CAPÍTULO 72 - Temores
❝Encontrando refúgio em minhas próprias mentiras
[...]Pequenas conversas são um ótimo disfarce
Apenas me deixe, apenas me deixe❞
Faith Marie- Antidote
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Durante algum tempo, a vida seguiu seu curso em Mag Mell, e não houve relato de qualquer surpresa inconveniente.
Eu continuei a ignorar a presença de Cáel e seus guerreiros, bem como eles continuaram a me evitar. Na verdade, eu passava a maior parte do tempo junto aos druidas, meditando ou aprendendo sobre as forças ocultas da Natureza. Pois, embora eu soubesse controlar os elementos com destreza, não era versada na arte da cura, tampouco da dialética, assim como as minhas habilidades estratégias não eram rudimentares se comparadas às dos sábios; elas eram arriscadas e imprudentes, eram próprio espelho da minha personalidade.
Apesar de eu ter sido — vagamente — treinada por meu pai, eu tinha o temperamento de uma guerreira viking. Não dava para negar que eu fora fortemente influenciada pelos escandinavos, bem como pelos asgardianos. Eu era uma estranha mistura da resiliência irlandesa com a bravura nórdica. Havia um pouco de ambos os lugares dentro de mim. Talvez fosse por essa razão que os druidas, bem como as druidesas, tinham certa resistência em me reconhecer como parte do grupo. Entretanto, ninguém podia negar os incríveis dons que a Natureza me concedera, por essa razão todos se esforçavam a me transmitir tudo o que sabiam.
Meu pai, porém, decidiu não revelar ao grupo os laços que nos unia. Nunca soube a verdadeira razão que o levou a agir de tal modo, talvez ele não confiasse naquelas pessoas. De qualquer forma, entrei no seu jogo. Ele era o meu único aliado naquela Ilha. Era prudente escondê-lo de Manannán.
Tão logo chegou o Yule, e para que todos se sentissem contagiados pelos ares de celebração, os dias se fizeram mais frios naquela mística ilha que sempre mantinha um clima agradável, até mesmo uma fina camada de neve despencou do céu enfeitiçado.
Detestei Mag Mell ainda mais naquele curto período invernal. O frio sempre trouxera à tona sentimentos ruins. Contudo, parceria que apenas eu odiava aquele clima gélido, até mesmos os guerreiros se animaram por conta do Yule.
Para mim, entretanto, o solstício de inverno nunca mais seria o mesmo. Foi em um dia como aquele que Loki, fingindo ser um mero viajante, adentrou em minha vida trazendo consigo o caos. Era isso que o Yule me lembrava: dor, morte e destroços de um coração dilacerado. Não havia, da minha parte, qualquer motivo para comemoração.
Cernunnos também não mandará notícias desde que me deixara em Mag Mell. Uma Lua inteira havia se passado, e o deus sequer havia me procurado. Eu não sabia o que estava acontecendo fora daquela ilha. Uma guerra era travada por mim e eu não tinha noção do que acontecia longe dali. Estava presa em Mag Mell e eu nada podia fazer para alterar a minha situação.
Mas nem tudo era tão ruim quanto parecia. Manannán — para meu deleite — decidiu me ignorar. Assim, acreditei que por ora nossa frágil relação não fora abalada.
No entanto, o dia mais longo do inverno infelizmente chegou e com ele deu-se início às celebrações do Yule. Naquela manhã tão fria quanto os braços da morte eu não tive coragem de sair debaixo das cobertas que me aqueciam. Também não tive vontade de enfrentar o dia. Não queria ouvir a palavra Yule, muito menos comemorar junto a qualquer pessoa, nem mesmo com meu pai.
Porém, nada saiu conforme eu planejei. Já que, antes de deixar seus postos e desaparecer pelo resto do dia, Cáel chamou-me do outro lado da porta, algo que ele raramente fazia.
Pensei em ignorá-lo e fingir que ainda dormia. No entanto, fiquei curiosa em saber o que o guarda queria comigo.
— Entre! — autorizei a sua e entrada em meu quarto.
A porta se abriu com um rangido doloroso, e logo Cáel a atravessou. Ele não parecia tão cansado, ao certo estava fazendo uso regular das poções energéticas que eu o havia preparado.
Sua postura era rígida entre as pesadas armaduras que cobriram o seu corpo. Ele manteve as mãos atrás das costas, um sutil gesto que indicava seu desconforto.
— Tens algo a me falar? — incentivei, pois o homem parecia um tanto reservado.
— Sim. — ele disse. — Meus homens estão curiosos para saber se irá a celebrar o Yule na cidadela, junto ao demais habitantes de Mag Mell.
Franzi o cenho ao escutar aquela frase que não era uma pergunta direta, tampouco uma afirmação.
— Por qual razão necessitam dessa informação? — indaguei, arqueando a sobrancelha.
Cáel trincou o maxilar, antes de responder com uma rispidez controlada:
— Se for a cidadela, todos os homens lhe acompanharão. Eles estão ávidos por uma noite de celebração regada a cerveja e boa comida. Contudo, caso decida permanecer aqui, então terei de escolher quem terá a noite livre para comemorar o Yule, bem como quem deverá permanecer de vigia. Precisarei pensar em um plano de rodízio, caso decida ignorar as comemorações que seguirão por esses dias.
"Maldição!" Pensei, irritada. Aqueles guerreiros me odiariam ainda mais, se eu os privasse de aproveitar a noite de Yule.
No entanto, apesar de eu nutrir certa simpatia pelos homens de Cáel, nada faria com que eu deixasse aquela torre. Eu não comemoraria o solstício de inverno. Isso já estava decidido.
— Permanecerei em meus alojamentos durante todo o Yule. Não tenho interesse em tais comemorações. Porém, se seus homens desejam participar do Yule, conceda-lhes a permissão. Eu não irei a lugar algum e acho que já percebeu que eu estou segura nessa torre. Podes ir também caso seja o seu desejo. — eu disse, esperando que ele me concedesse um momento de tranquilidade, longe de olhares desconfiados dos guerreiros que sequer me toleravam.
Cáel me encarou em silêncio. Porém, antes de me dirigir a palavra, ele semicerrou os olhos, desconfiado.
— Acredito que esteja segura. Contudo, ainda não confio plenamente em sua palavra ao ponto de deixá-la sem qualquer vigilância. Darei a noite livre aos meus homens. Mas eu ficarei e manterei a minha vigília. Não rompa a confiança que aos poucos construímos e quem sabe algum dia estará livre de mim. É o que ambos desejamos, afinal.
Eu já estava acostumado com a presença de Cáel atrás daquela grossa porta, não iria fazer a mínima diferença se ele fosse a cidadela ou se decidisse ficar naquela torre. Pouco me importava qual seria a sua decisão.
— Faça o que achar melhor. Eles são seus homens, eu não lhes devo qualquer satisfação.
Voltei a me deitar, cobrindo meu rosto com o pesado cobertor que fora tecido a partir dos retalhos de diferentes peles de animais.
Escutei as botas de Cáel se arrastar pelo chão, e em seguida, a porta rangeu novamente e depois se fechou. O guarda tinha partido e só voltaria depois do pôr do Sol.
Passei o resto do dia enclausurada naquela torre.
Quando Cernunnos disse que eu estava livre para ir a qualquer lugar de Mag Mell, inclusive participar de duas celebrações, ele não imaginava que eu não desejaria fazer parte daquele lugar, tampouco sabia que eu tinha poucos motivos para comemorar o Yule. Ele também mentira, disse que o frio não voltaria a me assombrar, entretanto, ali estava eu: imersa nas terríveis lembranças que o frio trazia consigo.
Deixei os aposentos apenas para comer e buscar água para me levar. Aquele foi o dia em que aquela banheira antiga finalmente demonstrou a sua utilidade.
Quando a noite surgiu cobrindo Mag Mel com seu manto negro, os tambores do Yule começaram a soar e o som de suas graves batidas se mesclavam o uivo do vento impiedoso que penetrava as frestas daquelas janelas velhas.
Não ouvi a arruaça dos guerreiros se embriagando em suas tendas como eram habituados a fazer para espantar o frio que assolava a todos. Deduzi, portanto, que eles tinham partido para a cidadela. Naquela longa noite, haveria apenas eu e Cáel, sozinhos na torre. Apenas dois indivíduos separados por uma grossa porta de madeira. Nada além de dos mortais e a toda a solidão que ambos carregavam dentro de si.
A medida em que a noite se estendeu, os sons dos tambores só aumentaram. Parecia até que eu fora transportada de volta a fria Escandinávia. Tive a impressão de que a qualquer momento, Loki invadiria aquela torre e me faria promessas que jamais iria cumprir.
Tentei dormir, mas as lembranças me torturavam e me consumiam. Lembranças ruins de outrora, do tempo em que o medo pairava sobre meus ombros.
Uma tristeza sem tamanho se apossou de meu coração enquanto eu me encolhia embaixo do cobertor, tentando buscar alguma espécie de conforto; tentando se abrigar dentro de mim. Não chorei. Não quis desperdiçar as minhas lágrimas. Eu sobreviveria aquela noite sem chorar; sobreviveria sem ruir.
— Erieanna. — chamou, Cáel, em tom baixo, do outro lado da porta.
Fiquei surpresa. Ele nunca tinha falado comigo durante as suas vigílias. O guarda tinha a incrível habilidade de me ignorar. Ele mal me tolerava.
— Sim. — respondi, reticente.
— Eu nunca lhe agradeci por suas poções. Elas têm me ajudado a desempenhar o meu trabalho sem que o cansaço me consuma. Obrigado. — revelou, com sinceridade.
Um sorriso surgiu em meu rosto. Naquele momento percebi que Cáel não era de todo ruim.
— Esperou ter a certeza de que eu não estava te envenenado. Por isso não me agradeceu antes? — perguntei, tentando provocá-lo.
Ele riu. Seu riso abafado perpassou a grossa madeira da porta e invadiu o meu quarto frio.
— Há um pouco de verdade em sua acusação. — respondeu, em tom sério.
Não dissemos mais nada. O feroz uivo do vento foi o único a prevalecer a nossa volta. Por um longo tempo tudo que se escutou foram as folhas das árvores ricochetearem contra as pedras da torre e a respiração lenta do guarda prostrado do outro lado daquele cômodo que pareceu ser tão minúsculo.
— O Yule não lhe traz boas recordações. Está difícil suportar essa noite? — Cáel, especulou, inseguro de sua ousadia.
Eu já tinha desistido de dormir. Sabia que aquela seria uma noite muito longa. Decidi, então, abusar daquela estranho Cáel que estava tão conversador.
Enrolei-me no cobertor, arrastei-me até a porta, e sentei-me no chão frio, encostando minha cabeça na grossa madeira que nos separava.
— Está mais difícil do que eu imaginei. Achei que seria diferente, que o passado não me assombraria. Nunca me enganei tanto. — confessei, sem saber ao certo os motivos que me levaram a expor meus sentimentos.
— Com o tempo fica melhor. — ele disse — Nada dura para sempre. Nem mesmo as lembranças ruins.
Ficamos em silêncio, novamente. Aquilo era novo para ambos. Talvez nenhum de nós queria ultrapassar a linha segura que mantinha nossa relação estável. Seria melhor se continuássemos a ser completamente estranhos para o outro.
— Se for o seu desejo comemorar o Yule com seus homens, peço para que vá. Eu ficarei segura aqui. Odin não comandaria um ataque nessa noite, o Yule é muito importante para seu povo. É uma tradição antiga que guerra nenhuma é capaz de quebrar. Estarei aqui quando voltar, concedo-lhe a minha palavra.
Cáel me ouviu, porém decidiu permanecer calado.
Pouco tempo depois, escutei movimentos por detrás da porta, e quando ele finalmente decidiu quebrar o silêncio, sua voz soou bem próxima ao meu ouvido. Percebi, portanto, que ele estava sentando no chão, assim como eu.
— Não tenho interesse na comemoração. Estou bem aqui. — ele assegurou. Não acreditei em suas palavras.
Não soube dizer se ele não confiava em mim, ou se também não gostava do Yule. Não sabia o porquê tinha permanecido ali. Talvez teve pena de mim e da solidão que me acompanhava.
— Estou certo de que não vai conseguir dormir essa noite. Eu posso lhe contar uma história, caso queira. — ele sugeriu, com receio.
Aquele guarda sempre conseguia me surpreender.
— Eu gostaria. — falei, baixinho, procurando uma posição confortável para ouvi-lo com atenção.
Então ele narrou uma história de guerra. Sobre um antigo povo que teve de lutar por sua morada, quando seres de outra raça que se achavam superior, decidiram que habitariam nas terras que não lhes pertenciam. Uma antiga lenda de um povo que foram subjugados por raça prepotente pelo simples fato deles terem uma aparência tão hostil.
Era uma história de vingança de um homem que viu os pais serem assassinados por aqueles que se dominavam deuses e por isso jurou que jamais esqueceria de trazer vingança ao seu povo. Não era um conto cheio de glória, ao contrário, a narrativa triste era permeada de dor e sofrimento, pois o filho dos renegados fora obrigado a esquecer de quem era enquanto trilhava o caminho da vingança. O final da história, contudo, teve o seu valor. Pois o guerreiro solitário não só derrotou os seres que lhe arrancará tudo, mas também trouxe justiça ao seu povo e devolveu a terra que lhe pertenciam. Ao obter a tão desejada vitória, o herói pode enfim descansar. Casou-se com uma bela mulher de espírito forte e da aliança vieram os filhos que se tornaram reis e rainhas que governaram a terra com sabedoria e justiça.
Cáel tinha a habilidade do nosso povo em contar história. Descobri, naquela noite, que eu apreciava ouvi-lo. Seu tom de voz baixo e tranquilo me acalmava de tal maneira e silenciava as vozes do passado que insistiam em me atormentar.
Ao perceber que eu apreciei seu conto, ele começou outra narrativa, uma história real sobre um de seus feitos como guerreiro. Era uma história engraçada, que me fez gargalhar alto. Um riso que jamais pensei que surgiria naquela noite.
Entretanto, apesar de Cáel ser um bom contador de histórias, o cansaço desabou sobre mim. Então eu dormi escorada naquela porta, envolta ao cobertor enquanto ouvia o som de sua voz.
※
Ainda era noite quando eu despertei assustada, com meus músculos rígidos e demasiados doloridos por conta da desconfortável posição em que eu me encontrava. O vento impetuoso ainda assoviava ao entorno daquela torre, porém, o som dos tambores fora silenciado.
Ouvi a respiração de Cáel do outro lado da porta. Ele já não falava, ao certo percebeu que eu dormira no meio da sua narrativa.
Fiquei aliviada ao me dar conta de que ele não invadiu meu quarto para me colocar na cama. Cáel não quebrara a regra de que não devia cruzar aquela porta sem a minha permissão. Aos poucos o guarda conquistava a minha confiança.
Em completo silêncio, levantei-me daquele gélido chão duro, e arrastei-me, sorrateiramente, de volta a minha cama. O frio estava ainda mais intenso naquela madrugada e eu não fazia ideia de quando o Sol retornaria.
Ao me deitar, não pensei no Yule, tampouco em Loki. Não pensei em nada, nem mesmo na presença perturbadora do guarda atrás daquela grossa porta. Apenas fechei meus olhos e adormeci com a certeza que ainda haveria algumas longas noites de inverno a enfrentar.
※
Os dias que se seguiram tomaram um padrão que pouco se alterava. O frio continuou a envolver a todos em seus ríspidos braços gelados à medida em que as celebrações do Yule prosseguiram em Mag Mell.
Durante o dia, os druidas completamente perdidos nos preparativos dos eventos, ignoravam a minha presença. Até mesmo meu pai havia se afastado. Os homens de Cáel, por sua vez, mal conseguiam permanecer em pé quando retornavam as suas tendas, fazendo um alarde descomunal, completamente embriagados; homens que eram consumidos pela ressaca enquanto que o dia se estendia.
Cáel, como sempre, desaparecia pela manhã e só retornava no cair da noite. Os homens diziam que o guarda mantinha uma tenda para si, em um local isolado naquela densa floresta que cercava a torre. Diziam que o seu líder não conseguia dormir próximos deles, pois não eram capazes de permanecer calados. Eu não o culpava, ao contrário, entendia perfeitamente a sua decisão. Seus guerreiros não passavam de um bando de arruaceiros que estavam sempre entrando em conflito entre eles. Brigas e xingamentos era algo natural ali. Eu não me importava com determinada falta de decoro, tinha vivido entre os vikings, comportamentos rudes não me abalavam.
Apesar de todos os medos que eu carregava dentro de mim, as noites fria de Yule foram amenizadas com as histórias de Cáel. Eu sabia que ele notará meus temores em relação a tal data, tinha certeza de que percebera o quanto eu detestava aquelas noites geladas. Então, durante todo o Yule, eu me sentei no chão frio e escorei meu corpo naquela porta que tornara tão familiar. Tive a certeza de que a sua companhia me impediu de ruir.
Tínhamos estabelecido uma rotina incomum, conversamos todas as noites e não trocamos nenhum olhar. Nossa voz era o único elo que nos ligava. Sabíamos que havia uma linha perigosa que não devia ser transposta.
Eu me acostumara com som da sua voz, no entanto, no último dia da celebração, ao contrário do hábito que fora estabelecido entre nós, Cáel pediu para que eu narrasse um conto. Fiquei sem jeito mediante o pedido inesperado, eu não tinha a habilidade de contar histórias. Todavia, ele insistiu. Disse que se eu era uma irlandesa de verdade, se eu realmente fora criada por um druida, eu saberia ao menos desenvolver uma narrativa.
Eu nunca gostei de ser desafiada, por essa razão, decidi atender ao seu pedido.
Pensei em lhe contar uma história de herói, como a de Cúchulainn, o belo filho de Lugh — o deus do sol —, que poderia ter todas as mulheres da Irlanda, porém desejou Emer, filha Forgall Monach, homem que lhe detestava e por essa razão, desafiou o jovem guerreiro provar o seu valor impondo que ele fosse treinar com amazona Scáthach de Alba: a mulher que fora famosa por matar seus estudantes de exaustão durante o sexo. Era uma boa história, que falava de determinação e amor. Entretanto, eu sabia que Cáel era de Ulster, a mesma terra de Cúchulainn, portanto devia conhecer aquele conto muito melhor do que eu.
Contudo, Cáel não tinha vivido junto aos escandinavos. Ele não conhecia as lendas de tal povo. Já eu, vivi cercada por elas. Então, decidi lhe contar a história Sigurd — um herói germânico e a misteriosa Espada da Ira. Era um conto adequado para um guerreiro como Cáel, pois discorria sobre uma espada misteriosa, cravada no solo por próprio Odin o qual determinou que apenas o mais forte e mais honrado guerreiro poderia empunhá-la. Tratava-se de uma história de guerras e cobiça, de glória e traição. Na narrativa que eu ouvira certa vez, envolvia até mesmo a morte de um dragão que fora ceifado pela lâmina da poderosa espada. Porém, eu ocultei tal parte, pois falar de dragão me lembrava a morte de Acme, algo que ainda me causava muita dor. Assim eu apenas lhe disse que Sigurd vencerá muitas batalhas empunhando a Espada da Ira, até que ela fora quebrada em um embate com o próprio Odin. Conclui narrando que da espada restou apenas dois fragmentos de lâminas que foram guardados pela esposa do bravo guerreiro, para que seus filhos soubessem que toda as lendas sobre seu pai eram de fato verdadeiras.
Após o término do conto, Cáel assegurou que os escandinavos não conseguiram extrair a parte irlandesa que havia em mim, pois eu ainda tinha a habilidade de contar história.
Aquela foi a última vez que havíamos falado de mitos. Infelizmente, o rumo de nossa vida tornou nossa reação estranhamente perigosa. Descobrimos, então, que tínhamos mais em comum do que imaginávamos.
※
Assim que se encerram as comemorações do Yule, o clima voltou a ser agradável em Mag Mell. O vento frio se fora e no lugar dele a sua cálida brisa morna nos agraciou com a sua presença.
Foi exatamente no primeiro dia após o Yule, que o destino colocou em meu caminho uma surpresa inesperada. Eu tinha um propósito naquela ilha. Soube disso assim que Geróid invadiu a torre, no meio do dia, e trouxe-me as notícias que mudaram o rumo de minha estadia em Mag Mell:
— Erieanna, vim lhe informar que há visitas à sua procura. — disse, o homem, com sua habitual postura rígida, enquanto mantinha a mão no cabo de sua espada.
Girei os calcanhares de modo a lhe conceder a devida atenção.
— De quem se trata? — perguntei, desconfiada. Sabia que não poderia ser nenhum deus. Deuses eram arrogantes demais, não se importavam em avisar sobre suas visitas, apenas invadiam qualquer espaço, como se o mundo todo lhes pertencesse.
— Tratam-se de um trio de garotas. — disse ele — Uma delas é a filha da comerciante de vestidos. Essa garota em questão, pediu para vê-la. Parece que ela fora instruída a lhe procurar.
Não imaginei que ela viria. Não depois de ter passado todos aqueles dias. Apesar disso, a garota veio à minha procura e eu não a abandonaria.
— Onde elas estão? — perguntei, ajeitando o meu vestido e segui em direção a porta.
— Lá embaixo. — respondeu, Geróid, contrariado.
Desci as escadas com o guarda ao meu encalço. Ao sair da torra, avistei o trio de garotas, completamente assustadas, sendo observadas por cinco pares de olhos, nada amistosos, dos guerreiros que as encaravam como se fossem ameaças.
— Olá, meninas. — eu disse, em tom brando, tentando tranquilizá-las — Sou Erieanna. Acredito que estejam a minha procura.
As garotas se entreolharam, ao certo ainda estavam inseguras de prosseguir com a decisão que as trouxeram até aquela torre no meio da floresta, tão longe da cidadela.
A jovem loira, de pele tão alva como a neve, filha da comerciante de vestidos, aprumou sua postura e deu um passo à frente completamente decidida.
— Naquele dia em foi na loja de minha mãe, você disse que me ensinaria a ser uma guerreira, caso eu assim desejasse. Estou aqui porque não desejo me casar. Quero aprender a lutar, pois deixarei Mag Mell antes que minha mãe me venda a qualquer deus sem escrúpulo algum. — Seus claros olhos verdes brilhavam ferozmente. Ela era tão pequena e delicada. Jamais tinha empunhado qualquer espada, e ainda assim estava ali, determinada a alterar o rumo de sua história.
— Dei a minha palavra e a cumprirei. Conheço os seus motivos, no entanto, vejo que trouxe companhias. Quem são suas amigas e o que elas desejam de mim?
A jovem de pele escura, cujos os cabelos rebeldes escapavam de sua grossa trança, lançou seus olhos cor de carvão em minha direção, e expressou com altivez:
— Desejamos o mesmo que Eilyn. Desejamos governar o nosso destino. Não queremos pertencer a ninguém, nem mesmo um deus. Queremos aprender a lutar.
— Isso mesmo! — Concordou a magricela de fartos cabelos castanhos, com seus grandes olhos cor de mel, brilhando em obstinação.
Os guerreiros que observavam o desenrolaram daquele diálogo. Soltaram baixos risos de escárnio ao descobrirem o propósito das meninas ao me procurarem.
Lancei-os um furioso olhar de atravessado. Eles estavam errados ao zombar de mim, daquela forma tão descarada, como se eu não fosse capaz de ensinar as meninas a lutar. Apenas Geróid e Flym, mantiveram-se em silêncio.
— Acredito que estão aqui em segredo. — Olhei fixamente para cada uma delas — Pois bem, eu as ensinarei a empunhar uma espada para atacar ou se defender. Entretanto, não serei responsável por vocês. Estão aqui por conta própria. Se querem ser livres, devem aprender a aceitar as consequências que vem junto da liberdade, devem aprender a arcar com o preço de suas escolhas. Não me importo quais desculpas ou histórias contaram aos seus familiares, isso é um problema que cabe apenas a vocês resolverem. Receberão treinamento enquanto conseguirem ser discretas. Já tenho problema demais para lidar, não preciso acrescentar os seus as minhas costas. Esses são meus termos, caso estejam de acordo.
As três meninas trocaram olhares cheio de cumplicidade entre elas. Por fim, Eilyn a quem eu fizera a proposta inicial, falou por todas:
— Estamos de acordo. Manteremos a discrição de nossos encontros. — Seu tom de voz transmitia a bravura que existia em seu coração valente. Ela seria uma ótima guerreira, disso eu tinha certeza.
— Ótimo! — exclamei, satisfeita. — Preciso, portanto, saber o nome daquelas que terei sob a minha tutoria. — Incitei-as a revelar seus nomes.
— Sou Eilyn. — disse a loira — Máirenn— expressou a jovem de peculiar tonalidade escura — Nuala — disse, insegura, a garota franzina de grandes olhos cor de mel.
— Muito bem, meninas. Estejam aqui pela manhã, trajadas adequadamente para treinar como homens. — Os guerreiros a nossa volta gargalharam ao me ouvir. Ignorei-os, mais uma vez. — Esqueçam tudo o que lhe disseram até agora, pois vocês aprenderão que as mulheres são perfeitamente capazes de empunhar uma espada, e quando se derem conta disso, perceberão que a única diferença que há entre um homem e uma mulher diz respeito daquilo temos no meio das pernas. Mas isso sequer importa, ao contrário, apenas reforça que somos mais fortes, pois não temos bolas para serem chutadas.
O riso cessou de forma abrupta assim que eu proferir tais palavras. Os homens sabiam que havia muita verdade em minha fala.
As meninas, no entanto, não faziam ideia do que eu disse. Elas não eram acostumadas com vocabulários chulos, foram criadas como verdadeiras ladies. Mas, infelizmente a dura realidade bateu as suas portas, elas teriam que se acostumar com um modo de vida estranho, assim como eu um dia me acostumei.
O trio de garotas lançaram-me um curto sorriso de despedida e então partiram floresta a dentro, de volta a cidadela que ameaçava lhe arrancar a liberdade. E enquanto eu as observava a se embrenhar pelas densas árvores que nos protegiam, percebi o quão jovens e inocentes elas eram. Mal tinham o corpo formado, mal conheciam o mundo e, ainda assim, já tinham idade para casar. Mag Mell não era a ilha da felicidade como as lendas diziam, muito pelo contrário, era apenas ilha reclusa, controlada por um deus injusto que pouco se importava com as jovens que ali viviam. Talvez aquele fosse um lugar bom para homens, o que era uma tremenda injustiça, pois homens sempre tinham seu lugar em qualquer mundo.
Em um mundo comandado por homens e seus egos, ensinar uma mulher a ser forte, era o melhor que eu poderia fazer por todas aquelas que não tiveram a oportunidade de lutar.
Enchi o meu coração de esperança, pois eu sabia que nenhum domínio dura para sempre. No íntimo do meu ser eu sentia que em algum momento da nossa história, as mulheres se tornarão tão livres quanto os homens. Em algum momento deixaríamos toda injustiça para trás.
(CAPÍTULO SEM REVISÃO)
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Bjus, Tia Lua
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