II - GARRAFAS DE SOJU E UM CORAÇÃO PARTIDO
❝𝗢 𝗽𝗶𝗼𝗿 𝗺𝗮𝗹 𝗲́ 𝗮𝗾𝘂𝗲𝗹𝗲 𝗮𝗼 𝗾𝘂𝗮𝗹 𝗻𝗼𝘀 𝗮𝗰𝗼𝘀𝘁𝘂𝗺𝗮𝗺𝗼𝘀.❞
- Jean-Paul Sartre
O DESPERTAR DE UM NOVO DIA não me traz clareza, ele enche-me de angústia. Quando o sol surge estou sempre acordada, passo as noites em claro e rodeada de uma infinidade de preocupações. O que eu farei agora? Sem um emprego, um rumo, ou ele. Está tudo um caos.
Sendo totalmente franca, eu sempre andei conforme à tempestade, vagando perdida na confusão que é viver e amar. Eu olho para o passado e sinto um amargo na garganta, meu coração se transforma em um completo vazio, totalmente oposto à minha mente. Tem tanto para ser reparado, tantas são as coisas que eu deveria ter notado. O período em que estivemos juntos jamais poderá ser descrito como perfeito.
Nada na vida é perfeito, em tudo há um defeito. Mas como o resto, há um limite. Casais discutem, se desentendem algumas vezes e é normal, mas não quando deixa de ser um caso isolado para tornar-se rotina. Era sempre uma briga, quando não tínhamos uma razão, inventávamos. Parecia que a todo instante procurávamos algo para reclamar um no outro, vivíamos em uma relação abusiva bilateral, mas por alguma razão, era difícil dizer adeus.
No começo, todo casal apaixonado pensa que amar é o suficiente, que apenas ele basta para manter uma relação. Quando a realidade bate à porta, o choque é intenso. Conosco não havia mais diálogo, com um pouco mais de tempo nem mesmo sentimentos. Quem observava de fora sabia que estávamos juntos apenas por comodismo, mas quem está na relação nunca percebe, o problema está aqui. Eu mergulhei de cabeça em uma fantasia, esqueci de me proteger e, como consequência, me afoguei.
Enquanto olho as últimas coisas dele espalhadas pela casa, sinto meu peito doer. Separo tudo que não quero nunca mais olhar e guardo em uma caixa. Fotos, presentes, peças de roupa, o relógio de parede que me deu junto à promessa de uma vida juntos, lembranças de um amor vazio. Vou me livrar de tudo. Eu queria apagar os rastros das coisas que você deixou, acabar com tudo que um dia você já tocou, mas isso incluiria a mim também.
Não ficar sensível é uma missão impossível, cada coisa para jogar fora foi importante para mim um dia. Não são apenas objetos, são memórias, retalhos de uma história. Estou abandonando isso, deixando para trás uma parte de mim que - infeliz ou felizmente - vou lembrar para sempre. É hora de acordar deste pesadelo, recolher os cacos de um coração quebrado e colá-los um por um. Irei devolver e me livrar de tudo que o pertence como um último ritual de passagem, espero que ele retribua o ato, devolvendo-me o coração e a sanidade.
Depois de limpa-lo da minha casa, preciso fazê-lo da minha alma. Paro de frente ao espelho e encaro as madeixas loiras, fico insatisfeita pelo modo como pareço, a antiga boneca Barbie que ele podia controlar. Pego as chaves e me retiro de casa, não me importo com o traje, não é a primeira vez que saio na rua com um moletom surrado e chinelos, ainda mais descabelada. Irei às compras, o par mais incomum possível, tinta capilar preta e garrafas de soju.
Me direciono ao elevador e encontro mais alguém, o maluco do meu vizinho, o que me derrubou o café e jogou suco. Sinto meu corpo travar um pouco quando estou perto dele, por alguma razão Han Jisung me emana uma vibração diferente - não que eu seja uma grande crente de coisas místicas.
As portas se abrem para nós, então entramos. O homem de suéter verde limão e jeans largos claros é quem aperta o botão do térreo, fico quietinha ao seu lado esperando chegarmos no hall. Não é verão, mas me sinto quente e sufocada. Nunca torci tanto para que os cinco andares que estamos de distância do solo fossem mais curtos. Olho para a parte da telinha que indica o andar em que estamos posicionados, fico ansiosa quando ele anuncia o primeiro, próximo de terra firme. Mas, de repente, o elevador para.
Quando a energia é cortada e o cubículo para de se mover, um impacto repentino me faz quase cair no chão, se não fosse por ele me segurar pelo braço. Meus olhos caem em direção ao seu toque no mesmo instante, sinto arrepios. Solto-me um pouco sem jeito, arrumo os fios desajeitados que consigo e aperto todas as teclas possíveis do painel, preciso sair daqui. A cada segundo que se passa minha respiração fica mais contida, eu desejo profundamente me livrar desta situação, mas me conforta minimamente saber que pelo menos não estou sozinha.
- Acho que a energia caiu, nós não vamos conseguir sair daqui enquanto não voltar. - ele diz ao me ver apertando o botão que deveria abrir as portas e não obter resultados.
- Eu preciso arrumar um jeito de sair. - falo, cada vez sentindo-me mais angustiada.
- Relaxa, uma hora a gente sai.
Jisung senta-se no "chão". Ele é bem despreocupado, não se importa em ficar aqui, enquanto eu estou quase claustrofóbica.
Ando de um lado para o outro, fazendo a baliza que ele disse que eu não conseguiria na autoescola, mas entre suas pernas esparramadas no chão, tentando pensar em algo para me livrar daqui. Pego o celular do bolso e me deparo com um 1% restante, mas não me admira, meu celular vive assim. Tento ser rápida e procuro o número da senhora Kim na lista de contatos, fico contente quando começa a chamar, mas me estressa a maneira como a bateria se vai assim que sou atendida.
- Você pode me dar o seu celular? - peço ao homem, este que consegue se manter relaxado mesmo preso e sem previsão de saída.
- Assim, tão rápido? - ele faz uma piada que só ele acha divertida. - Não vai me dizer nem o seu nome primeiro?
- Você pode me emprestar o seu aparelho celular, por favor, ou não? - pareço calma quando pergunto, mas por dentro fico prestes a explodir, de ansiedade ou sem oxigênio suficiente nos pulmões. Hoje ele apresenta um pouco mais de educação e me entrega o celular desbloqueado. - Obrigada. Sou Lee Jiwoo. - resolvo ser educada também.
Entro na discagem de chamada e digito os três primeiros números do telefone da senhora Kim, sindica do prédio, mas os outros tenho um blackout. É o momento em que me recordo de que o único número ao qual sei de cor, é o meu.
- Não vai ligar? - ele questiona.
- É que eu não lembro o número. - eu o entrego o aparelho de volta, ele ri. - Você pode ligar para Changbin e pedir por ajuda?
- Eu até posso, mas ele não está em casa e também não deve conhecer o número de ninguém daqui ainda.
Suspiro frustrada.
Jogo-me de costas, acertando a parede atrás de mim. Fico encostada nela pensando em alguma maneira de sair daqui, passo as mãos pelos cabelos, tirando-os do rosto e tentando manter a calma. Procuro alguma solução para o problema, mas nem se gritássemos seríamos ouvidos. Perco as esperanças e a paciência, sento-me no solo também, estico as pernas e bufo irritada.
- Então... como você conhece o Changbin? - ele pergunta para matar o tempo.
- O encontrei em uma reunião de condomínio. - respondo objetivamente. Não é que eu o odeie, mas ainda tenho ressentimentos do nosso último encontro, por isso não quero prolongar o papo com Jisung.
- Vocês são amigos também? - ele continua perguntando.
- Não sei se amigos é o termo adequado. - respondo ao seu interrogatório.
- Então vocês estão saindo? - ele questiona. Não sei de onde tirou intimidade para me fazer este tipo de pergunta. - Só estou perguntando porquê ele é meu melhor amigo e moramos juntos, quero saber se você vai passar a frequentar nosso apartamento.
Eu não o respondo. Não, nós mal nos conhecemos - falo sobre os dois -, e também, esta é uma informação pessoal, mesmo que não haja nada, responder seria dar mais liberdade para que outras como esta surjam. Seo e Han podem ser amigos, mas eu não os conheço, não sou nada deles.
- Então, Jiwoo... quantos anos você tem? - ele fala comigo em tom informal. Han é sociável de mais para mim. - Wow, você é sempre assim, tão tagarela?
- Não é um bom dia. - ultimamente nunca tem sido.
Ele se cala por um tempo, mas logo depois volta a me fazer uma série de perguntas. Eu achava que a senhora Kim falava demais, mas ele a supera. O cara já está está no meio de um monólogo por quase meia hora. Se fosse para ficar presa neste elevador do inferno, eu preferia ter ficado sozinha, mudo de ideia. Se com alguém, então com Changbin, ele me parece o mais são dos dois.
Quanto mais Han fala, mais eu me pergunto sobre como pessoas tão distintas, no que se refere a personalidade, conseguem ser amigas. Não estou falando como se eu fosse a maior expert no assunto Seo Changbin, mas apenas o comportamento de ambos comigo já me diz muito. O outro é mais calmo, enquanto o que fica preso comigo é super agitado.
- E foi assim que eu quase fiquei sem uma perna. - ele conclui a história que eu não pedi para ouvir. Acho que finalmente calou a boca.
- Nossa, que interessante. - finjo.
- Não é? - me enganei, ele continua a falar. - Mas eu faço porquê amo a música, é tudo o que eu tenho, praticamente. Você gosta de música?
- Na verdade, prefiro o silêncio. - digo, com a esperança de que assim ele possa entender que eu só preciso que ele cale a boca por alguns instantes, mas seria esperar muito dele.
- Eu não. - ele diz, não perguntei. - É meio sufocante, um pouco solitário até.
- Deve ser porque você nunca soube aproveitá-lo de verdade, ou me deixar aproveitar. - resolvo ser direta. - Só estou dizendo que, se você aprendesse a pensar no tempo em silêncio como um momento de paz e calmaria, aí eu conseguiria dormir tranquila.
- Eu já passei muito tempo no silêncio. Quase acabou comigo.
- O seu barulho durante as noites é que está acabando comigo. - eu digo, mas é apenas uma parte do meu sofrimento, já não durmo bem fazem dias, mas um pouco de silêncio à noite ajudaria a diminuir o meu estresse.
- Não vai ser por muito tempo, eu prometo. - ele me garante. - Eu estou colocando isolamento acústico no meu quarto, em breve você poderá reclamar sobre tudo o que quiser, sem que eu ouça.
- Até lá você não poderia ser um bom vizinho e evitar a poluição sonora? Quanta barulheira.
- Wow, wow, wow! - ele se ergue do chão. - Eu tenho sentimentos, sabia? - Jisung leva a mão ao peito, como se doesse. - Não são simples barulhos, é música.
- Eu não encontro diferença alguma. - levanto também e dou de ombros. Gosto de música e, espero que ele nunca saiba disso, mas ele toca bem. A única razão pela qual digo o contrário é para irritar, estou chateada, ele ainda não me pediu desculpas pelo nosso primeiro encontro. - Não gosto de música.
- Talvez seja porquê você ainda não encontrou a melodia da sua alma. - ele fala, não entendo uma palavra do que ele quer dizer. - Na verdade, acho que tenho o som perfeito para você. Você quer ir até a minha casa... ouvir música? - ele faz o convite. Voz inocente e olhos maldosos, acho que percebi como Han Jisung é.
Sinto-me meio tonta e esquisita, há algo nele que me chama muita atenção. Meus joelhos ficam repentinamente fracos, então me encosto na porta do elevador como um apoio para que não caia, mas acontece exatamente o oposto. De surpresa, as portas se abrem, e como se estivesse tudo funcionando em câmera lenta, sou jogada para trás.
Eu grito assustada, com medo de dar de costas com o chão e me machucar. Nos últimos instantes, o homem preso comigo segura o meu braço e me puxa bem rápido. A força com que ele tenta me salvar de uma possível concussão faz com que eu acabe o empurrando, assim, ele bate de costas na parede, enquanto eu, colido a cabeça no macio do seu peito coberto.
Eu travo, meu corpo reage de maneira tão estranha. Afasto-me dele rapidamente e continuo sem conseguir olhar diretamente nos seus olhos castanhos, sinto algo esquisito, inquietante na minha barriga. Deve ser a adrenalina que corre nas minhas veias e me deixa tão eufórica que atrapalha até a minha respiração.
- Você está bem? - ele questiona.
- Eu... acho que não.
Respondo e vazo o mais rápido possível. Eu praticamente corro para fora. Quando saio do prédio, olho pela vidraçaria se ele está vindo, mas ele continua lá falando com alguns homens fardados, que parecem estar fazendo a manutenção dos elevadores. Recordo de uma memória. Esqueci completamente que o dia da manutenção é hoje e que Han não estava no dia da reunião.
Não há mais nada o que fazer sobre isso que não seja me envergonhar, então paro de espiar como se fosse uma stalker e sigo rumo à uma conveniência mais perto. Depois de conseguir tudo, volto para o apartamento, mas, desta vez, só por garantia, uso as escadas. Chego em casa acabada após subir os seis andares, mas continuo com o que me propus, é tarde para desistir.
Pronta para mudanças, abro a caixa de tinta e leio duas vezes as instruções. Algum tempo depois, já estou com as madeixas todas cobertas pela tintura preta. Ligo a tevê para passar o tempo, encontro um filme de terror de má qualidade, o assisto enquanto como alguns salgadinhos e bebo um pouco. Foi uma péssima ideia para me livrar do tédio, o filme é tão ruim que me faz bocejar.
Impaciente, eu pego meu computador, abro o e-mail e procuro respostas sobre as entrevistas. Não há nada. Me frustro cada vez mais. Passados os minutos, eu retiro a tinta, tomo um banho e passo o secador no cabelo. Sem mais o que fazer, volto para a sala e me jogo no sofá. Coloco a tevê na programação de um canal qualquer e deixo rolar, mas meus olhos insistem em desviar para a última caixa com as coisas de Huye.
Olho a tudo com desgosto, fico muito emotiva. A dor que ele me causou maltrata incansavelmente. Há uma voz na minha cabeça que fica me gritando para seguir em frente, deixar tudo para trás. Esta voz é a de Soojin. Eu fico angustiada, espero calar os pensamentos e esquecer tudo o que um dia já vivemos, mas não consigo.
Necessito me livrar desses vínculos que continuam me prendendo a ele. Começo a pensar mais sobre o conselho de Soojin em sair com alguém, sem compromisso. Ainda me parece má ideia, penso enquanto seco a terceira garrafa de soju. Quando esta dor vai finalmente ter um fim? Me sinto tão sozinha neste apartamento, acho que talvez o que eu mais precise agora é encontrar conforto em algum ombro amigo, alguém para conversar.
Quanto mais eu bebo, mais tenho vontade de chorar e colocar tudo para fora - em ambos sentidos. Resolvo parar enquanto estou sóbria o suficiente para ter consciência do que estou fazendo. Cubro o rosto com as mãos, mas não é o suficiente para me fazer parar de pensar nele. Preciso sair daqui.
Sem pensar muito, levanto-me e calço os chinelos ao lado da porta, em seguida saio de casa. Cruzo os braços e caminho um pouco distraída, distante do mundo físico. Meu corpo se move sozinho, até que quando percebo, estou dando batidinhas na porta ao lado. Espero a porta ser aberta. Fico impaciente e nervosa por ter vindo desabafar com um semi-estranho. Minhas mãos ficam trêmulas, minha respiração pesada. Meu cérebro não consegue pensar muito bem, eu só espero o dono da casa abrir e me receber.
- Olá, vizinha.
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