilhão de pensamentos enquanto encarava o céu e a cidade a sua frente, agora horas mais tarde após a conversa.
— Ninguém — Retrucou com firmeza, encarando a porta do fosso dos dragões, vendo mais cabras sendo levadas para o local, e, mais atrás, parte do corpo de Vermithor, parecendo descansar tranquilamente. — Não vou me casar.
— Como não? — Rhaenyra questionou, surpresa com a decisão aparentemente extrema da outra.
— Não tenho interesse nisso, Nyra.
— Deveria. Antes que nosso pai a faça se casar com um lorde velho e maluco.
— Ele sabe que se o fizer, o lorde velho e maluco não acordará no dia seguinte — Maëlys sussurra, mesmo só estando as duas no local, o que faz a mais nova rir.
— Sorte a sua. Eu precisarei me casar, estreitar laços com alguma casa forte para quando for rainha. Os dorneses são bonitos, foi o que soube.
O comentário fez Maëlys rir, balançando a cabeça com suavidade, confirmando.
— Eles têm a pele quente, cabelos escuros... Você vai gostar.
— Melhor do que os lobos frios da casa Stark.
— Cregan Stark é o senhor de Winterfell, não poderá se casar com você, significaria ter que abandonar sua casa para vir à sua companhia em King's Landing.
— Melhor assim, então.
A conversa prosseguiu por longos momentos naquela tarde, até que Sor Erryk finalmente retornou após sua conversa com Sor Harrold, revelando para as princesas sobre o ovo roubado por Daemon. Ao ouvir sobre tal ato, Rhaenyra segue sozinha para longe, Maëlys tenta manter a calma, seguindo o caminho supostamente feito por sua irmã até chegarem na área externa do palácio, onde Maëlys e Maegor se esbarram em direções opostas.
— Me perdoe, princ...
— Você viu Rhaenyra? — A mulher pergunta, o tirando do rumo de sua frase ao interrompê-lo.
— Sim. Estava quase correndo em direção ao fosso. Algo aconteceu?
— Daemon.
O nome é suficiente para que Maegor entenda a clara agonia na voz dela, e segue Maëlys e Erryk, oferecendo seu cavalo para a princesa e a guiando em longos e rápidos galopes até o fosso. Mas a velocidade não havia sido suficiente, com os três podendo apenas ver quando Rhaenyra já estava nos céus, montada em Syrax. Maëlys não pensou, seguiu para a lateral do fosso, seus comandos em alto valiriano despertando Vermithor.
— Sōvēs, Vermithor!
Ela comandou, puxando as rédeas de couro do imenso dragão, seus rugidos fazendo os corvos se agitarem e saírem de sua direção enquanto ele se levantava, o extenso corpo logo subindo no ar, deixando que a mulher o guiasse. Não muito depois, ela pôde ouvir os chamados de Maegor ao seu lado, e os rugidos de Khalyia sendo respondidos por Vermithor assim que os dragões pararam lado a lado.
Focada em seu caminho, Maëlys guiou a fera até Dragonstone, sobrevoando a entrada e vendo Syrax na ponte de pedra, entre Daemon e Otto, cada um com seus homens atrás de si. A princesa tinha confiança em sua irmã, e sabia que o tio não faria nada para feri-la, seja para aumentar a gravidade de seu ato rebelde contra Viserys ou não.
Então ela esperou.
Se manteve longe, observando a cena se desenvolver na sua frente, enquanto Maegor ficou ao seu lado direito, encarando eventualmente a princesa, tomando um pouco de sua atenção para si.
— A herdeira já está pondo em prática os estudos em diplomacia — Maegor comentou, tirando uma risada sincera de Maëlys, o que o agradou.
— É você quem a está ensinando?
— Algumas vezes, sim. O rei me pediu pessoalmente que o fizesse. Não tenho muita experiência com o diálogo, quem costuma resolver tudo isto é meu pai, meu interesse são as batalhas.
— Bom saber que tenho um aliado forte e corajoso — Maëlys pontua, vendo o olhar erguido de Maegor até si, um sorriso satisfeito tomando o canto de seus lábios.
— Aliado? — Maegor estreita os olhos, controlando o sorriso.
— Você não é meu inimigo, é?!
A pergunta é quase retórica, tanto pelo tom que Maëlys usa, quanto pela forma como o rapaz não precisa responder, apenas sorrindo levemente e voltando a encarar o desenrolar da cena entre tia e sobrinho. Os dois veem quando Daemon devolve o ovo de dragão para Rhaenyra, e esperam até que a jovem retorne para Syrax, apenas tomando voo quando a mais nova faz o mesmo.
E seguem fazendo sua proteção até King's Landing. Não que ela corresse quaisquer riscos, mas Maëlys estava acostumada a estar preparada para as possibilidades das situações em que se encontrava. Logo retornaram ao fosso, com Syrax e Khalyia retornando para dentro do fosso e Vermithor retomando seu lugar logo ao lado.
Sor Erryk e Sor Harrold acompanharam as princesas de volta para o castelo quando Maegor seguiu para tratar de seus próprios assuntos com Lorde Corlys, seu pai. Harrold guiou Rhaenyra de volta aos seus aposentos, e, a mando do rei, a princesa mais velha seguiu para os aposentos do pai, mentalmente se preparando para o que iria ouvir e sabendo que se irritaria com seja o que fosse.
— Mandou me chamar?
A voz dela ressoou pelo cômodo, fazendo Viserys retirar sua atenção de suas miniaturas e erguer o olhar para a primogênita, avaliando-a em silêncio, até tomar uma longa respiração, o ar entrando e suavemente saindo junto a uma resposta.
— Sim. Precisava saber o que se passa em sua cabeça.
— Porque, exatamente?
— Oh, muitas coisas — O rei comentou, massageando o meio entre o nariz e as sobrancelhas, tentando se livrar da dor em sua cabeça. — Entendo que você seja a maior influência para a sua irmã atualmente, mas voar com ela para tão longe e confrontar Daemon foi o ápice.
Com a explicação do pai, Maëlys limpou a garganta, se controlando para não sorrir. Sabia como ele odiava quando ela era sarcástica e, por mais que não pudesse controlar sempre, não queria um debate com o homem agora.
— Entendo que você fale coisas sem sentido às vezes, mas ultimamente está sendo mais comum — Ela começou, cruzando os braços e passando ambas as mãos por entre as mangas e relaxando daquela forma. — Nunca fiz a cabeça de Rhaenyra sobre nada, muito menos para ir atrás de Daemon. Ela quem fugiu, e eu a segui para garantir que não fosse morta.
— As duas poderiam ter sido mortas!
— Daemon jamais nos mataria, sabe disso. Ele pode ser insano, mas certamente não a este ponto.
— Me faz pensar se vocês dois não herdaram essa mesma insanidade — Viserys murmurou, se sentando na cadeira e apoiando os braços ali, tentando raciocinar com a filha. — Você protege demais sua irmã, e isso me assusta às vezes.
— Ela precisa de alguém para rogar por ela e defendê-la de verdade. Como você não faz.
— Ela precisa aprender a se defender sozinha, também.
— Se a deixar sozinha, aquelas serpentes certamente a envenenarão em um piscar de olhos assim que conseguirem.
A resposta não satisfaz Viserys nem um pouco, fazendo o rei apenas respirar fundo, não querendo entrar naquele debate outra vez. Já sabia das opiniões da filha e o quão eram contrárias às suas, o que só o fez mais ansioso para contar o que estava engasgado em sua garganta desde a manhã.
— Me casarei com Alicent. Decidi após a conversa com Laena.
A frase é suficiente para fazer Maëlys respirar fundo e fechar os olhos, tentando não os rolar, não querendo receber longos argumentos sobre como estava sendo desrespeitosa.
— Eu deveria ganhar um novo dragão a cada vez que pudesse dizer "eu avisei".
— Você teria um bando interessante, por mais que eu odeie reconhecer isso.
— Uma pena.
— O quê? Meu reconhecimento ou não ter mais do que Vermithor?
— Seu casamento com aquela... criatura.
— Nunca entendi seus motivos para não gostar de Alicent.
— Ela é uma sanguessuga treinada pelo pai como um cachorro. Um dia você entenderá, e então eu poderei dizer "eu avisei" novamente.
— Seus julgamentos são muito extremos.
— Porque são verdadeiros. Não me espere sorrir no casamento.
— Nunca espero que sorria comigo.
— Ótimo.
— Mais algo que sua língua afiada queira dizer?
— Não. Ainda é cedo.
— Muito bem... Conversarei com o conselho pela manhã.
Maëlys assentiu devagar, se retirando do cômodo logo após e seguindo diretamente para o seu, sabendo que agora teria que manter os olhos ainda mais abertos e seus ouvidos mais atentos. Não se deixaria levar pelas palavras venenosas de Otto, muito menos pelo cinismo de Alicent.
E, acima de tudo, jamais permitiria que ficassem tão confortáveis entre os verdadeiros senhores de King's Landing.
Depois de perder tudo o que já tinha escrito e ter que reescrever, atualizei!
Teremos algumas mudanças no enredo por causa disso, mas vai melhorar a experiência, garanto ;)
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Postado dia 27.09.24
Revisado uma vez
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