𝟸 - 𝙲𝚊𝚜𝚙𝚒𝚊𝚗 | 𝙵𝚛𝚎𝚎 𝚝𝚘 𝙻𝚒𝚟𝚎
Os flocos de neve caíam graciosamente do lado de fora da grande casa no campo, tão belos, tão delicados, nem pareciam ter feito o caos que fizeram nos últimos dias. As estradas e ferrovias estavam tomadas pela nevasca repentina que assolou uma parte da Inglaterra, impossibilitando qualquer meio de viagem.
Eu poderia dizer que a nevasca me salvou, ainda que por pouco tempo, de um destino que eu não queria, mas, mais uma vez, eu me encontrava presa em um lugar ao qual não pertencia. A propriedade rural do Professor Digory Kirke era enorme e trazia um ar de acolhimento, seria um lugar incrível para se morar se não fosse pela minha tia, a senhora Marta MacReady, apelidada carinhosamente por mim como Senhora Mandona.
Desde que eu pusera os pés pela primeira vez na casa, ela me listou várias coisas que eu deveria e não deveria fazer. Eu não podia correr, cantar, falar alto, tocar nos artefatos históricos, fazer atividades esportivas do lado de fora ou de dentro da casa, entrar nas salas cujas portas estivessem fechadas e, em hipótese alguma, incomodar o Professor Kirke.
Ela chegou a resmungar sobre quatro crianças terríveis que conheceu há dois anos e que nunca mais queria vê-los, mas não me importei com suas reclamações, o ponto era: eu apenas podia ficar no quarto cedido para mim e ler alguns livros que a Senhora Mandona deixou sobre minha mesa de cabeceira para me distrair.
Infelizmente, não podia reclamar dela e do seu jeito mandão e quase insensível. Eu recebi mais afeição dela, ainda que – praticamente – nula, do que tive em toda a minha vida desde que meus pais se foram e fiquei sob a tutela de meu tio Robert. Sei que mal podia chamar o que ela fez por mim de afeição, mas eu não tinha muitos modelos para comparar.
— O que você ainda está fazendo acordada? — exclamou a Senhora Mandona.
Desviei os olhos da janela para olhar para a porta, onde minha tia se encontrava com sua roupa de dormir. Ela exibia um olhar julgador e revoltado.
— Estou olhando a neve — respondi, simples.
— Ora — resmungou minha tia. — Por quê?
Dei de ombros.
— Vejo beleza nela, gosto de ver os flocos de neve caindo.
Marta MacReady bufou, entrando no quarto.
— Ela só serve para atrapalhar e trazer dor nos ossos — minha tia ergueu o cobertor da cama, uma ordem silenciosa. — Se não fosse por ela, você já estaria há muito tempo no convento. Não vejo como ela pode ser boa coisa.
Como se eu pudesse me esquecer disso, pensei em meio a um suspiro.
— Venha dormir logo, não vou ficar te acordando para tomar o café da manhã. Você deve ser pontual.
Levantei-me da janela e caminhei com os pés descalços até a cama, na qual me deitei depressa para não ter que escutar mais nenhuma reclamação da Senhora Mandona. Minha tia me cobriu até o pescoço e apagou a vela na mesa de cabeceira com um sopro, deixando o quarto no escuro. Não demorou muito para ela andar para fora do quarto e fechar a porta sem dizer mais nenhuma palavra.
Juntei as mãos sob a cabeça e, com um nó na garganta e peito apertado, fechei os olhos com força, querendo sumir.
Não era justo, nada daquilo era justo. Não poder viver minha vida como eu queria não era justo. Não ter minha liberdade não era justo.
Com esses pensamentos bombardeando minha cabeça, nem percebi quando a inconsciência me reclamou e fui transportada para o mundo dos sonhos.
Meus pés permaneciam descalços sobre o piso de madeira, mas, estranhamente, eu não o sentia gelado sob eles. Eles se moviam sem o meu consentimento, me levando para um guarda-roupa de madeira magnífico numa sala vazia e escura. Minha mão se ergueu para abri-lo e, quando o fiz, um clarão saiu de dentro dele, fazendo com que eu não conseguisse ver nada por alguns segundos - nesse meio tempo, senti meu corpo sendo projetado para entrar dentro do guarda-roupa.
Quando consegui abrir meus olhos novamente, percebi que não estava mais na frente do guarda-roupa, agora estava no meio de uma floresta repleta de flores. No entanto, sua beleza não era o meu foco naquele momento, mas, sim, o homem que apontava uma espada para a minha garganta.
Embora a situação não fosse das melhores, não pude deixar de notar que aquele homem era o homem mais bonito que eu já tinha visto em toda minha vida. Seus cabelos castanhos escuros quase chegavam em seus ombros largos, os olhos pretos me fitavam com curiosidade e algo mais, não refletiam uma vontade de me machucar. Percebi que não estava em perigo quando vi a mão que segurava a espada vacilar.
Minha visão falhou, mas a última coisa que ouvi foi uma voz imponente, mas suave, dizer:
— Prendam-na. Quero interrogá-la pessoalmente.
Acordei em um pulo, a boca seca e o coração batendo rapidamente contra o peito. O cobertor estava jogado aos meus pés, o lençol, revirado. Pisquei uma, duas, três vezes. O sonho foi tão real, nunca tive um como esse, era como se eu estivesse naquele lugar. E era um lugar tão lindo. Se eu pudesse desejar algo, desejaria voltar a dormir e ir novamente para aquela floresta, dormir e não acordar mais para nunca deixá-la.
Passei as mãos pelo meu rosto, sentindo uma fina camada de suor apesar do frio que fazia do lado de fora. Louca. Eu estava ficando louca. Eu estava perdendo a cabeça pelas coisas que estava passando ao ponto de querer fugir para o mundo dos sonhos. Não precisava ser uma especialista para saber que aquilo não era nem um pouco saudável.
Com um suspiro, me levantei da cama, decidida a ir até a cozinha beber um pouco de água para me acalmar. Andei na ponta dos pés e no escuro até chegar à cozinha, mas levei um susto quando me deparei com uma figura masculina sentada à mesa sendo iluminada por uma vela. Cabelos brancos, roupas de dormir, óculos redondos no meio do nariz.
Professor Kirke!
Tentei dar meia volta para retornar ao meu quarto sem ser vista – a regra de não incomodar o Professor gritando em meus ouvidos –, mas a madeira sob meus pés rangeu no primeiro passo, fazendo o homem imediatamente direcionar seu olhar para mim. Gritei palavras feias para mim mesma mentalmente.
— Peço perdão, Professor — falei, envergonhada. — Vou voltar para o quarto, perdoe-me por incomodá-lo.
O Professor sorriu gentilmente.
— Não precisa se preocupar com isso, senhorita...?
— S/n — completei.
— Ah, sim, claro. A sobrinha da senhora MacReady. Pela sua expressão, ela já deve ter feito as milhares de suas recomendações — o Professor fez um gesto para que eu me juntasse a ele com um sorriso, como se lembrasse de algo. — Venha, querida, sua presença não me incomoda. Sirva-se do chá, se quiser. — apontou para a chaleira.
Ainda um pouco constrangida, segui adiante, mas escolhi pegar um copo d'água, como planejara. Sentei-me à mesa, de frente para o Professor Kirke. Pelo jeito que minha tia falou, pensei que o Professor seria um homem rabugento que não suportava pessoas, mas o homem à minha frente parecia ser a pessoa mais calma e gentil que eu já conheci.
— Sem sono? — perguntou ele, bebericando seu chá.
— Tive um sonho estranho — respondi depois de dar um gole em minha água.
— Pesadelos podem ser horríveis mesmo.
Suspirei.
— Quem me dera fosse um pesadelo — encarei o copo em minhas mãos. — Foi um sonho... estranhamente bom. Eu entrei em um guarda-roupa e fui parar em uma floresta linda. — escolhi omitir a parte do belo homem apontando uma espada para mim. — Foi como se eu tivesse encontrado um lar de onde nunca deveria ter saído.
Quando ergui os olhos para encarar o Professor Kirke, me surpreendi com seus olhos arregalados e sorriso maravilhado. O brilho dos olhos crescia conforme seu sorriso aumentava.
— Um guarda-roupa e uma floresta — ele murmurou para si mesmo, então indagou para mim: — Um lar?
Assenti.
— Então, se você tivesse a chance de ir para esse lugar, nunca mais voltaria?
Respondi sem hesitar:
— Não. Minhas únicas opções aqui são casar com algum homem que não conheço e nunca conseguirei amar ou ir para um convento. Se eu pudesse, fugiria para nunca mais voltar.
Professor Kirke inclinou a cabeça para o lado, solidário com minhas palavras, mas, então, abriu um pequeno sorriso, como se soubesse de algo que eu não sabia.
— Não se preocupe, menina, vou lidar com sua tia em sua ausência — disse, enigmático.
Franzi o cenho, curiosa, mas não perguntei nada. Paramos de conversar e aproveitamos em silêncio nossas bebidas antes de dormir.
Acordei cedo na manhã seguinte e, depois de arrumar a cama de forma impecável para a Senhora Mandona não pegar no meu pé, saí do quarto para ir para a sala de jantar tomar o café da manhã. A casa era enorme, ainda não tinha me acostumado a andar por ela, então não foi uma grande surpresa para mim quando acabei me perdendo.
Andei de corredor a corredor, os quais pareciam ser todos iguais, por um tempo, até me deparar com uma porta entreaberta, a qual eu podia jurar que deveria estar fechada. Tomada pela curiosidade, abri a porta. Meu estômago se revirou de um jeito estranho quando me deparei com a mesma sala vazia do meu sonho e um objeto grande ao fundo coberto por um lençol branco.
Não, não podia ser.
Respirei fundo, os olhos arregalados, dando os passos necessários para chegar até o enorme objeto. Com a mão trêmula e coração acelerado, peguei no lençol. Precisei de alguns segundos para criar coragem e puxá-lo, mas, quando o fiz, quase caí para trás.
Impossível!
O mesmo guarda-roupa magnífico do meu sonho estava bem à minha frente, mais lindo e majestoso do que eu me lembrava, talhado com perfeição. A conversa com o Professor Kirke me veio à cabeça imediatamente. Ele devia saber da existência do guarda-roupa, não? Então ele não me achava louca pelo meu sonho? Ele sabia que eu o encontraria? Aliás, ele quis que eu o encontrasse, por isso disse o que disse sobre minha tia?
Bom, isso não importava agora, eu já estava recoberta de loucura e esperança para não fazer o que eu estava prestes a fazer. Abri a porta do guarda-roupa e, sem pensar duas vezes, entrei, fechando-a em seguida. Havia muitos casacos de pele dentro dele, mas fui abrindo passagem por eles com as mãos. Meu coração dava pulos conforme eu ia dando mais passos e não chegava ao final do guarda-roupa.
Levei um susto assim que um galho acertou minha cabeça, no entanto, isso apenas me deixou mais animada para prosseguir. Uma lufada de ar balançou meu cabelo e a claridade atingiu meu rosto assim que saí do guarda-roupa, sendo recebida por uma bela floresta repleta de flores amarelas. A floresta do meu sonho!
Abri um enorme sorriso, lágrimas de felicidade despontando de meus olhos, com um único pensamento em mente: eu nunca mais vou voltar.
Peguei a caneca vazia e a coloquei sobre o balcão com um suspiro, depois peguei outra caneca, cheia, e entreguei para um homem com o rosto cheio de cicatrizes. Aquela taverna no meio da floresta era muito movimentada para a sua localização, o que, como desde que comecei a trabalhar ali, me fazia questionar o que ela era de verdade.
Desde que cheguei à Nárnia, aquele foi o único lugar que encontrei para trabalhar que me pagava consideravelmente – eu trabalhava servindo bebidas e sempre precisava vigiar o lado de fora caso surgisse um grupo que não costumava frequentar a taverna, o que me fazia duvidar seriamente das pessoas que me contrataram. Queria juntar o máximo de dinheiro possível para sair daqui e explorar o resto daquele mundo pelo qual, embora só tivesse conhecido há alguns meses, já estava completamente apaixonada. Só o fato de não ter meu tio naquele lugar me trazia um alívio enorme, indescritível, me dava oportunidade de ter sonhos que nunca pensei ter.
Derrubei minha bandeja no chão por causa do susto que levei quando escutei um barulho muito alto vindo da porta, a qual tinha acabado de ser arrombada, e um minotauro preto enorme apareceu, entrando na taverna com um machado na mão. Arregalei os olhos enquanto dava passos para trás conforme homens em armaduras entravam na taverna carregando espadas e bestas.
Os frequentadores da taverna não demoraram para pegar suas próprias armas para lutar, e eu não demorei em dar meia volta e correr em direção aporta dos fundos para fugir dali.
— S/n! — o dono da taverna gritou, vindo na minha direção com sua espada, raivoso por eu não ter vigiado a porta.
Diabos!
Desviei de seu golpe assim que ele chegou perto de mim e chutei seu traseiro, fazendo-o cair no chão, derrapando enquanto ralava o rosto. Eu podia não ser uma excelente lutadora, mas aprendi um ou dois truques naquele meio tempo em Nárnia.
Sem olhar para trás, continuei correndo até a porta dos fundos, a abri e disparei para o lado de fora. Corri o mais rápido que pude para cada vez mais dentro da floresta de cores outonais, no entanto, não consegui correr por muitos metros, pois uma voz forte gritou bem perto de mim.
— Parada!
Empaquei no lugar no mesmo segundo, o coração acelerado e respiração ofegante. Depois de fechar os olhos por alguns segundos, me martirizando, e respirar fundo, me virei para encontrar o dono da voz. Quase engasguei com a minha própria saliva quando o reconhecimento dominou cada poro do meu corpo.
O homem do meu sonho.
Assim como no sonho que tive há alguns meses, o homem de longos cabelos castanhos apontava a espada para a minha garganta, os olhos pretos fixos em mim. No entanto, diferente do meu sonho, no qual a pele do seu rosto era lisa e limpa, seu rosto continha uma barba por fazer que lhe dava uma aparência mais máscula e sedutora.
A mão segurando a espada vacilou, como eu esperava que acontecesse, e seus olhos, curiosos e estranhamente brilhando em reconhecimento, não demonstravam pretensão nenhuma de me machucar – cortesia do meu tio eu saber reconhecer esse tipo de coisa. O medo não dominava meu corpo, mas, sim, a curiosidade. Como eu também esperava que fosse acontecer, esperei pelas próximas palavras daquele estranho homem que não me deixava desconfortável com sua presença.
— Prendam-na — falou para os homens ao seu redor que eu mal tinha notado. — Quero interrogá-la pessoalmente.
Fui levada a cavalo para um castelo em uma viagem que durou algumas horas, ninguém falou comigo depois que o homem, o qual percebi se tratar de um rei porque era sempre chamado de majestade, mandou que eu fosse presa. Não fui colocada em uma cela mofada e escura que eu provavelmente dividiria com ratos como eu pensei, ao invés disso, me colocaram em uma sala mediana com muitas poltronas, estantes com livros e mesas com mapas.
Fiquei andando de um lado para o outro próxima da janela até escutar a porta sendo aberta. O rei, o homem do meu sonho, entrou na sala e fechou a porta, andando em minha direção com cautela. Sei que ele disse que gostaria de me interrogar pessoalmente, mas não fazia ideia de que um rei de fato perderia seu tempo comigo.
— Qual é o seu nome? — ele perguntou.
Ao ver minha hesitação, falou:
— Não vou machucá-la. Prometo.
Sabia que não, seus olhos eram muito expressivos. Perguntei-me se ele sabia disso.
— S/n, apenas S/n — respondi. — E qual é o seu nome? — ousei perguntar.
O homem ergueu as sobrancelhas, surpreso, mas respondeu:
— Caspian — deu um passo na minha direção, os olhos curiosos. — De onde você veio?
— Como sabe que não sou daqui? — rebati com outra pergunta, eu me esforcei muito para parecer uma narniana desde que cheguei.
— Saberia o meu nome se fosse — Caspian deu um sorriso e, eu sei que não devia, fiquei ainda mais confortável em sua presença. — De onde você veio, S/n?
Gostei da forma que meu nome saiu de seus lábios.
— Não sou deste mundo — respondi com sinceridade. — Cheguei há alguns meses quando atravessei um guarda-roupa. Tive um sonho com... este lugar.
Caspian arregalou os olhos.
— Como se tivesse sido convocada?
Não sabia responder a isso, pois a maneira que interpretei minha vinda para cá foi fugir do destino que me arrebataria em meu mundo como um presente do desconhecido, então escolhi ficar quieta.
— Uma filha de Eva — Caspian sussurrou para si mesmo, surpreso e maravilhado. — Por que agora? Por que sozinha? Você...
Caspian se calou, ponderando. Se ele não sabia as respostas para as suas perguntas, quem era eu para saber?
— Sou... sou sua prisioneira? — questionei.
Seus olhos encontraram os meus.
— De certa forma, eu sabia que você não era como os outros naquela taverna, por isso não permiti que fosse levada para as celas das masmorras como os outros que capturamos — ele se sentou em uma poltrona e indicou a outra a sua frente para que eu me sentasse, assim o fiz. — Não, você não é uma prisioneira, S/n, é uma... convidada.
— Então não vai me manter presa neste castelo?
Caspian balançou a cabeça em negativa.
— Você é livre para ir embora quando quiser, mas gostaria de pedir sua ajuda.
— Com o quê? — indaguei, cautelosa, a cabeça inclinada.
— Você sabe o que os donos daquela taverna faziam? — neguei. — Eram pessoas não satisfeitas com a paz que estou tentando trazer para Nárnia. Eles capturavam narnianos e os vendiam para outros continentes como escravos.
Com os olhos arregalados, levei a mão à boca, inconformada e um pouco culpada por não ter notado.
— E-eu não sabia... eu j-juro.
— Imaginei que não soubesse — ele me tranquilizou. —, por isso gostaria da sua ajuda. Prendemos bastante gente na taverna, mas muitos conseguiram escapar, inclusive os donos dela. Como você trabalhava lá, creio que possa reconhecer os responsáveis por essa barbaridade e me ajudar a capturá-los.
— Eu aceito — respondi. Isso com certeza me ajudaria a aliviar o peso na consciência por nunca ter percebido o que acontecia naquele lugar.
— Ótimo — Caspian sorriu, estendendo a mão para mim.
Ergui a mão e apertei a sua, retribuindo seu sorriso e sentindo meu coração palpitar de uma forma que nunca fez antes.
Meses se passaram desde que ajudei Caspian a capturar todos os responsáveis pelo comércio de escravos narnianos, no início ficava um pouco acanhada por ficar no mesmo ambiente que o rei – os detalhes daquele sonho ainda bem vívidos em minhas memórias –, mas ele era tão gentil e prestativo que isso não durou por muito tempo. Caspian se esforçou muito para me deixar confortável tanto em seu castelo quanto em sua presença.
Embora os sentimentos conflitantes decorrentes do meu sonho quisessem tomar o lugar da razão, não permiti que isso acontecesse, queria que nosso relacionamento fosse estritamente profissional, sem ultrapassar nenhum limite, sendo de amizade ou algo a mais. No entanto, um dia, no primeiro mês ajudando-o, Caspian me viu recuar quando ele ergueu a mão em um movimento brusco para pegar algo atrás de mim, e não teve como fugir de contar um pouco mais sobre mim.
Eu sabia que ele nunca seria capaz de me machucar, mas agi por puro reflexo, como estava acostumada a agir sempre que meu tio chegava perto de mim. Notei a ofensa e questionamento, mas também preocupação e dor, no olhar de Caspian, e não podia deixar que ele pensasse que eu o temia, então lhe contei tudo. Bom, quase tudo. Contei sobre a morte dos meus pais, sobre o meu tio e sua mania recorrente de me agredir, as duas escolhas que ele me deu de casar com um desconhecido ou ir para um convento, e a escolha do convento, pois sabia que ele seria incapaz de escolher um homem que não fosse igual a ele.
Caspian foi cauteloso em me abraçar depois do meu relato, colocando minha cabeça sobre seu peito e acariciando meu cabelo com ternura enquanto sussurrava palavras de conforto e em como ele não permitiria que isso acontecesse comigo novamente.
Depois desse dia, nos tornamos amigos. No tempo em que não estávamos procurando os comerciantes de escravos, Caspian me levava para a biblioteca do castelo e me ensinava tudo sobre o seu mundo, a geografia, as espécies existentes, cultura, história e as figuras importantes de Nárnia, como Aslan e os antigos reis e rainhas que vieram do meu mundo.
A cada dia que passava, mais encantada eu ficava por Nárnia, e maior a minha certeza de que eu nunca mais queria voltar para o meu mundo. Além disso, para minha euforia, eu me encontrava cada dia mais apaixonada por Caspian também, mas não tinha certeza se deveria falar com ele sobre isso.
Então, quando os comerciantes de escravos foram presos, não deixei o castelo, apesar de ter liberdade para isso.
Ergui-me do pano estendido sobre a grama, me sentando, quando escutei patas fortes de um cavalo colidindo contra o chão, aproximando-se de onde eu estava. Um enorme sorriso se abriu em meu rosto quando vi Caspian se aproximando sobre seu cavalo preto, e um se abriu em seu rosto quando seus olhos encontraram os meus.
Caspian desceu do cavalo, andou até mim e se sentou à minha frente, as pernas esticadas ao meu lado.
— Fazendo um piquenique sem me convidar? — ele pegou uma maça e deu uma mordida.
— Eu sabia que você apareceria — sorri. — Você sempre aparece.
— Não podia deixar você continuar o livro sem mim — apontou para o livro ao meu lado. Dei um riso leve.
Caspian e eu sempre escolhíamos um livro para lermos juntos, podíamos ler outros, mas o que escolhemos nunca poderia ser lido sem o outro, o que normalmente acontecia na biblioteca do castelo. Eu sempre o encontrava no campo e íamos juntos para lá, mas o dia estava tão lindo que decidi fazer tudo ao ar livre.
— Em menos de um ano você terá lido todos os livros da biblioteca — concluiu.
Sorri.
— Meu tio não gostava que eu lesse, dizia que não era coisa de uma mulher direita.
A mão de Caspian encontrou a minha e seus dedos se entrelaçaram aos meus.
— Você é livre para ler todos os livros que quiser, e posso arranjar mais, se assim desejar.
— Obrigada — respondi, apertando sua mão.
— S/n, você se sente confinada aqui?
Franzi o cenho diante da sua pergunta repentina.
— O quê?
— Você se sente presa aqui? Digo, no castelo. Sei que seu sonho era viajar por Nárnia antes de vir para cá.
Ponderei sua questão por um momento. Meu sonho desde o início era viajar por Nárnia, conhecer cada canto deste novo mundo, e nas primeiras semanas no castelo de Caspian pensei que aquele lugar se tornaria um novo tipo de prisão, mas... não foi isso que aconteceu. Eu não me senti presa nem por um segundo, mesmo não estando viajando como eu planejei. Ficar no mesmo lugar que Caspian, conversando e rindo com ele, lendo todos os livros que queríamos, era um novo conceito de liberdade para mim. Um que eu nunca pensei que pudesse existir e estava gostando muito.
Eu ainda poderia viajar como eu queria, não seria um problema, no entanto, não podia deixar de admitir para mim mesma que não queria fazer tais viagens sozinha, eu queria que o homem à minha frente estivesse ao meu lado.
— Não, Caspian — encarei seus olhos. —, não me sinto presa. Na verdade, nunca me senti tão livre. Livre para viver, fazendo minhas próprias escolhas, como eu sempre quis.
Caspian assentiu lentamente, olhou de um lado para o outro, inquieto, então voltou seu olhar para as nossas mãos, que ainda estavam unidas. Ele parecia perdido em perdido em pensamentos.
— O que foi? — indaguei.
Ele engoliu em seco, ainda sem olhar nos meus olhos. Apertei sua mão, estranhando seu comportamento. Caspian nunca agiu assim comigo.
— Preciso admitir algo a você, algo que venho querendo lhe contar há algum tempo — Caspian falou quase em um sussurro.
Apertei sua mão para mostrar que eu estava prestando atenção.
— Eu sonhei com você — seus olhos finalmente encontraram os meus. — Antes de nos vermos pela primeira vez. Tive um sonho com você. — Meus olhos se arregalaram. — Sei que parece estranho, eu apontava a espada para você, mas sabia que não deveria feri-la.
Meu coração se acelerava conforme minha respiração se tornava irregular, era como se todo o oxigênio tivesse decidido sumir daquele campo aberto.
— Caspian...
— Sei que deve parecer que perdi a razão, mas é verdade — Caspian me interrompeu, agitado. — Sonhei com você, e foi uma das coisas mais reais que já senti em toda a vida. Seus olhos... — fitou meus olhos. — Nunca mais fui capaz de esquecê-los. Eles invadiram todos os meus sonhos desde então, atormentando minha alma com o medo de que eu nunca os veria pessoalmente.
Caspian engoliu em seco, mantendo a coragem de me fitar, agora eu percebia, com adoração.
— Mas então eu a vi naquele dia na floresta, e todo o meu mundo mudou completamente. Era você. Você era real. A garota que habitava meus sonhos e trazia cor para eles. E seus olhos — suspirou. — Tão belos como nenhum sonho seria capaz de mostrar. Eu me apaixonei por você antes mesmo de conhecê-la pessoalmente, S/n, e não sou mais capaz de deixar esse sentimento de lado.
Sentindo borboletas no estômago, me aproximei dele, colando minha coxa na sua. Continuei segurando a mão de Caspian e usei a outra para tocar sua bochecha, acariciando os pelos macios da sua barba por fazer.
— Eu também sonhei com você, exatamente o mesmo sonho que o seu — os olhos de Caspian ficaram arregalados em surpresa. — Tudo que eu mais queria na minha vida era ter o poder de controlá-la, fazer minhas próprias escolhas. Ser livre. Eu encontrei minha liberdade em Nárnia, mas, especialmente, encontrei minha liberdade em você, Caspian. E nada poderia me fazer mais apaixonada por você do que isso.
Caspian avançou sobre mim e seus lábios encontraram os meus num beijo arrebatador, o qual retribuí prontamente. Suas mãos agarraram minha cintura, me puxando para mais perto, e as minhas, sua nuca, aprofundando o beijo. Os lábios de Caspian eram macios e doces, mas exigentes e firmes. O beijo não demonstrava apenas nossos sentimentos, mas a vontade que estávamos de fazer isso há um tempo. Eu sentia o ar deixando meu corpo aos poucos, mas não queria deixar seus lábios, não ainda.
Uma de suas mãos permaneceu na minha cintura, mas a outra deslizou pelo meu corpo até chegar ao meu rosto – o polegar acariciando a bochecha e os outros dedos no pescoço. Minha pele se arrepiou com o seu toque, o que me fez beijá-lo com mais avidez.
Para a minha infelicidade, nenhum de nós dois estava mais conseguindo respirar direito, então tivemos que interromper o beijo, não sem antes dar alguns selinhos. Quando seus olhos se focaram nos meus, nossas respirações ofegantes e rostos ainda perto um do outro, vi todos os sentimentos do rei de Nárnia para mim. Todo seu amor, carinho, ternura e devoção.
Aqueles eram os olhos mais expressivos que já vi, e perdi todo o fôlego recuperado com os sentimentos transmitidos por eles.
— Você tem meu coração, S/n — sussurrou Caspian.
— E você tem o meu — sussurrei de volta.
Caspian me puxou para o seu peito, me deixando de costas para ele, e apoiei a cabeça em seu ombro. Seus braços fortes circularam meu corpo, me envolvendo em um abraço gentil, enquanto a ponta dos dedos fazia carinho na minha pele.
Ficamos assim até o pôr do sol, nos braços um do outro, ambos sorrindo, e eu com uma enorme sensação de finalmente estar em casa.
◊❱───────── ♕ ─────────❰◊
Pedido feito por: ILittle_Boo
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro