
𝟎𝟕. 𝒂𝒍𝒈𝒖𝒆́𝒎 𝒒𝒖𝒆 𝒆𝒏𝒈𝒂𝒏𝒐𝒖 𝒂 𝒎𝒐𝒓𝒕𝒆
━━━━ CAPÍTULO SETE ꡙꡚ
━━━━━━━ É CLARO QUE ELA sonhou enquanto dormia. Mas esse foi um dos sonhos mais calmos e relaxantes que teve em muito tempo. Uma memória, de quando Alice tinha nove anos e Melina tinha seis. Quando elas eram apenas crianças, irmãs que eram também melhores amigas, quando passavam as tardes livres no parquinho perto de sua casa.
As duas estavam na gangorra, uma subindo e outra descendo, uma descendo e outra subindo. O sol estava quase se pondo, logo trocaria de lugar com a lua, mas as duas meninas não tinham pressa de ir para casa. O clima agradável, os risos igualmente agradáveis.
Mas então Melina, como a criança inquieta que era, decidiu tentar se equilibrar de pé sobre a gangorra. Deu errado, é claro. Ela caiu quase que imediatamente.
────── Lina! ────── a mais velha imediatamente foi até a irmã, que estava caída no chão, preocupadíssima.
Quando se aproximou da mais nova, percebeu que ela não chorava, não sentia dor. Estava rindo, na verdade. Bastante. Fora uma queda hilária, Melina sabia. Então, com a percepção de que sua irmã estava bem, e influenciada pela risada contagiosa dela, Alice começou a rir também.
Ela se juntou à Lina, se jogando na grama. E ali ficaram por um tempo, em uma crise de risos, deitadas na verde e confortável grama.
────── Meli... Ei, Meli. ────── ela foi tirada do sonho por uma voz feminina familiar a chamando.
Ela resmungou, abrindo os olhos lentamente e depois piscando várias vezes pra se acostumar com a luz do ambiente.
────── Acorda. Chegamos no acampamento. ────── Annabeth avisou. Percy estava ao seu lado esquerdo, com uma feição um pouco azeda.
Melina olhou pela janela ao seu lado, apreciando brevemente a vista. Era incrível como o acampamento Meio-Sangue conseguia lhe trazer paz, nem que fosse por apenas um momento. Era belo, tão belo. A Colina Meio Sangue, os campos de morango, os chalés... tudo.
────── Não tem nada aqui, senhorita. Você tem certeza que quer descer? ────── perguntou o motorista do táxi, quando Beth o pediu pra parar.
────── Sim, por favor ────── ela entregou um rolo de dinheiro ao motorista, o que o fez se calar.
Então os três semideuses saíram do carro, indo em direção ao topo da colina. Peleu, o dragão guardião da entrada do acampamento, estava cochilando, enrolado ao redor do pinheiro de Thalia. A cabeça do enorme dragão se moveu quando os três se aproximaram, deixando Melina acariciar seu queixo.
────── Tudo certo, Peleu? ────── Melina disse, a voz um pouco afinada. Ele ronronava e piscava, indicando que estava gostando do carinho.
────── Ei, Peleu. Mantendo tudo seguro? ────── Annie disse, se aproximando do dragão e fazendo carinho em sua cabeça, como Melina.
O dragão parecia relaxado, pacífico. Assim como o acampamento. A beleza surreal e a paz que o Acampamento Meio-Sangue normalmente trazia sendo notadas pela segunda vez no dia pela filha de Apolo.
────── Não é estranho que aquele cara achasse mesmo que não tem nada aqui? Quer dizer, olha isso! É doido como um lugar tão cheio de vida possa ser facilmente escondido para o olhar de algumas pessoas ────── Melina disse, se dirigindo a ninguém em específico.
A verdade é que ela estava preocupadíssima, mas tentava esconder isso. O acampamento era lindo, estava calmo, e nada aparentava estar diferente. Mas estava. Meli conseguia sentir a tensão no ar aumentar cada vez mais, todos ali sabiam que não estava longe de uma guerra se desencadear. E, claro, também tinha o recente acontecido: Percy, saindo de uma escola em chamas, e depois dizendo que duas empousai haviam o avisado que logo aquele seria o Acampamento Meio-Sangue.
Melina não achava que suportaria perder mais pessoas e mais um lar para as chamas.
Sua mente a levou, mais uma vez, para o dia em que Alice morreu. Ela ainda não tinha superado aquilo, como poderia? Nada a deixava esquecer da madrugada em que acordou e viu sua casa tomada completamente pelas chamas, a madrugada em que sua irmã foi assassinada por algo que, até hoje, Melina não conseguira descobrir o que era.
Era perturbador, não saber o que havia matado a pessoa mais importante pra você bem na sua frente. Não saber o que tinha tirado tudo de você, arrancado à força sua felicidade. Era claro que Melina havia pesquisado sobre a criatura, tentado descobrir o que era. Desde que havia chegado no acampamento e posto seus pensamentos no lugar — quase —, ela vinha procurando, usando os recursos do acampamento. Lido livros e livros sobre criaturas gregas, passado diversas tardes com a ajuda de Annabeth, que sabia mais sobre o assunto do que qualquer outro campista, perdido noites de sonos, pedido aos deuses por ajuda, antes mesmo de saber quem era seu pai.
Mas as tentivas, é claro, de nada adiantaram. Ela, depois de anos, ainda não tinha nenhuma ideia do que ocorrera naquela madrugada terrível. Só tinha conhecimento que, num dia que deveria ser igual a todos os outros, ela levantou de sua cama e sua casa estava pegando fogo. Também a sombra, névoa, o que for, que parecia ter Alice como um alvo decidido.
Annabeth segurou a mão de Melina, a chamando de volta ao presente. Meli se sobressaltou e olhou para a Chase, que a olhava de volta com um tipo de olhar que perguntava se ela estava bem. Annabeth era praticamente a única pessoa que olhava para a filha de Apolo assim, a única que notava quando ela não estava bem.
Melina não sabia se gostava daquilo ou não, de ser realmente percebida. Ela se sentia vulnerável com Annabeth, não poderia fingir estar bem como fingia para os outros porque ela perceberia. Talvez aquilo fosse bom, na verdade.
Mas Meli não queria falar sobre o que estava pensando agora, então só desviou o olhar e começou a andar, descendo da colina. Ela sabia que, poucos passos atrás, Annabeth a seguia, não deixando de olhá-la. E Percy seguia as duas meninas, não entendendo nada do que estava acontecendo.
Os três desceram o vale, e lá estava o acampamento, já em total atividade. Tinha os sátiros tocando suas flautas nos maravilhosos campos de morango, campistas estavam voando por aí em pégasos, tendo suas aulas de montaria, fumaça subia das fornalhas enquanto alguns semideuses faziam suas próprias armas, os times de Atena e Deméter apostavam uma corrida de bigas ao redor da pista. E é claro que havia alguns meio-sangues lutando contra uma grande e laranja serpente marinha no lago de canoagem. Dia comum no acampamento.
────── Preciso falar com Clarisse ────── Beth disse, e Melina acenou com a cabeça e disse um "ok". Percy, no entanto, olhou para a que estava saindo como se ela tivesse dito a coisa mais absurda do mundo.
Justo, na verdade. É Clarisse, afinal. Se não tivesse passado o ano todo no acampamento também estaria tendo a mesma reação do Jackson.
────── Pra quê? ────── ele perguntou.
────── Estamos trabalhando em algo ────── Annabeth disse, a abraçou a outra menina de lado ────── Vejo vocês depois.
────── Trabalhando em quê?
A filha de Atena se voltou para o bosque.
────── Vou falar pra Quíron que você está aqui. Ele vai querer falar com você antes da audiência.
────── Que audiência? ────── Percy gritou, mas Annabeth já estava correndo rumo ao campo de arco e flecha.
────── É. Legal falar com você também. ────── ele disse, e se virou para a garota que tinha ficado pra trás com ele.
Melina, sendo curiosa como era, queria explicar o que estava acontecendo para Percy, porque entendia sua confusão, mas, tirando Quíron, as únicas pessoas que pareciam saber de verdade o que realmente estava acontecendo eram Clarisse e Annabeth — e talvez Grover. Resumindo, as coisas das quais ela sabiam, ele provavelmente iria saber logo também, só teria que esperar o diretor de atividades do acampamento lhe contar. E, de qualquer forma, ela precisava ir treinar suas habilidades com espadas e adagas, mesmo que preferisse ir treinar arco e flecha.
────── Você também não vai me explicar o que 'tá acontecendo, né?
────── Não seria certo eu explicar se nem sei exatamente o que é. E eu preciso mesmo ir treinar. Mas não se preocupa com o gelo que a Annie 'tá te dando. Ela só está muito preocupada com tudo que 'tá acontecendo aqui ────── em parte era isso, sim. Mas obviamente não era só isso. Ela também 'tava com ciúmes da ruiva que saiu com Percy da escola e a qual ele tinha o número de telefone escrito no braço, Rachel.
Mesmo que Annabeth nunca fosse admitir isso, Meli percebeu. E, por algum motivo que ela não entendia, ter o senso de que Annie estava com ciúmes de Percy doía em Melina.
────── Ok, certo, tudo bem.
Melina provavelmente só tinha deixado Percy mais nervoso ainda com o ''preocupada com tudo que está acontecendo aqui'', mas, bem... não tinha muito o que ela fazer. Então só se despediu brevemente de Percy e começou a caminhar em direção ao seu treinamento.
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Chegando na floresta, ela encontrou com Pamela Morgan sentada num tronco de árvore comendo uma barrinha de cereal de chocolate e morango. Ela amava morango e tudo que continha morango.
────── Ei ────── Pam sorriu e deu pra outra menina uma barrinha da mesma que estava comendo, e Meli se sentou ao seu lado. ────── Como foi o filme? Qual vocês assistiram?
────── Nenhum, na verdade ────── Melina riu, não sabendo se era uma risada forçada ou não. A expressão de Pamela exalava confusão, então a filha de Apolo explicou: ────── Teve um acidente, então nem sequer botamos o pé dentro do cinema. Quem sabe outro dia. Quando eu deixar de ser uma semideusa.
────── Vocês três 'tão bem? O quê...
────── 'Tá tudo bem ────── Melina fez um gesto de não importância com a mão ────── Só não sei se Percy vai continuar naquela escola por muito tempo.
E então ela explicou o que tinha acontecido até onde sabia.
────── Uau. Fogo.
────── É, fogo. Sempre tem fogo.
A menina do chalé de Hermes encarou a outra — que desviou o olhar e ficou encarando as árvores — por um momento, pensando em alguma coisa pra falar.
────── Meli...
────── Acha que vai ficar tudo bem? Aqui, com o acampamento?
────── Claro que vai, é o acampamento Meio-Sangue!... ────── ela suspirou, e, depois de um momento, disse ────── Eu espero muito que fique.
Melina sentia que se desviasse o olhar mais uma vez ia deixar claro o quanto queria chorar, então continuou encarando Pam, se concentrando nos olhos dela enquanto tentava não chorar.
Os olhos de Pamela eram lindos, muito. Eles eram castanho-escuros mas, de vez em quando, parecia impossível descrever sua cor com uma palavra além de "todas". De vez em quando, os olhos dela brilhavam tanto, e era tão lindo, parecia que ela tinha o arco-íris todo e um pouco mais ali.
E naquele momento os olhos dela estavam daquele jeito, brilhando de um jeito impossível de descrever propriamente, bonitos o bastante para distrair Meli de seu medo.
Pamela parecia ter esse dom de distração... ela constantemente ajudava Melina com isso, as vezes sem nem perceber. Recentemente, elas tinham se aproximado bastante, desde que a agitação do inverno em que os di Angelo estiveram ali passou um pouco, até ali, começo do verão.
Sempre foram amigas, mas não eram tão próximas no começo. Só que Melina percebeu que, com o passar dos anos, elas vinham ficando mais e mais amigas. Até chegarem onde estão agora, treinando esgrima juntas e comendo barrinhas de cereais sentadas em troncos de árvores enquanto conversam sobre tudo e nada.
────── Vamo' começar? ────── Meli se levantou do tronco e amassou a embalagem agora vazia de barrinha de cereal, guardando no bolso do short jeans amarelo.
────── É, claro ────── Pamela demorou um pouco pra responder, mas logo chacoalhou a cabeça e se levantou, pegando sua própria espada e uma outra que tinha trago consigo para a menina à sua frente.
Por que treinar esgrima na floresta quando tinha literalmente uma arena própria para isso ali no acampamento? Bem, pergunte isso pra Pam.
Ela acha que fica muito "sério e formal" treinando na arena, como se fosse uma aula mesmo — o que é, mas Pamela não gosta da ideia de ser professora e de dar ordens a alguém. Sim, ela fazia isso mesmo que não fosse na Arena, mas ali, no lugar "errado" pra treinar, se parecia mais com um passatempo do que uma aula. E, realmente, era um passatempo pra Morgan, visto que ela se divertia tentando ensinar à Melina como usar uma espada.
E por que a filha do deus do Sol queria que justo Pamela lhe treinasse? Porque, bem, ela era boa em tudo que se propunha a fazer, incluindo esgrima. Ela ensinava bem, e, apesar de gostar muito de Pam e de sua amizade, ela não sentia uma necessidade tão grande de impressioná-la — como, por algum motivo, sentia com Annabeth.
────── Pensa rápido! ────── Pam disse e jogou a outra espada para Melina, que se pôs na ponta dos pés pra pegar a arma ainda no ar.
A espada que Melina usava pra treinar era simples, lâmina de metal brilhante e afiada, cabo dourado, etc., etc. A de Pamela é que era diferente, com o centro do pomo contendo um espelinho que servia mais do que apenas pra se olhar, o cabo de prata e a lâmina que, voltada em direção à luz certa, formava uma imagem — uma ilusão — de acordo com o que se passasse na mente de Pamela.
────── Acho injusto que você tenha uma arma tão legal e multitarefas enquanto a minha é só... uma espada temporária do acampamento pra treinamento.
────── É, bem, eu sei usar espadas, então faz mais sentido eu ter a minha própria do que você, senhorita arco e flecha. E outra, não sei se todas as irmãs saem distribuindo espadas antes te de te deixar pra trás ────── Pamela arregalou os olhos e interrompeu a risada irônica quando percebeu o que tinha dito ────── Ai, meus deuses, Meli, me desculpa. Eu não quis dizer que-
────── Tá, certo, então na próxima vez que ver o meu tão presente pai Apolo, vou pedir um arco e flecha especial, porque isso eu sei usar sem esforço algum ────── Melina interrompeu Pam, rindo.
Meli não era a única pessoa que tinha perdido uma irmã. A espada de Pamela foi um presente que a irmã mais velha dela deu pra ela antes de ir embora, e elas nunca mais conseguiram se encontrar de volta.
Será que todas as irmãs mais novas estavam destinadas a serem deixadas pra trás?
A Morgan pensou que Meli fosse se chatear com ela por ter falado o que disse, mas não tinha nada demais naquilo. Quer dizer, se uma psicóloga ouvisse provavelmente iria ficar preocupada, mas... enfim. Pamela tentava lidar com o abandono disfarçando sua dor com piadas, assim como Melina fazia quanto à morte de Alice.
────── Você nunca fala muito sobre essa espada, ou... sobre sua irmã. ────── Meli apontou, tentando não parecer insensível, enquanto as duas meninas se posicionavam corretamente.
────── Não tem muito o que falar, tem? Ela não aguentava mais aquela casa, e pelo visto eu não era boa o bastante pra fazer ela aguentar mais um pouco. Então me deu uma espada, e disse que a gente ia se falar por ela todo dia, porque ela tinha uma igual e os pequenos espelinhos nos pomos delas eram ligados, como um tipo de chamada de vídeo. Mas mentiu, e um mês depois que foi embora parou de falar comigo pela espada, então perdemos contato, perdemos uma a outra. Nada demais, o de sempre, né? ────── Pam deu um sorrisinho.
────── Eu sinto muito... desculpa por ter trazido esse assunto à tona. ────── era bom que Meli e Pamela fossem parecidas, porque as duas sabiam que a filha de Apolo não sabia mais o que falar, e que a outra menina não queria que ela falasse mais sobre.
────── Nah, tudo bem. Foi a tanto tempo atrás que eu nem tenho certeza se ainda lembro da voz dela. Quem sabe daqui a pouco não esqueça dela por completo, né?
Melina ficou em silêncio, se sentindo mal por Pam mesmo com ela dizendo que estava tudo bem. Depois de um tempo, a de cabelos mais escuros se aproximou mais de Meli.
────── Você 'tá segurando a espada do jeito errado... Aqui ────── Pamela corrigiu a forma com que a outra menina estava segurando sua arma, enquanto dava instruções que — ela esperava — fariam Melina se lembrar de como agarrar a espada do jeito certo.
────── Ah, certo...
Um tempo depois, ambas as espadas já estavam se encontrando no ar, as duas meninas empunhando suas lâminas uma contra outra. Melina ainda não era exatamente boa com a espada, mas definitivamente estava melhorando com o tempo.
A arqueira tentou desferir um golpe que vira algum outro campista usando uma vez, mas com certeza ainda não estava preparada pra ele. Ela se desequilibrou, o que deu abertura para Pam desferir seu próprio golpe, que terminou com Melina deitada no chão, olhando para a outra menina que, em pé, tinha sua espada apontada pro rosto da que estava caída.
────── Vem ────── Pamela estendeu a mão pra amiga, rindo ────── Você foi ótima 'tá melhorando bastante mesmo. Só precisa ser mais paciente.
────── Bem, quando uma certa tropa invadir o acampamento eu não vou ter tempo pra ser paciente, vou?
────── Não, mas até lá eu já vou ter terminado de te ensinar. E outra, não tem porquê você lutar com espada, pode muito bem usar seu perfeito dom com arqueria.
────── É, certo. Tá. Mas será que algumas flechas vão ser suficiente pra... você sabe.
────── Claro que vão, Meli. E você não vai ser a única lutando. O acampamento vai ficar bem. Além de que, novamente, até lá eu já vou ter terminado de te ensinar a usar espada, e você vai ser uma ótima espadachim.
────── Ok, ok. Vai ficar tudo bem, né?
────── O acampamento vai ficar protegido e, de brinde, você ainda vai conseguir impressionar sua namorada. Vai ficar tudo bem.
A segunda parte ela disse mais pra aliviar o clima de "o acampamento está em perigo", mas não mentia.
────── O quê? Que namorada?
────── Qual é, Meli, eu conseguiria perceber a mil quilômetros de distância. 'Tá estampado na sua cara que você gosta da Annabeth.
────── Não... ────── ela soltou uma risada nervosa, se entregando completamente ────── Não gosto da Annie, ela é minha amiga. Só isso.
────── 'Tá enganando a si mesma, Meli.
────── Não 'tô! Eu saberia se gostasse dela, assim como sei que ela gosta do Percy!
────── Ok, ok. Você que sabe ────── Pam fez um sinal na boca como se estivesse fechando um zíper, indicando que ia se calar sobre o assunto.
No fim do treino, quando estava quase anoitecendo, as tranças morenas de Pamela já estavam se desfazendo quase que completamente, uma grande bagunça, e os cabelos de Melina grudavam em sua testa — porque ela odiava prende-los, e só fazia em casos de extrema necessidade.
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Já era completamente de noite, estava ficando cada vez mais tarde, e Melina não conseguia dormir. Depois do treino, ela e Pam foram tomar banho e jantar, Meli fez sua oferenda pra seu pai, Apolo, como sempre, e antes de todos irem para os seus chalés, foi falar com Annabeth.
Só dar um oi, perguntar se estava tudo bem e dar boa noite. Ela tentava dar boa noite pra Annie todos os dias, não sabia porquê, só gostava.
Então foi pro chalé 7, colocou uma roupa pra dormir — um short qualquer e uma blusa preta com desenhos do homem aranha que antigamente ficava grande demais nela, mas hoje em dia nem tanto. Ela usava aquela blusa com extrema frequência; se estava limpa, ela usava — e subiu na cama.
Um dia Kayla, sua irmã por parte divina, tinha perguntado por que ela usava tanto aquela blusa, já que àquele ponto 'tava parecendo até um uniforme. Meli só disse que gostava muito de homem-aranha, mas na verdade era por que se parecia muito com uma blusa que Alice adorava. E ela não tinha nada que já houvesse realmente pertencido a Lice, então...
────── Ei, Melina ────── Austin Lake, olhando pra cima, chamou, um pouco baixo ────── Tá com sono?
────── Ah, oi? ────── todas as camas do chalé sete eram treliches, e ela ficava na de cima ────── Não tô, não. Por que?
────── Quer jogar uno? ────── Kayla, do lado de Austin, perguntou.
────── Claro!
Assim que ela confirmou, os dois subiram na escadinha e logo estavam sentados de pernas cruzadas na cama de Meli.
────── Will não quer jogar? ────── perguntou, pegando o bolo de cartas e embaralhando ele.
────── Will? Ele voltou da enfermaria não faz muito tempo e tá dormindo como uma pedra agora ────── Austin apontou com o polegar pra uma das camas encostada na parede à frente.
Melina olhou pra onde ele apontava, e lá 'tava Will Solace, provavelmente em seu sétimo sono.
────── Ah, calma aí ────── disse, terminando de embaralhar as cartas e entregando o uno na mão de Kayla ────── Tô, divide aí!
Desceu do topo da treliche, foi até a cama do seu meio irmão — ele dormia na cama de baixo —, e cobriu os olhos dele com uma parte do lençol, porque as luzes do chalé estavam ligadas.
Melina tinha esse costume, de, sempre que alguém ali dormisse mais cedo que os outros, tampar os olhos do tal pras luzes não incomodarem.
Quando se virou pra trás, pra voltar pra sua cama, deu de cara — literalmente — com Lee Fletcher, o conselheiro chefe do chalé de Apolo.
────── Meli, o que 'tá fazendo? Já é tarde!
────── Ai, que susto! 'Tô... cobrindo o rosto do Will, ué.
Lee riu leve.
────── Desculpa, costume de chegar de fininho. Mas enfim, por que cobrir o rosto de quem tá dormindo e não apagar as luzes? Já que, afinal, você também devia estar dormindo?
────── Porque não dá pra jogar Uno com tudo escuro?! E ah, por favor, nem se eu tivesse deitada na cama mais confortável do mundo e de olhos fechados eu estaria dormindo.
────── E por quê?
Ela demorou um pouco pra responder.
────── Porque... eu tenho medo. ────── Melina viu o olhar dele mudar.
────── Medo do que pode ver quando estiver sonhando? ────── ela tinha contado pra ele sobre aquele sonho que teve no inverno passado, da morte de Bianca di Angelo.
────── Sim... e do que pode acontecer enquanto eu 'tiver acordada, também.
Fletcher provavelmente era o mais velho dali. Ele era quase o irmão mais velho que Meli nunca teve — devia ser assim pros outros filhos de Apolo, também.
────── Vai ficar tudo bem. ────── ele puxou ela pra um abraço. Não tinha muito mais que pudesse dizer.
────── Mas enfim, nada demais, não importa. Quer jogar Uno? ────── ela pôs entusiasmo em sua voz e um sorriso no rosto.
Melina Hayes podia se dizer profissional em mascarar sentimentos ruins.
────── Quero não, mas brigada ────── riu.
Melina foi andando de volta à sua cama, subindo a escadinha e sentando com as costas apoiada na parede.
Um conselheiro chefe provavelmente devia impedir os semideuses de seu chalé de dormir muito tarde, mas por que impedir alguém de jogar Uno?
Kayla entregou sete cartas pra Meli, e os três ali na cama começaram a jogar.
────── Demorou lá. Por que 'cê sempre faz isso? ────── ela perguntou, jogando uma carta verde de número 5.
────── O quê?
────── Cobrir o rosto de quem estiver dormindo quando a luz tiver acesa ────── Austin completou.
────── Não sei. ────── jogou uma carta cinco de cor azul ────── Bem, quer dizer, minha irmã sempre fazia isso comigo quando ela precisava estudar até tarde, porque a gente dormia no mesmo quarto. Uma vez ela me disse que tinha pego esse costume da nossa mãe, que fazia isso com a gente quando éramos mais novas, eu tão nova que nem consigo lembrar.
────── Então pegou esse mesmo costume da sua irmã?
────── Sim ────── Melina sorriu.
Ela estava fazendo de tudo pra não deixar transparecer um tom triste na voz. Deve ter conseguido, porque o clima não pareceu pesar.
────── Já fez isso comigo? ────── Austin perguntou.
────── Hm... Sim. Você tá sempre dormindo mais cedo.
────── E comigo?
────── Sim, mas no máximo umas três vezes. Quando nós duas não dormimos na mesma hora, eu durmo antes.
Melina disse isso enquanto jogava uma carta de +4, o que faria Kayla pegar mais quatro cartas. Isso se ela não tivesse outra opção, mas ela tinha.
No final, foi Austin quem acabou comprando quatorze cartas.
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Ela não percebeu quando dormiu, mas percebeu quando entrou num sonho.
O clássico sonho-visão dos semideuses. Nossa, Melina odiava isso.
Ela via uma margem de rio negra, neblina flutuando pela água escura, e a costa cheia de pedras vulcânicas irregulares. Um menininho se agachava no banco de areia, e havia uma fogueira em sua frente. As chamas queimavam num tom azul nada natural.
Vendo o rosto do garoto, ainda que escuro pela neblina e o tom azulado do fogo, ela percebeu quem era. Nico.
Não era a primeira vez que sonhava com Nico desde aquele dia no inverno em que ele fugiu, mas eles costumavam ser mais pesadelos, lembranças, imaginação. Ela sabia que aquilo em sua frente era uma visão, que ou estava acontecendo ou já havia acontecido.
Ele estava jogando papéis no fogo, que Melina percebeu com não muita dificuldade serem cartas de Mitomagia.
Aquilo apertou o coração de Melina. Saber que o menino que tinha conhecido provavelmente não existia mais, que tinha ido embora no momento da confirmação da morte de sua irmã, que estava queimando junto daquelas cartas do jogo.
Nico estava diferente da última vez que ela o vira. Já devia ter uns onze anos, seu cabelo estava mais cumprido, quase tocando nos ombros. Sua pela azeitonada estava agora pálida, seu rosto estava sujo e seus olhos negros, talvez selvagens. Ele estava usando jeans preto rasgado e uma jaqueta de aviador que era muito maior que seu tamanho ideal aberta, mostrando uma camisa preta.
Melina queria ter conseguido proteger ele daquilo. Do luto consumidor, da vida cruel nas ruas, da solidão. Ela sabia que ele não só estava sozinho, mas que também se sentia sozinho. Solitário, sem ninguém. Ela o entendia, queria estar lá com ele.
Ela tentou chamar ele, mesmo sabendo que seria inútil. Era só um sonho, afinal. Nico não teria como saber que ela estava ali.
────── Inútil. Não posso acreditar que já gostei disso ────── ele resmungou, jogando outra carta de Mitomagia na fogueira azul.
Melina se lembrou de quando o conheceu pela primeira vez, uma criança animada tagarelando sobre seu jogo. Sentia saudade disso, mas tinha plena consciência de que não tinha como voltar.
────── Um jogo infantil, mestre ────── a menina tentou ver de quem vinha a voz, mas não conseguiu.
Só pôde reconhecer que parecia vir de perto do fogo.
O di Angelo olhou pro rio. Na margem dele havia uma pedra de areia negra envolta em nevoeiro. Melina nunca esteve lá, mas imaginou que seria o Mundo Inferior.
Quer dizer, claro, Nico era filho do deus de lá.
────── Eu falhei ────── ele disse ────── Não há como trazê-la de volta.
A voz continuou em silêncio.
Nico se virou com uma expressão desconfiada.
────── Há? Diga.
Alguma coisa reluziu. De primeira Meli achou que fosse só o fogo, mas percebeu que tinha a forma de um homem — um punhado de fumaça azul, sombra azul. Um fantasma; se olhasse diretamente, ele não estava lá, porém se olhasse pelo canto do olho, perceberia ele.
O menino estava falando com um fantasma, e estava tentando 'trazê-la de volta'. Bianca. Ele estava tentando trazer a irmã de volta a vida.
────── Nunca foi feito. Mas talvez haja um jeito.
────── Conte-me ────── ela viu os olhos dele brilharem com uma luz ardente.
────── Uma troca. ────── o fantasma disse ────── Uma alma por outra.
────── Eu ofereci!
────── Não a sua. Você não pode oferecer a seu pai uma alma que eventualmente ele vai coletar de qualquer jeito. Nem ele estará ansioso pela morte do filho. Eu quero dizer uma alma que já deveria ter morrido. Alguém que enganou a morte.
────── De novo não. Você está falando de assassinato ────── o rosto de Nico se tornou sombrio.
────── Estou falando de justiça. Vingança.
────── Estes não são a mesma coisa.
O fantasma riu, seco.
────── Você aprenderá diferente quando ficar mais velho.
Nico fixou seu olhar nas chamas.
────── Por que eu não posso ao menos convocá-la? Quero falar com ela. Ela... ela me ajudaria.
────── Eu te ajudarei. ────── prometeu ────── Eu não te salvei várias vezes? Não te guiei pelo Labirinto e te ensinei a usar seus poderes? Você quer desforra por sua irmã ou não?
O tom do fantasma parecia manipulativo. Como um valentão que convence outras crianças a fazer coisas estúpidas que vão as deixar em encrenca, mas sempre acaba livrando a própria pele.
Nico se virou para o fogo fazendo com que o fantasma não pudesse mais vê-lo, mas Melina ainda podia. Uma lágrima escorreu por seu rosto pálido.
Foi aí que ela acordou, e percebeu seu rosto molhado.
Ela se sentou em silêncio e tapou a boca, tentando não fazer barulho pra não acordar ninguém.
Só que tinha um choro preso em sua garganta, e algumas lágrimas silenciosas caíam.
Ela sentia que tudo aquilo era sua culpa. Se tivesse contado para Nico sobre Bianca assim que soube, talvez... as coisas estivessem diferentes.
Mas ela foi medrosa e o tentou proteger do jeito errado, omitindo a coisa errada a se omitir.
Melina olhou pro ambiente ao seu redor. Ela, Kayla e Austin haviam dormido jogando Uno, então tinha cartas do jogo espalhados por toda a cama, e seus meio-irmãos estavam em posições nada confortáveis, mas dormindo como anjinhos.
Ela respirou fundo — silenciosamente — e secou o rosto, então se mexeu com o maior cuidado do mundo, se colocando no meio entre Austin e Kayla.
Fechou os olhos, buscando o mínimo de conforto entre os dois, e esticou as mãos uma ao contrário da outra pra (tecnicamente) abraçá-los. Seus braços estavam completamente tortos, mas ela estava mais bem assim do que na posição anterior.
Não era uma cama espaçosa, visto que era de solteiro, e os três provavelmente acordariam com dores no corpo por terem dormido tão tortos, mas Melina não ligava de ficar dolorida, contanto que não estivesse sozinha, especialmente com a companhia sendo seus irmãos por parte divina.
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