LAÇOS ETERNOS
BAKUGOU
"Aquele filho da puta... Quem ele pensa que é pra dizer aquilo?"
__ Ei Bro - Kirishima disse chamando minha atenção - Você está bem?
__ Não começa você também caralho - respondi bufando de raiva.
Os outros tinham saído pra voltar ao colégio e descansar, mas eu ainda não tinha recebido alta então fiquei preso a esse hospital de merda. Só que aquele idiota do Kirishima ainda quis ficar esperando arrancar alguma informação de mim sobre o que tinha acontecido mais cedo.
As palavras daquele maldito não saiam da minha cabeça.
__ Como isso aconteceu? - disse se sentando ao meu lado na cama, mas apenas dei um olhar mortal pra ele - Ok, não vai querer falar disso agora, já entendi. Mas, quando se sentir melhor, a gente pode conversar, ok? Eu não vou te julgar se é com isso que está preocupado.
__ Nem fodendo - respondi irritado - Não quero mais saber dessa merda.
Kirishima deu de ombros, mas permaneceu sentado na cama pensando. E aquilo me incomodava porque eu sabia o que tinha na mente dele.
__ Sabe, eu não sei no que devemos acreditar quando mesmo depois de tudo, ela continua lutando do lado dos heróis - disse virando o rosto para mim - Quando ela e aquele cara se colocam na frente da Mina mesmo depois de como agimos só pra protegê-la.
__ O quê...? - perguntei confuso.
Então ele me contou sobre o incidente com o assassino da Comissão.
E só por um instante a minha raiva pareceu sumir do meu peito.
__ Cara, eu não sei o que aconteceu entre vocês, mas deveria ouvir a Kira antes de tirar alguma conclusão precipitada.
"Será que eu deveria...?", pensei naquele momento, mas percebendo o que estava fazendo, eu coloquei aquele pensamento no fundo da minha mente.
☆
Depois de sair sorrateiramente do hospital com o Shin, eu não voltei pra casa. Fui direto pra base pra conseguir me recuperar mesmo sabendo que magoaria o Hawks fazendo aquilo.
O problema é que eu só tornaria a vida dele um caos ainda maior. Eu não merecia ficar perto de um herói depois de tudo, mas eu só fiquei com ainda mais saudades conforme os dias foram passando.
Também comecei a escapar da Base para passar algumas horas com a minha mestra, já que ela havia conseguido um esconderijo pelas redondezas da cidade. Eu contei a ela sobre tudo que passamos enquanto ela estava na prisão, sobre as missões do Hawks como herói, as minhas e principalmente meu tempo na UA. E quanto mais o tempo passava, mais pressionavam a Shiori para resolver o meu caso. Eu era uma agente indireta do governo que matou alguém mesmo que fosse com um vilão. Eles estavam com medo de mim, o que só seria justificável por causa da minha linhagem de sangue.
Mesmo morta minha mãe me colocou em encrencas. Porém eu não via isso mais como algo ruim e sim como uma oportunidade.
Eles tinham duas opções em mente, me prender ou me monitorar até que não fosse mais uma ameaça, o que não iria acabar nunca. Então eu tinha que mostrar quem estava no poder de verdade. Só assim pra achar o caminho de me tornar uma líder, não abaixando a cabeça pra ninguém.
A chefe então resolveu marcar uma reunião com os homens de cargo mais alto que queriam a minha cabeça. Para a minha surpresa, Tsukauchi o detetive da polícia, resolveu me agraciar com a presença dele. Shiori me contou que ele havia ajudado no meu caso quando eu era criança e que para todos os efeitos, ela mentiu pra todos com documentos falsos que diziam que ela tinha cuidado de mim devido as circunstâncias legais.
Que mulherzinha falsa e dissimulada.
Quando a hora chegou, eu coloquei meu uniforme e mantive a postura sentada a ponta da mesa ao oposto da minha chefe. Dos dois lados, direito e esquerdo, homens com ternos e gravatas discutiam sobre o que deveriam fazer comigo e Tsukauchi me olhava como se eu fosse uma criança metida nas conversas dos adultos.
__ Acusada dos crimes de uso indevido de individualidade, invasão ao departamento de polícia de Musutafu e ataque aos agentes penitenciários do local, tortura ao criminoso de guerra Kyudai Garaki, assassinato ao All For One, vilão Classe S, além de vários outros delitos realizados no período de guerra - disse um dos homens presente ali à todos - Akira Hattori, você assume a autoria dos atos pelos quais é acusada?
Me mantive em silêncio olhando e memorizando cada rosto ali presente. Eu ia me divertir muito mais tarde quando desse um motivo realmente plausível para me acusarem.
__ Isso aí - falei com um sorriso, recebendo um olhar de reprovação da Shiori - Fui eu sim. Tudo isso dessa lista fui eu que fiz.
A sala irrompeu em burburinhos e exclamações ridículas sobre mim, mas eu continuei sorrindo porque eu não parava de pensar no quão presas fáceis eles eram, um segundo e estariam no chão com os corações parados. Porém eu precisava resolver aquilo, já que tinha marcado compromisso para o fim da tarde.
__ Quando vocês irão me ouvir? - perguntei elevando a voz.
__ Nós estamos conversando Hattori - Tsukauchi se adiantou.
__ Não. Não estamos porque vocês não estão me escutando de verdade.
Shiori me observava calada e era horrível não saber o que se passava em sua mente, mas como ela não me interrompeu resolvi continuar.
__ Algum de vocês realmente acredita que vai me pegar? Porque é isso que você quer e isso é uma piada bem estranha. Sabem, o comandante da Divisão de Segurança mandou os cães dele pra tirar a vida dos meus colegas de trabalho, vários deles não retornaram para nossa base e vocês não fizeram nada para pará-lo. Ah é, vocês não ligam pra pessoas como nós, havia me esquecido disso.
__ Hattori, se acalme por favor - Um deles disse preocupado porque eu acabei deixando meu poder transbordar e causar pressão no ar.
Aquilo só me deixou ainda mais brava.
__ Não mande eu me acalmar - falei deixando meu olhos ficarem vermelhos, um pequeno truque que eu descobri que deixava as pessoas bem assustadas - Você é só um homem como qualquer outro que eu destruí. Acha que pode me vencer? Não pode. Não podem sequer tocar em mim. Sinto muito ter que dar essa notícia, mas nenhum agente deste país é forte o bastante.
__ Não acham que todos estão se exaltando? - Shiori disse olhando diretamente pra mim como um aviso de que eu deveria parar - Vamos todos pensar com cuidado nas palavras que usamos, não é Hattori?
__ Eu não ligo pra vida de outras pessoas. Não me importo com as merdas delas, mas aprendi que nunca devo machucar um inocente - correndo os olhos pela sala, cada um deles me pareciam pragas inúteis - Vocês estão presumindo que vou cometer os mesmos crimes que a minha mãe?
__ Isso seria um erro porque você ainda é jovem demais pra ter noção do que ela causou - um deles disse - Não está nem perto das suas ações, mas ainda assim -
__ Várias pessoas da Comissão de Segurança me usaram desde criança por interesse no meu poder, isso não é um crime? Mas estão tão preocupados com o que eu possa vir a fazer, que nem se importam pelo que eu passei.
Eles se mantiveram em silêncio total pela primeira vez desde que pisei naquela sala, porque sabiam que a razão ali era minha.
__ Se acreditam que eu posso me tornar a minha mãe só porque as minhas ações onde tentei defender minha vida são questionáveis, eu me vejo no direito de acreditar que toda a luta dos heróis é só pra manter o status e hipnotizar a população. Que seu sistema inútil só irá me empurrar para a escuridão em que os vilões vivem.
__ Eu não acredito nisso - um deles disse - Porém, preciso que também entenda nossa posição -
__ QUE POSIÇÃO?! - exclamei batendo as mãos na mesa e me levantando - Foram vocês que falharam comigo primeiro quando não conseguiram me proteger. Eu era uma criança! Eu treinava por horas, treinava até passar noites com a minha mente explodindo de dor, eu tive que machucar pessoas para não ser ferida! QUE POSIÇÃO ACHAM QUE POSSUEM PARA TENTAR ME DIZER O QUE FAZER?!
Eles não tinham mais o que dizer. Não depois daquilo. Porque a dor de uma garota não deveria ser questionada.
__ Essa reunião está encerrada - falei suspirando e foi o suficiente para começarem com os murmúrios outra vez.
__ Deixem ela - Shiori disse elevando a voz. Quando seus olhos encontraram os meus, eu senti que poderia ficar tranquila porque sabia que ela iria cuidar daquilo - A reunião não acabou, mas você está dispensada, eu assumo as coisas daqui.
__ Eu vou continuar sob as ordens de trabalho da Shiori porque preciso desse trabalho - falei antes de ir - Posso garantir que não vou passar dos limites outra vez, mas se não puderem acreditar nas minhas palavras, se tentarem punir a mim por resolver o maior problema de vocês, se tentarem me pegar ou me interromper, não vou me segurar.
Quando bati a porta daquela sala atrás de mim, eu senti que poderia fazer aquilo. Eu era uma Hattori, mil vezes mais forte que qualquer homem.
Mas um deles ainda estava atrás da minha sombra.
__ O que quer agora? - perguntei sem me virar.
__ Pedir desculpas - Tsukauchi disse atrás de mim - Isso não muda nada, é insignificante a essa altura, mas eu realmente queria que soubesse disso. Eu sinto muito por tudo que teve que passar. A nossa falha significou a sua dor atual. Não posso me esquecer das palavras que disse no colégio UA. Mas eu vou fazer o possível para acalmá-los e tentar uma solução mais pacífica.
__ Se fizer isso vai ser só para tirar o mínimo de peso que está na sua consciência agora, mas de um modo ou de outro, sou eu que vou passar por cima deles - respondi me virando para encarar aqueles olhos cansados que sentiam pena de mim - Espero que tenha me ouvido agora Tsukauchi.
☆
SHINKAI
_ Temos todos os recursos que você precisar bem aqui - falei animado pelo nosso passeio pela base da Divisão de Inteligência - Dormitórios, Centros de treinamentos, Refeitórios, áreas de pesquisas e suportes...
__ Eu não devia andar solto por aí depois do que eu fiz - Aoyama disse atrás de mim.
Como a Aki estava ocupada com as responsabilidades dela na Divisão e também passando um tempo com a mestra dela, eu me tornei o responsável pelo Yuga Aoyama por tempo indeterminado pela Chefe.
Não que eu fosse reclamar, já que ficar de olho nele não me dava nenhum trabalho, na verdade só me liberava do meu.
Mas ele andava muito mal depois de todos os acontecimentos da guerra. Os heróis usaram ele e seus pais para atrair os vilões, eu acredito que isso tenha sido muito difícil e um grande pesadelo. Os pais dele ainda estavam sob a custódia da polícia, mas a chefe conseguiu trazê-lo para a responsabilidade do nosso departamento já que estávamos atrás dele a mais tempo.
__ Aí, ainda está nesse papo estranho? Enquanto estiver com a gente, pode fazer o que quiser, ninguém vai te impedir.
__ Ele quer ser punido - Aki disse nos assustando aparecendo no corredor do nada. Ela voltou a usar o uniforme de couro preto, combinava muito mais com ela - Acha que merece isso.
__ Como foi a reunião princesa?
__ Uma perda de tempo, não vou fazer nada do que eles querem.
Aki se aproximou mais até ficar cara a cara com o colega de turma que ainda não conseguia olhá-la nos olhos. Ele andava tão mal que estava quase me contagiando.
__ Aoyama, não vou te forçar a nada - disse gentilmente - Pode ficar com seus pais depois que resolverem o caso dele, que provavelmente vai resultar em algum tipo de punição, voltar para França quando tudo acabar ou ficar aqui e trabalhar comigo. Quem tem que tomar a decisão é você, só estou te dando mais uma escolha.
Eu fiquei cada vez mais impressionado com a força e gentileza da Aki. Não posso negar, aquele colégio a mudou mesmo.
__ Shin, vou pra casa tentar resolver as coisas com o Hawks, pode ficar com o Aoyama pra mim? - perguntou com a voz baixa se aproximando de mim.
__ Pode deixar, eu e meu novo amigo aqui vamos nos divertir bastante.
Assim como chegou, ela sumiu rapidamente pelos corredores, mas logo voltei minha atenção à mente quebrada atrás de mim.
__ Vocês têm tanto medo assim que eu tente fugir? - perguntou tristemente.
__ Não é nada disso! - respondi agitando as mãos na frente dele pra que olhasse pra mim - Não fala pra ela que te contei isso, mas a verdade é que a Aki tá com medo de alguma coisa te aconteça, principalmente que isso parta de você, Yuu.
Ele desviou o olhar novamente, apertando as mãos nas laterais de seu corpo. Sua mente não acreditava naquilo, era como a Aki havia dito, ele acreditava que precisava ser punido.
Por que eu não acreditava nisso?
Aki me mostrou o lado da história dele. Coagido pelos pais e através do medo serviu aos vilões entregando fatos da UA e dos alunos da turma 1A.
Existem pessoas ruins no mundo e outras simplesmente se entregam por não verem outra saída à sua frente. Eu li muito a mente dele nos últimos dias e o que não faltava era arrependimento.
Ele estava exatamente como minha amiga.
__ Ela tá quebrada por dentro e eu tenho certeza que ela não vai aguentar perder mais ninguém. Se a Aki ficar triste, eu vou ficar triste e você não quer nenhum de nós dois sofrendo, não é mesmo? Então, não faça besteira.
__ Como conseguem? - disse levantando os olhos azuis para mim.
__ O quê? - perguntei confuso pela bagunça de seus pensamentos.
__ A Kira não abaixou a cabeça nenhuma vez mesmo depois de tudo e ainda tá tentando cuidar de mim.
__ Isso é da natureza daquela maluca, não espere outra coisa dela - comentei.
__ E você está sempre sorrindo e provocando todo mundo - falou me ignorando - Como? Como conseguem seguir em frente de cabeça erguida depois de tudo?
Eu esqueci de contar algo.
Como eu vim parar na Comissão.
Quando eu era criança, meu pai me abandonou depois que a minha mãe morreu porque achava que eu era uma aberração. Mas uma criança que consegue ler mentes é perfeita para interrogatórios, eles pensaram.
A Chefe achou que eu era parecido com ela. Eu não tinha um poder grandioso, nem para defesa ou ataque, mas tinha minha mente e isso era tudo que eu precisava. Ela achou que deveria ficar comigo e eu aceitei porque foi a primeira vez que alguém me achou bom em algo.
Eu não sei porquê me lembrei disso com as palavras do Yuu, mas me pareceu o certo. Nós passamos por tanta coisa que quase nos esquecemos das nossas origens.
__ É isso que acha de nós? - perguntei olhando para seus olhos cheios de lágrimas - Yuga, não somos pessoas felizes, o máximo que tivemos foram momentos relativamente agradáveis. É difícil pra gente ter que acordar todos os dias e perceber que não é um pesadelo, é a vida que temos. Só que agora temos a chance de consertar tudo isso e a Aki ficaria feliz de ter você do nosso lado pra isso.
Não sou emotivo, nem vou demonstrar minhas fraquezas, mas eu precisava dar a ajuda da qual ele precisa. Não sou um herói, só queria que ele pare de se sentir culpado por tudo.
__ Olha, todo mundo passa por pesadelos na vida e às vezes se encontra alguém pra te ajudar a seguir em frente ou tem que suportar e fazer isso sozinho. Sei que a Aki quer que você fique do lado dela pra não ter que passar por tudo e não ter que se sentir só, mas você é o único que pode decidir isso. Já vou te avisando, não somos bonzinhos como sua antiga turma, mas também não somos pessoas ruins.
Aoyama desviou o olhar apertando os olhos para não chorar.
__ Eu sei - sussurrou - ela ainda quer me defender depois de tudo. E você tem sido bem gentil comigo mesmo não me conhecendo.
__ Prefiro que diga que eu sou bonito do que gentil - comentei revirando os olhos arrancando um pequeno riso dele.
__ Mas é estranho ter alguém na minha cabeça o tempo todo.
__ Não é assim que funciona!
Se eu estava disposta a ser amigo dele? Não era o plano principal, mas já que ele ia ficar, era bom ter alguém pra compartilhar algumas coisas, eu pensei.
__ A íris do meu olho fica um pouco mais clara quando eu uso minha individualidade. É quase imperceptível, mas se prestar atenção consegue perceber - ele não levou muito a sério, então tentei outra alternativa - Deixa que eu te mostro. Pensa em alguma coisa e olha nos meus olhos.
"Pensar no que?"
Me aproximei o suficiente para ficar a poucos centímetros do seu rosto e apoiei uma das minhas mãos na parede ao lado do rosto dele.
"Perto demais"
__ Nossa... - disse com o rosto vermelho.
__ Legal né? Não conta pra Aki, escondi isso dela a vida toda pra conseguir ler a mente dela sem que soubesse.
__ Isso não é errado? E meio bizarro?
__ Provavelmente, mas parei de me importar depois de um tempo - respondi me afastando e voltando a caminhar pelos corredores - E na maior parte do tempo ela não se importa com isso, então acabou virando uma forma de nos comunicarmos.
__ O que rola entre vocês? - perguntou me alcançando.
__ Nada do que tá passando nessa cabeça - respondi dando um peteleco na testa dele - É uma coisa de anos, mas nada romântico, você sabe que ela só quer o loiro explosivo. Eu não gosto dele inclusive, eu cheguei primeiro, não faz sentido ela ficar se arriscando por ele o tempo todo!
Aoyama me olhou curioso depois daquele pequeno desabafo, então logo tratei de mudar o rumo da conversa.
__ Yuu, quer voltar no colégio pra se despedir dos seus amigos? Talvez pedir desculpas pelo que fez ou coisa assim.
__ Eu posso? Posso mesmo?
__ Olha, minha chefe vai ter que resolver umas coisas sobre você e a Aki com o diretor Nezu, então acho que consigo convencê-la a nos levar junto. Aki também tem pensado em voltar pra tentar se desculpar com eles, então por que não faz o mesmo?
__ Eu acho que eu devo isso pra todos eles, mas não sei se vão acertar - disse com a voz triste e abatida.
__ Pelo menos tente - falei o encorajando - Guardar arrependimentos por não fazer algo pode ser mais doloroso ainda.
__ E por que você quer ir também? O que tem lá pra você? - perguntou curioso.
__ Digamos que eu preciso ter um segundo round vitorioso - falei sorrindo antes de agarrar seu braço e o arrastar para o refeitório - Vamos Yuu, vou te apresentar ao pessoal!
☆
HAWKS
Nós vencemos a guerra. Ao custo de vidas de amigos e heróis.
Mas ainda sim eu estava me sentindo horrível por dentro. Porque eu tinha só um propósito e consegui falhar. Não cuidei da Kira como deveria e no fim, acabei deixando ela seguir um caminho irreparável.
Eu não merecia mais ser o tutor dela.
E acredito que ela sabia disso. Depois que soube que ela fugiu do hospital e foi pra base da Divisão de Inteligência, eu não tive coragem de ir atrás dela. Kira deveria ter alguém que realmente cuidasse dela. Com o passar dos dias, eu segui no meu trabalho como herói porque toda a relação entre civis e heróis ainda precisava ser reconstruída. E meu caso em relação à morte do Twice, eu estava em uma situação ainda mais delicada.
Voltando pra casa, usando o elevador por causa da falta das asas dessa vez, eu suspirei de cansaço enquanto abria a porta, mas quando entrei fui surpreendido pelas luzes do apartamento acesas e o cheiro de comida no ar. Me colocando em posição de defesa, me aproximei lentamente até a cozinha, mas antes meus ouvidos foram preenchidos pela risada daquelas duas.
__ Bem vindo de volta, Hawks! - Kira disse quando me viu entrando.
__ Olha, eu estou até com medo de perguntar por quê ela tá aqui - falei confuso com toda aquela cena. Lady Nagant e minha pupila de moletons confortáveis cozinhando juntas no meu apartamento do nada - Achei que tinha voltado pra Divisão de Inteligência.
__ Eles não precisam de mim por agora - Kira respondeu - Além do mais, já tava na hora de voltar pra casa, sou eu que tenho que garantir que você não viva a base de frango frito pra sempre.
Kaina, minha antiga veterana da Comissão, me olhava de um modo indecifrável até para mim. Kira se aproximou lentamente e abaixou o rosto antes de falar tristemente.
__ Sei que deve estar me odiando agora, mas será que a gente pode conversar? Eu preciso muito mesmo falar com você.
"Odiá-la? Do que ela está falando?"
__ Kira...
__ Ei vocês dois! - Kaina disse chamando nossa atenção - O jantar está pronto. Deixem a conversa pra depois, acredito que todos estamos famintos.
Por algum motivo, eu não consegui dizer nada. Eu não ia me opor, mas tinha algo que não parecia certo na minha mente. Eu as segui até a mesa de jantar, cheias de pratos tradicionais japoneses, do jeito que a Kaina gostava, principalmente Lámen e várias peças de sushi, onigiri e outros. E é claro, frango frito pra mim como sempre adorei.
Mas algo estava errado.
__ Bem, como vamos fazer isso? - falei com ironia - É pra fingirmos ser uma família normal ou algo assim?
__ Keigo, sem provocações à mesa - Kaina disse sentada à minha frente - Podemos discutir depois.
__ Você nos abandonou - confessei - Agora entra na minha casa e quer fingir que nada aconteceu?!
O clima pesou depois daquilo por minha culpa, mas era algo preso na minha garganta que saiu de uma só vez. Era isso que estava errado.
__ Não, não é pra fingir que nada aconteceu - respondeu me olhando seriamente - Eu quero passar um tempo com o meu velho amigo antes de partir. Quero poder dar pra vocês a noite que eu nunca consegui dar antes de ir embora.
"Por que isso? Por que agora?"
__ Kira, é isso que você quer? - perguntei olhando para ela que via aquela cena sem dizer uma palavra. Ela olhou pra nós dois cogitando o que deveria fazer, então desviou o olhar do meu.
__ Eu queria poder ficar com vocês, se isso significa uma única noite, então eu posso ficar feliz com isso.
__ Tudo bem então - falei suspirando - Vamos comer.
Fingir ser uma família normal seria bem fácil, se não fosse pelo fato de que cada um de nós sabia que aquilo não seria possível depois de tudo. Porém, se era isso que minha pupila queria, era o que daria pra ela.
Não posso negar, depois de dias sobrevivendo a comida congelada, uma refeição de verdade foi incrível e só por um momento, eu acreditei que éramos uma família de verdade.
__ Eu vou cuidar da louça - Kira disse quando todos terminamos de jantar - Então resolvam isso entre vocês, seja lá o que for.
Quando a mais nova se afastou, Kaina acenou para mim para que fossemos ao outro cômodo discutir, como a Kira disse, seja lá o que aquilo fosse.
__ Vocês dois mudaram, mas ainda continuam com a mesma essência de antes - disse pra mim se apoiando na sacada.
__ E você continua sendo muito boa em fingir que está tudo bem - zombei também apoiando o corpo na sacada da varanda.
__ Aí, até quando vai ficar assim? - respondeu suspirando - Eu tô tentando uma aproximação, não dificulte as coisas!
__ O que quer que eu diga? Já resolvemos tudo que tínhamos para resolver naquele dia Kaina - Quando All For One à feriu na luta com o Deku, eu passei a noite no hospital do lado dela e tudo que resolvemos foi sobre a guerra. O que significava que não havia mais nada a ser resolvido.
__ Não. Nós não conversamos de verdade, mas o mais justo é te deixar falar o que sente agora.
__ Não vai rolar.
__ Keigo, fala comigo - disse estendendo a mão para segurar meu braço - Por favor, não vira a cara desse jeito.
__ Como pôde? - falei com um suspiro em derrota - Kira sentiu sua falta por tanto tempo, nunca fui suficiente pra suprir seu lugar e cuidar dela. Mas eu... Eu tomei seu lugar na Comissão. Eu e a Kira substituímos você durante todos esses anos. Tem ideia do que isso causou na mente dela?
Kaina me olhava com o cenho franzido, ouvindo tudo atentamente, até que suspirou pesadamente e se aproximou tão rápido que não consegui pará-la.
__ Meu passarinho... - sussurrou passando os braços ao redor dos meus ombros e me puxando pra ela - Eu sinto muito Keigo. Me desculpa por ter te deixado, me desculpa, me desculpa.
__ Kaina, para - falei tentando afastá-la, mas mesmo depois de todos esses anos, ela ainda era mais forte que eu - Me solta...
__ Eu sei que isso não é sobre ela - sussurrou no meu ouvido.
Kaina não era só minha veterana, ela era minha amiga.
Ela sabia mais de mim do que qualquer um mesmo que eu não quisesse aquilo, ela cuidou não só da Kira, mas de mim também.
__ Eu sinto muito por ter feito você tomar meu lugar, nunca quis que sujasse sua mãos de sangue, eu não devia ter sido impulsiva e ter acabado deixando vocês naquele lugar - dizia enquanto acariciava meu cabelo - Eu sinto muito por não ter te dado a liberdade que você merecia Keigo...
Eu estava sendo egoísta pela primeira vez. Eu sei pelo que ela passou, eu entendia aquilo, mas não conseguia ignorar o que eu sentia. Mesmo hesitante, eu passei os braços ao redor dela e pousei as mãos em suas costas. Meu coração doía, mas não era a dor que eu sentia em algumas lutas ou coisa parecida, era muito diferente.
__ Você me abandonou... - sussurrei aquela confissão enquanto apertava meus olhos que queimavam querendo chorar.
__ Eu sei - respondeu apertando o abraço ainda mais - Eu sei Keigo, me desculpa, eu sinto muito, sinto muito mesmo meu passarinho.
Eu não sei por quanto tempo deixei ela me ver naquele estado, a única coisa que eu queria era que aquilo não acabasse. Eu não sei porque, mas eu não me senti mal deixando ela me ver vulnerável. Quando ela se afastou seus olhos brilhavam tentando conter as lágrimas. Não era justo que eu culpasse ela por algo, mas eu não conseguia mais guardar aquilo. Nós permanecemos em silêncio observando as poucas estrelas que brilhavam no céu, ambos pensando no que aquele momento significava.
__ Contou pra ela? - perguntei - Disse mesmo que está indo embora?
__ Sim. Ela aceitou bem, falou que não posso ficar e correr o risco de ser pega novamente, disse que eu deveria ser livre - respondeu e ao fim abriu um pequeno sorriso olhando pra mim - Você cuidou muito bem dela, sabia?
Não pude deixar de rir com aquilo. Nunca chegava em casa no horário, nunca contei a verdade sobre o passado dela, não dei o apoio que ela mais precisava quando sua vida virou de cabeça pra baixo.
__ É sério, ela adora você tanto quanto eu - Kaina disse dando um pequeno tapa no meu braço.
__ Você é a mestra dela, não tem como eu ser mais importante do que isso!
Enquanto discutimos sobre isso, Kira observava aquilo com um sorriso no rosto da porta da varanda.
__ Você é meu irmão e você minha mestra - ela disse nos unindo em um abraço - Eu amo vocês dois, não precisam discutir por isso, tem Kira pra todo mundo.
Kaina e eu nós olhamos profundamente. Não tínhamos o mesmo sangue, nem a mesma origem, mas nós três éramos uma família de verdade.
Ficamos algumas horas no sofá vendo TV como se não soubéssemos o que iria acontecer, só deixando o som preencher o ambiente. Kaina não iria embora enquanto Kira tivesse acordada e ela sabia bem disso, então uma hora ela simplesmente desistiu de prendê-la ali e se deitou no meu colo fingindo adormecer.
__ Eu tenho mesmo que ir passarinho - Kaina sussurrou ao meu lado.
__ Ah... Tô tão esgotado que não vou conseguir impedir que uma fugitiva do governo de sair do meu apartamento e escapar de mim. Que coisa, hein? - falei suspirando. Ela se levantou dando a volta pelo sofá, mas parou atrás de mim, me olhando dali - Tchau Kaina. Foi bom te ver.
__ Eu mando notícias - disse passando a mão gentilmente pelo meu rosto - Vou sentir saudades Keigo, espero que cuidem um do outro.
O som da porta se fechando atrás de mim mostrava a partida dela das nossas vidas outra vez, mas eu não poderia fazê-la ficar e sofrer novamente.
__ Já pode abrir os olhos Kira - falei com a voz baixa. Apesar dos olhos vermelhos, ela apenas se sentou no sofá sem dizer uma palavra e eu sei o quão doloroso era pra ela ter que ver sua mestra partir outra vez - Então, sobre aquela conversa?
Ela me olhou tristemente antes de se levantar do sofá e se colocar a minha frente com os punhos apertados nas laterais do corpo.
__ Eu fiz uma coisa muito ruim e eu sei disso - disse com a voz falha - Sei que você brigou com a Shiori por minha causa, mas a verdade é que eu quis isso. Eu recuperei minhas memórias e só usei a luta como uma desculpa pra me vingar daquele homem... eu sinto muito por ter te machucado, eu... eu não queria te ferir... mas... é que... eu não...
Seus ombros começaram a tremer enquanto ela deixava as lágrimas cair pelo seu rosto.
Eu nunca a vi chorar.
Quanto eu havia perdido da vida dela quando a deixei ir pra UA?
__ Vem cá garota - disse me levantando, passando os braços ao redor dela e afagando seu cabelo. Ela torcia minha camisa com as mãos desesperada pra se apoiar em algo.
__ Me perdoa... Hawks, me perdoa por favor... - ela pedia repetidamente cortando meu coração.
__ Maninha, chorar não combina muito com você - comentei com um riso fraco - Eu fui um péssimo tutor quando não percebi que precisava de mim. Devia ter te mantido do meu lado, assim você não estaria sentindo toda essa dor sozinha.
__ Me perdoa... por favor...
__ Para, por favor - sussurrei - Sou eu que tenho que te pedir perdão maninha...
Fiquei tão focado com o trabalho que acabei a deixando de lado completamente. Prometi a Kaina que cuidaria dela, mas eu falhei. Falhei completamente.
Kira continuou repetindo pedidos de desculpas mesmo que eu dissesse que não era necessário e foi difícil acalmá-la um pouco, mas consegui fazê-la parar com o choro e se sentar no sofá da sala novamente. Depois de buscar um copo d'água e dar a ela, comecei a limpar o rastro de lágrimas que ainda restavam em seu rosto.
__ Tudo bem agora? - sussurrei e Kira apenas me deu um aceno em resposta - Deve ter sido difícil criar coragem pra dizer tudo isso.
__ Keigo Takami é um belo nome - disse com a voz cansada de choro - Aliás, nunca me apresentei devidamente pra você. Meu nome é Akira Hattori.
__ Sinto muito por ter escondido a verdade de você por todos esses anos - falei seriamente - Eu sabia a verdade do seu passado, mas não fiz nada pra te ajudar e então as coisas chegaram a esse nível por isso. Eu sinto muito.
__ Não vou ficar chateada por não terem me contado, eu acho que foi melhor assim. Numa sociedade de heróis e vilões, os filhos acabam carregando os legados deixados pelos pais e ser filha de uma mercenária profissional não é boa coisa.
__ Ainda assim... - sussurrei sem saber o que mais dizer a ela. Parecia que as palavras estavam presas na minha garganta, mas tudo que eu queria era dizê-las.
__ Hawks, você é como um irmão mais velho pra mim, sei que não temos o mesmo sangue, mas você é minha família - ela disse ajeitando a postura - Eu espero que possa me aceitar de volta e ser meu tutor como Hattori, mesmo com a minha linhagem sanguínea.
__ Você ficou tanto tempo longe que aprendeu a ter sentimentos! - respondi a puxando de volta para o meu peito e bagunçado seu cabelo. Quando se sentou novamente estressada com aquilo, eu não pude sorrir - Você é minha pupila, sempre vai ter seu lugar nesta casa, ok? Quando as coisas derem errado outra vez, a gente vai ter um ao outro como sempre foi.
Achei que ela fosse começar a chorar outra vez, mas ela se segurou bem.
Nós passamos um bom tempo na sala vendo uma comédia na netflix, eu encostado no sofá e ela deitada com sua cabeça apoiada em uma almofada no meu colo. Sei que depois de tudo ainda tinham coisas a serem resolvidas, mas eu só precisava daquele momento de sossego.
__ Ué, por que o Shinkai deixou uma mensagem de voz pra mim...? - perguntei curioso enquanto olhava meu celular. Por causa da luta e dos preparativos, acabei deixando ele de lado por muito tempo.
__ NÃO ABRE! - Kira disse me assustando enquanto pulava do sofá.
__ Por que não? - falei confuso com a reação dela - É a minha caixa de mensagens.
__ Hawks, você não pode abrir isso! - disse tentando arrancar me celular da minha mão - Me dá esse celular agora, eu não tô brincando! KEIGO!!
__ Sem chances! - eu segurei sua cabeça quando ela chegou perto e bastante e empurrei para a almofada no meu colo.
Enquanto ela continuava gritando comigo, só consegui pensar que ela tava tão desesperada que nem lembrou que possuia telecinese e ri muito com aquilo.
Mas não perdi tempo e deixei o áudio rodar, pra minha surpresa Kira parou de se debater e gritar no momento em que a voz dela saiu pelo meu telefone.
"Oi Hawks, é a Kira. Eu não sei se você vai ouvir isso antes da batalha, mas queria te dizer umas coisas que não consegui falar da última vez que a gente se viu, porque bem, você tava horrível e eu também não tava lá a melhor coisa do mundo.
Eu conheço você bem o suficiente pra saber que está se culpando pelo Twice e sobre isso, não é sua culpa. Tenho certeza que você tentou ao máximo não ter que fazer isso.
Mas vou ter que ser egoísta com você agora, Hawks. Não pode lutar como se não tivesse pra quem voltar. Não pode sequer pensar em fazer isso, porque eu iria perder uma das pessoas que eu mais admiro na vida. Todos que eu amo vão embora da minha vida em algum momento e isso dói como o inferno. E tem sempre uma vozinha irritante sussurrando na minha mente dizendo que é minha culpa, que eu não deveria existir. Só queria que alguém achasse que vale a pena ficar por mim.
E você ficou. Durante todos esses anos, você sempre voltou pra casa. Sempre voltou pra mim, mesmo que estivesse atrasado quase todas as vezes.
Enfim, não sei bem como é ser o herói número dois e o quão pesado deve ser, nem se fui tão importante pra você quanto você é pra mim, mas o que sei é que não quero perder meu irmão.
Então, por favor, não morra Hawks.
Eu amo você, maninho."
__ Que humilhante - ela disse se levantando e ajeitando o cabelo - Não me lembrava de ter sido tão sentimental assim.
Meu objetivo era criar um mundo onde os heróis tivessem tempo livre, um mundo onde a minha pupila pudesse ter a liberdade que eu não tive, mas ainda não podia relaxar porque isso estava longe de ser conquistado.
__ Eu vou voltar pra casa no horário de agora em diante, eu prometo - falei passando o braço ao redor dela, que deitou a cabeça no meu ombro - Mas quanto a última parte, como era mesmo? "Eu amo você, maninho"...
__ KEIGO! Eu vou te matar!
Eu tenho 23 anos.
Sou o Herói Número Dois e responsável por uma criança de 16 anos que cuida mais de mim do que eu dela.
Era bom ter as coisas como sempre foram.
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