
⠀ ⠀ ⠀ ⠀ ⠀ ⠀⩩⦙ 𝒊. 𝑶 𝒅𝒊𝒂 𝒅𝒐 𝒂𝒄𝒊𝒅𝒆𝒏𝒕𝒆
❝Vire-se e encare o estranho
Mudanças
Daqui a pouco você envelhece
Tempo pode me mudar
Mas eu não posso enganar o tempo
Tempo pode me mudar
Mas eu não posso enganar o tempo❞
─── Changes
Quando o dia começa geralmente não fazemos ideia de como ele irá terminar. Se vai se tornar o melhor dia de toda sua vida, ou se será apenas mais um dia comum, como tantos outros que já passaram. Porém não acordamos pensando que ele será o último, costumamos deixar muitas coisas para o "amanhã" na esperança de poder vive-lo, deixamos pequenas tarefas do cotidiano, trabalho da escola, livros para ler. Mas ás vezes, o amanhã não passa de promessas vazias.
É irônico começar a história da minha vida pelo dia da minha morte. Um dia que começou como qualquer outro.
Era o dia mais quente do verão nos últimos dez anos, pelo menos era isso que todos os apresentadores do tempo anunciavam nos telejornais. O clima perfeito para aproveitar qualquer atividade que envolvesse água. Mesmo com todas as coisas que precisava arrumar para a faculdade, resolvi tirar o dia para aproveitar os pequenos prazeres do verão com minha família e amigos.
Estava prestes a dar início a mudança do que levaria para a faculdade quando os gêmeos Arno e Alvin entraram correndo no meu quarto, papai havia saído com minha mãe para fazerem as compras do mês e me deixaram de babá. Os meninos estavam desesperados com o calor e entediados, não pude resistir àquelas carinhas de bebês e, como boa irmã mais velha, resolvi sair para brincar de guerra da água com eles. Passamos grande parte da tarde correndo pelo quintal, tentando acertar um ao outro com jatos de água e bexigas. Quando meus pais voltaram do supermercado, eles resolveram participar da brincadeira depois que desceram a compra.
Às seis horas da tarde recebi o telefonema da Pietra, uma das minhas melhores amigas. Crescemos juntas, estudando nas mesmas escolas desde o jardim de infância. Os pais dela haviam saído para visitar uma tia distante e voltariam apenas no dia seguinte, como de costume, ela me convidou para a noite das meninas na beira da piscina. Infelizmente meus pais não permitiram que passasse a noite na casa dela.
— Você não vai dormir lá, não é? — perguntou minha mãe de forma retórica quando eu estava prestes a sair, havia apenas uma resposta correta.
— Não, mãe. — revirei os olhos de maneira discreta e peguei a chave do carro. — Volto antes das dez.
— Deixe o celular ligado! — Ela ordenou enquanto me abraçava apertado.
Deveria ter percebido que havia algo estranho no ar, dizem que as mães sentem quando algo incrivelmente errado está prestes a acontecer com seus filhos, ela nunca havia me abraçado daquela forma antes. Seu ritual era apenas fazer recomendações e depositar um beijo em minha testa, nada mais afetivo do que um beijo carinhoso na testa.
Ao soltar dela caminhei até a sala e beijei cada um dos homens da minha vida, meu pai manteve os olhos fixos na televisão, onde o jogo de basquete do seu time favorito estava passando. Meus irmãos desenhavam sobre o tapete da sala, quando aproximei eles deram sorrisos idênticos e disseram que aqueles lindos desenhos coloridos eram para mim, para que me lembrasse deles quando fosse à faculdade. Simplesmente sorri de volta para eles e deixei minha casa. Aquela foi à última vez que os vi em vida.
Dirigi com cautela pelas ruas da cidade até chegar à casa da Pietra, onde ela e Louise já me esperavam. Conhecemos Louise quando estávamos no colegial, ela era uma líder de torcida e aproximou de nós quando Pietra entrou na equipe, desde então somos um grupo inseparável.
— Chegou a nossa anã. — Brincou Pietra rindo enquanto me puxava para próximo da piscina.
— O pequeno smurf está aqui. — Louise sorriu largo mostrando todos os dentes brancos e perfeitos.
Retribui o sorriso, enquanto mentalmente comparava o corpo de ambas com o meu. Por serem líderes de torcidas, elas possuíam curvas bem definidas, músculos da perna torneados e charme exuberante. Pietra possuía pele negra, cabelos escuros ondulados e olhos verdes como esmeraldas, enquanto Louise possuía a pele branca como a neve, os cabelos loiros até a cintura, os olhos azuis e lábios rosados. Qualquer pessoa da terra-média que as visse iria comparar suas belezas com as de uma elfa.
— A alegria da festa chegou — Ergui um dos braços e coloquei o outro na cintura, fazendo uma pose forçada.
— Pensei que tia Susana não a deixaria vir — Pietra mexeu em meus cabelos castanhos, arrumando eles num rabo de cavalo.
— Ainda mais quando ela falou que você não tinha arrumado as coisas para a faculdade — Louise sorriu e nadou em minha direção.
— Ela deixou porque prometeram que iriam me ajudar, então estejam amanhã em casa, sem falta e nem desculpas — Disse rindo enquanto retirava a roupa, ficando apenas com o biquíni.
— Sim, senhora — As garotas bateram continência e riram divertidas.
Nós divertimos sem nos importar com o horário, na verdade aquilo era a única coisa que não estávamos interessadas em saber. Começamos a conversar sobre nossa época do colégio e recordar os momentos. É engraçado como há algumas coisas que não dá pra evitar comentar como, por exemplo, o primeiro campeonato de líderes de torcida que as garotas participaram e meus solos nas competições do grupo do coral. Há também coisas que não gostamos de falar e que deveriam nunca ser citadas, como a lista de ex-namorados e micos que cometemos quando estamos bêbadas. No final das contas, todos os momentos bons e ruins acabam se tornando simples lembranças, fazendo parte de quem somos.
Minha barriga doía de tanto gargalhar e a água começou a ficar muito gelada para o meu gosto. Resolvi deixar a piscina, sentei sobre sua borda, mantendo ambos os pés dentro da água sem parar de movê-los. As meninas param de conversar e olham em minha direção, Pietra é a primeira a se aproximar.
— Não era a nossa Elsa? Pensei que não sentisse frio. — Ela bateu as mãos sobre a superfície da piscina, atirando água em minha direção.
— Sou a Elpha, não a Elsa. — Soltei uma gargalhada enquanto cobria o corpo com as mãos.
— Acho que ela está preocupada, afinal, ela vai para a Europa. — Louise bateu palmas com animação e aproximou. Dentre nos três, ela era a mais empolgada com o fato de que frequentaria Cambridge.
— Teremos as redes sociais. — Pietra deu com os ombros, havia entrado com honras na Harvard. — E imagine que você vai encontrar um Londrino bonitão, vai tirar o seu ar e te jogar na parede como se fosse uma lagartixa.
— Um Benedict Cumberbatch da vida, da até um calor nas partes — Brincou Louise abanando o rosto com uma das mãos. Nós três rimos.
Antes que pudéssemos continuar com a nossa conversa sobre caras britânicos bonitos, meu telefone tocou pela décima oitava vez naquela noite. "Merda." Pensei assim que visualizei as mensagens perdidas do telefone de casa, a diversão com as meninas fora tanta que esqueci completamente do que havia prometido para a minha mãe, e infelizmente já havia passado do horário combinado para estar em casa.
— Tenho que ir. — Gritei para as garotas enquanto colocava a roupa por cima do biquíni molhado. — Minha mãe deve estar louca.
— Durma aqui, amanhã você retorna pra casa. — Disse Pietra ao sair da piscina, ela correu em minha direção e quase caiu na metade do caminho.
— Não posso, sabe como a dona Suzana é. — Beijei a bochecha da Pietra e lhe dei um abraço. — E vocês combinaram com ela de irem me ajudar, então não se esqueçam de aparecer em casa logo pela manhã.
Acenei pela última vez para as meninas e corri apresada até o carro. Joguei minha bolsa no banco do passageiro e antes de entrar torci os cabelos para retirar o excesso da água.
— Merda, merda dupla. — Resmunguei quando o telefone tocou outra vez, mas naquele momento não poderia atender, não enquanto estivesse com o carro em movimento.
Enquanto dirigia pela cidade tentando tomar o caminho mais rápido, pensava nas desculpas que poderia dar para a minha mãe quando chegasse em casa, desculpas que amenizariam a bronca e talvez um futuro castigo por não seguir o horário combinado. Repito algumas frases que usaria como se estivesse ensaiando para um discurso.
Como você sabe (ou não), gosto de estar preparada para as coisas que estão prestes a acontecer. Mas às vezes, as coisas simplesmente saem do controle. Você não pode muda-las, não pode colocar-se no poder da situação. Não importa se está algumas horas atrasada, se os cabelos estão encharcados e as roupas molhadas. Mas infelizmente não pode se preparar para um impacto repentino, não pode se fortalecer, eles simplesmente acontecem.
Ao virar a esquina poucas quadras da casa da Pietra, dois carros entraram em alta velocidade na rua, não tive tempo de desviar e não consigo recordar dos detalhes do momento da batida. Apenas da luz branca do farol em minha direção e de pequenas dores no abdômen, perna e peito, como se várias agulhas perfurassem todas as partes citadas ao mesmo tempo.
Se a vida fosse um ensaio, se tivéssemos tempo para refazer, se soubéssemos quando será o nosso último suspiro. Poderíamos experimentar mudar muitas coisas, melhorar as despedidas, amar mais, dizer menos não. Poderíamos até mesmo acertar. Infelizmente, cada dia da nossa vida é o dia final, você não consegue se preparar para ele. Assim como os impactos repentinos, eles apenas acontecem. E, de repente, a vida como conhecia acaba para sempre.
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