1. De volta ao lar
𝐔𝐦 𝐚𝐧𝐨 𝐝𝐞𝐩𝐨𝐢𝐬...
O ar frio de Washington não lembrava em nada o deserto em que Daphne fora encontrada há um ano. Ela ainda tinha pesadelos recorrentes com o que aconteceu no tempo em que ficou desaparecida, e mesmo indo semanalmente a uma psicóloga, eles não pareciam ter fim e ela temia que nunca fossem embora.
A sensação de desconforto não saia dela e a cada vez que voltava para casa, ela sempre olhava para trás, com medo de ser surpreendida. Isso perdurou por dias, semanas, meses. Daphne estava sempre alerta a tudo e a todos.
Até mesmo agora, dentro de sua própria casa, em segurança. Ela sentia medo.
Os lenções de seda que acariciavam a pele quente de Daphne se encontravam aos seus pés. Ela não conseguia suportar nada em contato com sua pele febril, principalmente naquele estado. O relógio da mesa de cabeceira avisava que já passara das oito da manhã e ela precisava levantar, mas não dava indícios de que o faria. Estava cansada demais para atravessar a cidade em pleno inverno e com o alto risco de ficar presa no trânsito, mas ela já havia confirmado sua presença e ela não iria dar para trás. Seu pai havia ligado ontem à noite a intimando para almoçar com ele e quem sabe passar um tempo entre pai e filha longe de todo o tumulto diário de suas vidas caóticas.
Afastando o seu medo e seu cansaço, Daphne pulou para fora da cama e se trancou no banheiro, decidida a não se deixa abalar com seu próprio medo.
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O tilintar do sino na soleira da porta que anunciava a entrada de Daphne no estabelecimento levemente lotado chamou a atenção de alguns clientes, mas logo foi ignorada. Eles sabiam quem ela era e pelo que passou, mas com as atuais circunstâncias a presença de Daphne Hugo no recinto agora era de uma estranha que acabou de chegar. Por um lado, Daphne ficou feliz em ser ignorada. Ela ainda não havia se acostumado a ser os centros das atenções, principalmente agora que estava de volta e se recuperando de um evento tão traumático como seu sequestro, e com as coisas que viu quando estava longe.
Seus olhos automaticamente vasculharam o local, em busca de uma possível ameaça. Mas todos estavam alheios a sua presença, menos seu pai, que a observava numa mesa num canto mais afastado. O velho Senador Spencer Hugo conhecia sua filha como ninguém e tinha uma boa ideia do que ela estava passando, ele já foi jovem e um soldado um dia, e sabia o que uma guerra podia fazer com alguém, até mesmo uma pessoa que nunca sequer pediu para participar de uma.
— Você veio. — comentou Spencer. — Por um momento, achei que não viesse ver o seu velho pai.
— E eu achei que você tinha deixado de ser tão dramático. — respondeu Daphne, ocupando o lugar vago a frente de seu pai. — Já fez o pedido?
— Torta de morango. — responderam em uníssono.
Daphne riu.
Todas as vezes em que encontrava seu pai, especialmente num lugar que tivesse comida, ele sempre iria pedir torta de morango. Era a favorita dele e dela também.
— Se sua mãe estivesse aqui, ela diria: "peça uma comida mais saudável ou uma salada." — descontraiu Spencer.
— É. — confirmou Daphne. — E como ela está? Ainda na casa da vovó?'
A senhora Hugo detestava qualquer meio tecnológico de comunicação e a única forma para Daphne ver a própria mãe era cruzar o país, coisa que ela evitou fazer ao máximo. Ela não queria dar mais trabalho para sua mãe, sua avó já dava um trabalhão com sua personalidade forte e extravagante. E Daphne não queria incomodar nenhuma delas com seus pesadelos e medos constantes.
— Infelizmente sim. Ela não quer voltar a morar na cidade. E eu não julgo. Se não fosse pelo Senado e por essa situação do novo Capitão América, eu já teria ido morar com ela.
— Que situação com o novo Capitão América? E quem é esse novo cara? — estranhou Daphne. Ela andava meio desligada do mundo e do tempo também.
— John Walker, um soldado do Exercito. — começou Spencer. — Ele era o novo Capitão América...
— Espera aí. — pediu Daphne, se perdendo na narrativa. — Como assim era? Ele não é mais?
— Ele matou um homem em praça pública num país estrangeiro na frente de milhares pessoas. — concluiu Spencer. — E tem vídeos desse momento correndo por toda internet, Daph. E o Senado decidiu retirar o escudo e o posto de Capitão América dele.
— E com o Senado, o senhor quer dizer você, não é? — deduziu Daphne.
— Posso ser franco, querida? — indagou Spencer, se inclinando sobre a mesa, pronto para compartilhar um segredo de estado. Daphne assentiu. — Eu não achava e nem acho que ele estava pronto ou que seja merecedor de honrar o legado do Steve Rogers.
Olhando por esse lado, Daphne tinha que concordar com o pai. Ela nunca deu muita bola para essa coisa de legado ou de super-heróis como Os Vingadores, mas após o 'blip', tudo mudou. O mundo mudou, as pessoas que sumiram há cinco anos voltaram e tudo começou a colapsar, especialmente em questão de recursos básicos e legais. Para muitos, elas estavam mortas e agora estavam de volta, e bem vivas. E o mundo que Daphne conhecia estava entrando em declínio e não havia ninguém digno para honrar o legado de Steve Rogers, o primeiro vingador e herói nacional.
As pessoas ao redor do mundo estavam com medo e perdendo a esperança no futuro pouco a pouco, e consecutivamente temiam que as coisas nunca fossem se reajustar.
— Em algum lugar, no meio de todas essas pessoas, deve haver uma pessoa digna de carregar o escudo do velho Capitão, pai. E só procurar com mais atenção.
— Você está falando igual a sua mãe. — pontuou Spencer. Sua filha e sua esposa compartilhavam muitas características em comum, especialmente a esperança em dias melhores.
— Bom, não é culpa minha. Isso eu posso garantir.
— Espertinha.
O clima leve e descontraído foi brevemente interrompido pela chegada da garçonete com seus pedidos. A moça estendeu habilmente os pratos sobre a mesa com tanta delicadeza que chamou a atenção de Daphne e tocou o seu coração, e acalmou um pouco a sua ansiedade crescente. O cheiro da torta de morango fresca a sua frente trazia lembranças da infância de Daphne e de sua vida em Portland na casa de sua avó paterna Celia Hugo, a extravagante matriarca Hugo. A mulher nunca teve papas na língua e deu o melhor de si para mimar a única neta — para o sofrimento dos pais. —, mas também ajudou a moldar o caráter de Daphne. Muito de si veio de sua avó cabeça-dura e de sua visão única sobre o mundo e sobre as pessoas.
— Ainda está comigo, filha? — indagou Spencer, no meio de uma garfada. — Você fez de novo. Se desligou de novo.
— Eu...estava lembrando da vovó. — confessou Daphne, um pouco hesitante. — E de Portland.
— Pretende ir para lá? — indagou Spencer, a caminha de sua segunda garfada.
— Não. Ainda não. — respondeu Daphne, remexendo a comida em seu prato. De repente, ela se via insegura de novo, num espiral de medos e paranoias. — Eu não quero assustar a minha mãe e nem a vovó com os meus pesadelos, pai. Eu não quero ser um problema para elas.
— Você falou isso para sua terapeuta?
— Não. Ainda não. — confidenciou Daphne, sendo sincera.
— Ainda tem pesadelos? — prosseguiu Spencer, sendo o mais cauteloso possível.
— As vezes, principalmente a noite. Eu tenho uma sensação que estou sendo vigiada. — disse Daphne. — Constantemente. — frisou.
— Longe de mim querer questionar os métodos da Dra. Raynor, mas você deveria tirar um tempo para si. Sabe, viajar, ver a sua mãe, rever seus amigos. Tentar voltar a sua rotina ou algo parecido. Se não funcionar, continue com as sessões com a Dra. Raynor.
— Você sabe que não vou fazer metade disso, né? As sessões são meio que obrigatórias, mas não são ruins. Só que...
— Só que? — instigou Spencer.
— É meio difícil para mim falar sobre coisas da minha vida para uma pessoa que eu nem conheço e que fica avaliando cada reação minha durante as sessões. Eu sou difícil e eu sei disso. Mas eu não consigo abaixar as minhas muralhas, pai. Eu estou aqui agora conversando com o senhor, mas uma parte de mim está perdida naquele deserto, morrendo de sede e fome, sem nenhum pingo de esperança. É horrível, eu sei. Mas eu não posso mudar o que aconteceu e talvez nunca volte a ser quem eu era.
— Ei, calma. — pediu Spencer, consolando sua filha. Em seus olhos, ele via a dor que ela passou e ainda estava passando, o que para um pai era de partir o coração. — Não podemos mudar o passado, isso é verdade. Porém podemos aprender com ele e tentar melhorar o nosso eu do futuro. Continue firme com as sessões e redescubra o seu novo eu, filha. É só uma questão de tempo...
Os primeiros acordes de 'Iris' do Goo Goo Dolls ressoavam do aparelho celular de Spencer, que estava posto sobre a mesa fria, anunciava a chegada de uma nova mensagem. Ele esperava que não fosse nada de mais, até ver o nome do Primeiro - Tenente Torres no visor de notificações. Seu momento entre pai e filha estava perto do fim.
— É importante? — perguntou Daphne, de olho no celular do próprio pai. — E quem é o Torres? Ele é do Senado?
— Sim, é importante e não, ele não é do Senado. — respondeu Spencer, terminando de devorar seu pedaço de torta de morango e seguida limpando os farelos com um guardanapo. — Ele é da Força Aérea e um bom homem, você devia conhece-lo. Ele é bem legal. Vocês seriam grandes amigos.
— Eu já tenho amigos.
— Dessa vez, livros não contam. — discordou Spencer, depositando o dinheiro da conta sobre a mesa para sua filha pagar. — Odeio sair assim, mas é importante e...
— Vai, pode ir. Eu vou ficar bem. — assegurou Daphne para o olhar desconfiado de seu pai. — É sério e não se preocupe, eu não vou faltar a consulta de hoje.
— É bom mesmo, viu. — exclamou Spencer. — Tchau, filha. E juízo.
— Tchau, pai. — falou Daphne, rindo da velha implicância de seu pai.
Ela o observou fluir com elegância por entre as mesas e desaparecer pela porta a fora. E ser puxado de volta para sua vida caótica e cheia de regras.
Enquanto Daphne ficava para trás e voltava a lutar novamente contra a ansiedade que queimava dentro dela, pronta para sufocá-la a qualquer instante.
Respirando fundo, ela tentou acalma seus nervos e terminou sua última fatia de torta. E esperou a coragem a inundar para cumprir o que havia dito a seu pai. Iria ver a Dra. Raynor.
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