๐๐๐'๐ ๐ ๐๐๐๐๐๐
*โข.โงโฝ*:โ๏ธโงโ.โข*
๐๐๐๐๐๐๐ ๐๐๐
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โ๏ธๅฝก๐๐ข๐๐ฌ ๐๐ญ๐ฎ๐๐ข๐ฌ - ๐๐๐ฅ๐๐ฌ๐ญ๐ ๐๐๐ซ๐ ๐ซ๐๐๐ฏ๐๐ฌ.
O VENTO IMPETUOSO ROMPIA o silรชncio da rua onde eu morava. O sol se foi, dando lugar ร chuva, que molhava as plantas do lado de fora. A lua, encoberta por nuvens acinzentadas, nรฃo conseguia iluminar as estradas.
Meu dia estava sendo estranho. Desde que acordei, sentia um peso incomum no ar, como se o mundo quisesse me avisar que algo ruim estava para acontecer.
Minha missรฃo havia sido um sucesso, e fui atรฉ parabenizada por meus colegas e superiores. A sensaรงรฃo de elogio รฉ sempre boa. O reconhecimento pelo esforรงo, a sensaรงรฃo de dever cumprido. Mas, apesar disso, a angรบstia sempre voltava, como uma goteira insistente, pingando repetidamente no objeto que a impede de molhar a casa. A funรงรฃo do objeto รฉ proteger, mas o som, repetido ร exaustรฃo, irrita atรฉ o limite, e os dois se tornam a mesma coisa irritante.
Eu estaria me vitimizando ao pensar que nรฃo foi culpa minha estar aqui? Sim, completamente. Eu gostava do que fazia? Nem um pouco.
Quando cheguei em casa, percebi que jรก era muito tarde. Eu estava coberta de sangue, resultado da morte de pessoas longe de serem inocentes. Talvez eu estivesse fazendo um favor ร sociedade, ou apenas tentando justificar a sujeira do meu trabalho. Mas eu sabia que nรฃo era lindo. Nunca seria. Nรฃo quando todos tรชm a chance de mudar.
Sempre fui uma pessoa que acreditava nos outros. Alguรฉm que encorajava a mudanรงa. รs vezes, nem eu entendo como aceitei trabalhar nisso. Por que diabos eu me importava tanto com o que os outros pensavam?
Me tirando do transe dos meus pensamentos, vi algumas gotas pingando no chรฃo limpo da minha casa modesta.
โ Droga... โ murmurei, correndo para o banheiro.
Tirei rapidamente as roupas e entrei no box, ligando o chuveiro numa temperatura relaxante para meu corpo cansado e dolorido. Eu odiava nรฃo usar meus poderes. Sentia falta de me sentir viva. Cada dia sem eles parecia tirar uma parte de mim. A sensaรงรฃo era sufocante. Eu havia me imposto um limite: parar de envelhecer aos dezesseis. Era como uma margem de seguranรงa, para evitar que eu ficasse como uma crianรงa.
Assim que a รกgua tocou minha cabeรงa, o sangue escorreu pelas minhas costas, tingindo a รกgua de vermelho. Meu corpo relaxou instantaneamente, e eu soltei um suspiro, apoiando as mรฃos na parede enquanto a รกgua lavava as impurezas. O barulho da รกgua caindo, misturado aos meus pensamentos caรณticos, tornou tudo... cansativo.
Entรฃo, de repente, meu corpo teve um espasmo violento. Fui jogada para trรกs, paralisada, enquanto a dor excruciante de uma dor de cabeรงa aguda tomava conta de mim.
A primeira coisa que vi foi uma xรญcara de chรก sendo entregue nas mรฃos de um idoso. Ele bebeu calmamente, enquanto retirava algo de seu rosto. Nรฃo consegui ver o que era. A visรฃo estava borrada, incompleta. O objeto foi entregue a outra pessoa de pele delicada. O idoso, entรฃo, deitou-se na cama, e comecei a vรช-lo espumar pela boca, se contorcendo nos cobertores. Nรฃo consegui identificar a vรญtima, tudo era um borrรฃo. Os gritos de desespero, lรกgrimas, um guarda-chuva e flashes de luz intensa invadiram a visรฃo, agredindo meus olhos, embora nada fosse real.
A visรฃo se dissipou, e eu me vi sentada no canto do box, as mรฃos na cabeรงa, tentando afastar a dor horrรญvel que tomava conta do meu corpo. A sensaรงรฃo pรณs-visรฃo era como se todos os meus poderes percorressem minhas veias de uma sรณ vez. A dor era insuportรกvel. Eu podia sentir cada รณrgรฃo, como se todo o meu corpo estivesse em chamas, cada toque, insuportavelmente sensรญvel.
Minutos depois de sair do banho, sentei-me na cama, escovando os fios do meu cabelo. Meu corpo ainda tremia, abalado pelo que acabara de acontecer.
Eu precisava ver como estavam Grace, Pogo eโฆ o papai. Talvez aquela visรฃo nรฃo passasse de algo concreto. Nem sempre eram assim. Mas o que custava? Seria tรฃo ruim assim voltar?
Sim, seria.
Eu lutava contra o desejo de esquecer o passado, de deixar o papai com sua vida medรญocre. Ele realmente nรฃo merecia minha atenรงรฃo. Masโฆ e os outros? Talvez merecessem. Eu me daria ao luxo de voltar para vรช-los? Jรก fazia quase quinze anos desde que abandonei qualquer ideia de retorno. Coloquei uma roupa simples, tranquei a porta e saรญ.
Peguei o primeiro tรกxi que vi e cumprimentei o motorista, que me respondeu com indiferenรงa antes de dar a partida.
O trรขnsito estava cheio, e o sol comeรงava a surgir, anunciando o fim da madrugada. O silรชncio no carro era reconfortante.
โ Senhorita, vocรช estรก bem? โ perguntou o motorista, me observando pelo retrovisor.
โ O quรช? โ Questionei, ainda meio confusa. Olhei para o reflexo na janela e entendi. โ Ahโฆ isso.
Havia um corte pequeno abaixo do meu olho, sangrando levemente. Essas feridas apareciam depois das visรตes. Tive sorte dessa vez. Pelo menos nรฃo era algo mais grave. As visรตes sabiam ser cruรฉis, mas ร s vezes eram gentis quando nรฃo surgiam com tanta frequรชncia.
โ Me desculpe. Deveria ter feito um curativo antes de sair de casa. Acho que esqueci. โ Tentei sorrir, minimizando a situaรงรฃo. โ Foi sรณ um acidente. Bati na quina de uma prateleira.
O motorista pareceu duvidar, mas nรฃo insistiu. Ele nรฃo tentou puxar mais conversa, e fiquei grata por isso. Eu me sentia ร vontade no silรชncio, apenas com meus pensamentosโฆ os pensamentos assustadores que nunca me deixavam.
Logo o tรกxi parou em frente a um lugar que eu prometi a mim mesma nunca mais voltar. A Umbrella Academy. O lugar onde vivi atรฉ os dezesseis. Atรฉ os quinze, foi uma experiรชncia tolerรกvel, quase uma famรญlia. Dos quinze em diante, sรณ um inferno.
Paguei o motorista, desci do carro e caminhei devagar atรฉ o portรฃo. As memรณrias comeรงaram a me sufocar, e me perguntei se estava fazendo a coisa certa. Coloquei a mรฃo na maรงaneta, hesitei e recuei.
Isso era um erro. Reginald nรฃo merecia nada de mim.
O conflito em minha mente era ensurdecedor. Eu deveria carregar essa angรบstia para sempre, ou simplesmente perdoar o passado? Nรฃo precisava ficar muito tempo. Talvez sรณ o suficiente para falar com Pogo โ a รบnica pessoa em quem eu ainda confiava โ e contar sobre a visรฃo daquela manhรฃ.
Respirei fundo, tentando reorganizar os pensamentos. Minhas mรฃos tremiam, meus pรฉs inquietos. Num impulso, girei a maรงaneta e entrei na casa. O cheiro familiar me envolveu assim que fechei a porta, trazendo ร tona uma avalanche de memรณrias. Fechei os olhos por um instante, me permitindo mergulhar nelas, mas logo fui arrancada do transe.
Ouvi alguรฉm pigarrear. Abri os olhos e vi Pogo ร minha frente, com um sorriso acolhedor e as mรฃos juntas. Sorri de volta. Era natural. Vรช-lo bem, exatamente como antes, trouxe uma sensaรงรฃo de alรญvio que eu nรฃo sabia que precisava.
Corri atรฉ ele, abraรงando-o com forรงa, matando a saudade que me consumia.
Pogo me retribuiu com um abraรงo apertado, depositando um beijo carinhoso em minha testa enquanto acariciava minhas costas. Sua risada, baixa e suave, parecia um misto de felicidade por me ver e surpresa pelo gesto repentino. E naquele momento, nรฃo me arrependi de ter vindo.
Assim que desfaรงo o abraรงo, a realidade me atinge como uma onda fria. Olho para Pogo e vejo um leve lampejo de confusรฃo e dor em seus olhos. O motivo de eu estar ali volta ร tona, e minha mente corre para encontrar as palavras certas. Mas minha boca permanece muda. Pogo, percebendo meu estado, fala primeiro:
โ Parece que o funeral de Reginald Hargreeves trouxe de volta pessoas que eu pensei que nunca mais veria โ disse ele, com um sorriso triste e um brilho de arrependimento nos olhos.
Minha cabeรงa rodava. Eu mal conseguia pensar em como explicar minha visรฃo.
โ Como assim "funeral de Reginald", Pogo? โ Minha voz saiu baixa, quase tremida.
Meu corpo travou.
โ Vocรช nรฃo sabia? Achei que tinha vindo justamente por isso, senhorita Celly โ respondeu ele, agora com um olhar de surpresa misturado ร preocupaรงรฃo.
Meu pai... morto? A visรฃoโฆ era sobre ele?
โ E-eu nรฃo vi as notรญcias โ respondi, sentindo o chรฃo escapar sob meus pรฉs.
โ Entรฃo soube pela visรฃo? โ Pogo perguntou, os olhos se estreitando. A preocupaรงรฃo era evidente, mas havia algo mais ali, uma sombra de medo.
โ Tive a visรฃo hoje de madrugada. Nรฃo foi clara. Sรณ senti que precisava vir โ murmurei, as mรฃos inquietas, brincando com minhas unhas. Evitei olhar nos olhos de Pogo. Nรฃo queria dar muitos detalhes. Algo na forma como ele reagia... o medo que transparecia... me incomodava.
โ Entendoโฆ โ ele balbuciou, pousando gentilmente a mรฃo em minhas costas, guiando-me pelo corredor. โ O que vocรช viu?
โ Ah, Pogo... nรฃo foi nada demais. Acho que vi os รบltimos minutos dele. Mas nem sei se era sobre ele. Minhas visรตes nem sempre fazem sentido. รs vezes, sรฃo sรณ... fragmentos โ minha voz acelerava, um reflexo do nervosismo. โ Vocรช sabe como elas eram antes de eu ir embora. Sempre confusas. โ Forรงei um sorriso, tentando quebrar o clima pesado.
โ O seu pai todo enfaixado, hm? โ Ele sorriu levemente, me lembrando de umas delas, como se achasse graรงa ou tentasse mascarar algo. โ Sim, um tanto malucas. Mas, de toda forma, acho que vocรช deveria saber... ele faleceu esta madrugada, de uma parada cardรญaca โ disse Pogo, com a calma de quem escolhe as palavras com cuidado, como se falasse para uma filha que deveria sentir falta do pai. โ Sinto muito, Celeste. Sei que, apesar de tudo, ele era importante para vocรช, mesmo que vocรช nรฃo queira admitir.
Ele estava certo, de certa forma. Se nรฃo fosse, por que teria aceitado aquele emprego terrรญvel? Era tรฃo รณbvia assim a minha busca por aprovaรงรฃo paterna?
Pogo retirou a mรฃo das minhas costas e saiu, desaparecendo em algum canto da imensa casa.
Respirei fundo. A notรญcia me atingia lentamente, e minha visรฃo comeรงou a turvar. Sequei as lรกgrimas que escorriam sem aviso, tentando recuperar o controle. Meu coraรงรฃo apertava. Agora ele se foi. Serรก que eu deveria ter feito algo diferente? Falar algo antes? Ter sido menos dura, menos rebelde?
Minhas reflexรตes foram interrompidas quando ouvi passos atrรกs de mim. Grace se aproximava, com seu habitual sorriso grande e caloroso, mas sem me reconhecer de imediato.
โ Olรก! Gostaria de um cafรฉ da manhรฃ? Vocรช deve estar faminta! โ disse ela, como se eu fosse uma visitante qualquer. Meu peito se apertou com aquela indiferenรงa dolorosa.
Mas entรฃo, algo mudou em sua expressรฃo. Grace finalmente me reconheceu. Pela primeira vez, vi uma emoรงรฃo real em seu rosto. Como se a saudade a atingisse naquele instante. Seus olhos piscaram vรกrias vezes, e seu sorriso se tornou ainda mais amplo, mais genuรญno.
โ Celeste! Onde vocรช esteve todo esse tempo? Nรฃo trouxe um guarda-chuva? O tempo estรก terrรญvel hoje! Seu casaco estรก todo molhado. Por que nรฃo sobe e troca de roupa? Vou preparar o cafรฉ da manhรฃ para vocรช daqui a pouco โ disse ela, voltando a seu jeito habitual, como se eu nunca tivesse ido embora. Como se os anos de ausรชncia fossem reduzidos a meras horas. E, surpreendentemente, aquilo me confortou. Talvez, afinal, ainda houvesse pessoas naquela casa que se importavam comigo.
Concordei com a cabeรงa e subi as escadas, uma apรณs a outra, atรฉ chegar ao terraรงo. Lรก, encontrei o velho banco de madeira onde eu costumava me sentar para ver o nascer do sol. A brisa suave tocava meu rosto, enquanto o sol, recรฉm-nascido, banhava o cรฉu com sua luz dourada. Fechei os olhos devagar, deixando que o calor me envolvesse, como se cada nova manhรฃ trouxesse uma promessa de esperanรงa.
๏ฝขยท ยท โข โข โข โ๏ธ โข โข โข ยท ยท๏ฝฃ
โ Celly! O que vocรช estรก fazendo aqui?! Se o papai souber que vocรช nรฃo estรก dormindo, nรฃo vai gostar nada disso โ disse Cinco, fechando a porta dos andares inferiores da casa antes de se sentar ao meu lado.
O ar estava gelado, mas agradeci a Deus por Cinco ter trazido um cobertor. Era como se ele tivesse previsto que precisarรญamos de algo para nos aquecer.
โ Reggie nรฃo vai descobrir, Cinco. E, mesmo que descobrisse, acho que ele nรฃo se importaria tanto. โ Dei de ombros, tentando parecer despreocupada. Por dentro, no entanto, sabia que a situaรงรฃo era mais sรฉria. Reggie sรณ se preocuparia se isso afetasse nosso rendimento nas missรตes, nรฃo se pegรกssemos uma pneumonia.
โ Vocรช estรก ficando rebelde demais para o meu gosto. โ Ele estreitou os olhos, um sorriso de canto nos lรกbios, me provocando.
โ O que foi? Nรฃo estรก gostando? โ Sorri de volta. โ Vocรช รฉ quem anda santo demais. โ Franzi o cenho, dando um leve tapa em seu braรงo, sentindo-me totalmente ร vontade naquele momento.
โ Eu? "Santo demais", รฉ?
โ ร. Estou esperando o dia em que vocรช vai jogar as drogas do Klaus fora e dar descarga nelas ou dedurar o Diego por aquelas revistas nojentas que ele lรช.
โ Isso sรณ prova que sou um santo vinte e quatro horas por dia, sua boba.
Dei de ombros.
โ Talvez prove mesmo. Ou talvez eu te corrompa, quem sabe?
โ Eu aposto a sobremesa de sexta que vocรช vai se tornar uma adulta santa, e eu... um adulto babaca. Vamos inverter os papรฉis, quer ver?
โ Primeiramente, a sobremesa de quarta รฉ mil vezes melhor.
โ Tudo bem, aposto a sobremesa de quarta.
โ Melhor assim. Aceito essa aposta, mas duvido que eu vรก virar uma santa.
โ Bom, sรณ temos treze anos, nรฉ? As missรตes nem comeรงaram direito. Talvez elas possam me corromper, que tal?
โ E deixar vocรช ganhar a aposta? Nem pensar!
โ Ah, vai, seja menos orgulhosa.
โ Eu amo a sobremesa de quarta!
โ Jura? ร?
Revirei os olhos. Ele adorava me irritar, era claro. Mas, mesmo com o deboche, algo no jeito dele me fazia sentir um calor estranho por dentro. Nรฃo podia negar que aquele irritante era meu melhor amigo. Talvez, lรก no fundo, eu adorasse as provocaรงรตes.
O sol comeรงou a nascer sem que tivรฉssemos percebido. A luz suave iluminou nossos rostos, antes mergulhados na melancolia da noite. Fechei os olhos, sentindo o calor aquecer minha pele, e me aconcheguei mais perto de Cinco, encostando a cabeรงa em seu ombro e segurando seu braรงo.
Sentindo meu toque, Cinco pousou a mรฃo no meu rosto e deu um selinho em minha bochecha. Ele apoiou a cabeรงa na minha, os olhos fechados, em um gesto que transmitia mais do que palavras poderiam dizer.
โ Gosto quando vocรช me irrita. โ Murmurei, sentindo o sorriso se formar nos lรกbios dele.
โ Por isso vocรช รฉ estranha. โ Ele respondeu, a voz carregada de ironia. Acomodou-se melhor no banco e apertou minha mรฃo, que ainda estava enroscada em seu braรงo.
รs vezes, quando eu tocava em Cinco, sentia algo se revirar no meu estรดmago. Uma sensaรงรฃo que eu nรฃo sabia explicar. Talvez fosse o fato de ele ser um garoto e eu, uma garota. Mas, se fosse sรณ isso, por que eu nรฃo sentia o mesmo com meus outros irmรฃos?
Ele apertou minha mรฃo de novo, e eu nรฃo pude evitar o leve sorriso que se formou em meu rosto.
De repente, acordei com um sobressalto, olhando ao redor. Nรฃo fazia ideia de quando tinha adormecido. O relรณgio indicava que eu havia dormido por pelo menos quatro horas.
โ Mas que droga... โ Resmunguei, esfregando os olhos.
O cansaรงo fazia sentido, jรก que eu nรฃo havia pregado os olhos na noite anterior e tinha chegado aqui logo ao amanhecer. Bufei, incrรฉdula. Eu estava exausta, mas sabia que era errado dormir depois de a mamรฃe ter me oferecido cafรฉ. Ao me ajeitar, notei que estava coberta por um cobertor azul e branco listrado. Um gesto de cuidado que sรณ Grace faria por mim. Espero que ela nรฃo tenha ficado triste por eu ter perdido o cafรฉ da manhรฃ.
Levantei-me, abri a porta e comecei a descer as escadas. Um andar, depois outro, e mais outro. Cada corredor guardava memรณrias diferentes: meu quarto, onde lia meus romances; o quarto dos meus irmรฃos โ especialmente o de Cinco โ onde eu sempre passava antes de dormir; a sala de treinamento... malditos treinamentos.
Ao chegar ao mezanino, ouvi vozes vindo da sala de estar. Uma reuniรฃo familiar, depois de quase quinze anos. "รtimo", pensei, com ironia.
Quando entrei, todos estavam imersos em suas discussรตes, tรญpicas da nossa famรญlia. Vanya foi a primeira a me notar, o tรฉdio estampado em seu rosto desaparecendo no mesmo instante. Seus olhos brilhavam com o alรญvio de finalmente algo interessante ter acontecido. Logo, os outros rostos familiares tambรฉm se viraram para mim, uma confusรฃo coletiva se formando.
โ Celly? โ disseram quase em unรญssono. Reencontros...
โ O que foi? Estรฃo vendo um fantasma ou sรณ assustados com minha cara de sono? โ Sorri e corri para abraรงar cada um deles.
Apesar de tudo o que aconteceu no passado, era bom sentir que irmรฃos realmente ficam felizes ao se reencontrar. Cada um me recebeu de uma forma diferente, parecendo mais maduros. Eu sentia um pouco de inveja. Como eles conseguiram seguir em frente assim? Ou serรก que eu estava julgando rรกpido demais?
As risadas de Klaus ecoavam pela sala, tornando o ambiente mais caloroso.
โ ร bom ver todos vocรชs de novo. โ Arrumei minhas roupas amassadas e coloquei uma mecha de cabelo atrรกs da orelha, meu olhar parando em Vanya, que parecia deslocada. Seus olhos baixos e o semblante cansado me deixavam preocupada. A tensรฃo entre ela e Diego estava clara; o livro que ela escreveu certamente nรฃo foi bem aceito por ele.
โ O que vocรชs fizeram esse tempo todo? Bem, a Allison nem precisa responder, jรก te vi na tevรช. A Vanya tambรฉm. Eu li o seu livro โ falei, sorrindo. Diferente dos outros, ela teve a coragem de se opor ร prรณpria vida. Fez algo a respeito, e isso me enchia de orgulho. Ela pareceu perceber, se mexendo inquieta e tรญmida no sofรก. Diego, รฉ claro, revirou os olhos. โ Mas... e o resto de vocรชs?
โ Ah, eu 'tava na reabilitaรงรฃo โ Klaus disse, com uma alegria quase debochada, erguendo os braรงos como se comemorasse, gritando um "Uhul" cheio de sarcasmo.
โ E ainda estรก sรณbrio? โ debochei.
โ Nossa, zero confianรงa vindo de vocรชs โ ele fingiu se magoar, se aproximando e passando o braรงo ao redor do meu pescoรงo, me puxando para perto com uma intimidade quase confortรกvel.
โ Luther? โ perguntei, meu olhar se voltando para o loiro. Ele estava irreconhecรญvel. O รบltimo a sair de casa, eu me lembrava de como era magro e alto, com a superforรงa escondida em um corpo que nรฃo aparentava. Agora, ele parecia gigante. Mais alto, mais forte, envolto naquele enorme sobretudo.
โ Eu estava na lua. Bem... interessante, mas quieto demais.
Meu sorriso foi involuntรกrio. Nunca fomos muito prรณximos, mas nรฃo deixava de ser surpreendente.
โ Me deixou por รบltimo โ Diego murmurou, com aquele jeito sarcรกstico. โ Me senti um lixo com tanto amor. E antes que pergunte, eu estava salvando o mundo.
โ Pelo que eu saiba, vocรช estava รฉ atrapalhando o trabalho da polรญcia โ Allison soltou um risinho presunรงoso, o tom de provocaรงรฃo claro.
โ Atrapalhando? 'Tรก brincando?! โ Ele se afetou na hora, cruzando os braรงos e franzindo o cenho.
โ Isso รฉ bem a sua cara, na verdade โ provoquei, a voz carregada de sarcasmo. Diego apenas sorriu, como se minhas palavras nรฃo tivessem efeito.
โ E vocรช? โ Luther perguntou, o olhar dele vasculhando por respostas sobre o tempo que fiquei longe.
โ Ahโฆ euโฆ
โ Ela estava vivendo, nรฉ, Luther โ Klaus interrompeu, tentando aliviar a tensรฃo que parecia querer se formar. โ Trabalhando, coisa que vocรช nรฃo fez a vida toda โ ele riu de sua prรณpria piada, enquanto Luther o olhava, incrรฉdulo, mas sem responder.
โ Bem, eu estive por perto โ dei de ombros, tentando manter a casualidade.
โ Por perto significa manter contato โ Allison rebateu, a voz firme.
โ Ah, qual รฉ... โ suspirei, jรก cansada daquilo. Eu sรณ queria ir embora. โ Sei que as coisas nรฃo terminaram bem, tรก? Estive realmente ocupada. Trabalhando quase todos os dias em um emprego que eu odeio. Saรญ de casa antes de vocรชs, sem apoio. E, de repente, precisei cuidar de mim sozinha. Sinto muito. De verdade.
โ Comovente โ Diego disse, indiferente, dando de ombros. โ Mas por mim, tรก perdoada โ ele parecia apressado para sair da sala, me dando uns tapinhas nas costas enquanto passava.
Meu coraรงรฃo batia rรกpido, confuso. Eu tinha vindo esperando encontrar papai, e acabei revendo atรฉ o irmรฃo que, aparentemente, passou um tempo na lua. Atรฉ mesmo me peguei desabafando...?
E ainda eram, o quรช, dez da manhรฃ? O dia jรก estava sendo um caos emocional.
โ Bom, estamos aqui... juntos. Isso que importa, nรฉ? Estou feliz que vocรชs tambรฉm estรฃo... bem โ pausei, meu olhar se voltando para o quadro na parede. O retrato da famรญlia, agora sem mim, sem Cinco, sem Ben. โ ร uma pena que eles tambรฉm nรฃo estejam aqui com a gente.
ร uma pena que ele nรฃo esteja aqui com a gente.
Meus irmรฃos seguiram meu olhar atรฉ o quadro, e ouvi suspiros frustrados ao redor.
โ Sรณ nรฃo fala muito do Ben, porque depois ele fica me enchendo o saco com aquele ego enorme dele โ Klaus disse, fazendo seus movimentos exagerados enquanto eu notava que ele estava usando uma saia. Franzi o cenho e olhei para Allison, imaginando se ela a teria emprestado para ele. A julgar pela falta de reaรงรฃo dela, nรฃo parecia ter percebido.
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โ Acho que jรก podemos comeรงar... โ Luther quebrou o silรชncio incรดmodo que pairava entre todos os irmรฃos. Estรกvamos reunidos na sala, envolvidos por um tรฉdio sufocante. Peguei uma xรญcara de chรก de camomila na cozinha e esperava esfriar para beber. Vanya, ao meu lado, parecia mergulhada em seus prรณprios pensamentos. โ Poderรญamos fazer uma cerimรดnia em homenagem. No pรกtio, ao pรดr do sol, e dizer algumas palavras no lugar favorito dele.
โ Ele tinha um lugar favorito?! โ Allison interrompeu, franzindo o cenho, incrรฉdula com a ideia de "humanidade" associada ao pai.
โ Sim, debaixo do carvalho. A gente sempre se sentava lรก. Vocรชs nunca fizeram isso? โ Luther perguntou com um toque de arrogรขncia, inflando o ego. Tentei conter o impulso de revirar os olhos.
โ Acha que sentar debaixo de uma รกrvore com o papai รฉ algo pra se orgulhar? โ retruquei, carregando sarcasmo na voz. Era preciso se odiar muito para valorizar esse tipo de lembranรงa.
Luther revirou os olhos.
โ Vindo de vocรช, que provavelmente nem tem uma memรณria com ele, realmente me importa muito โ respondeu com a voz afiada. Um raro tom de ironia vindo dele. Sorri, achando graรงa. Ele estava melhorando.
โ Vai ter comes e bebes? Chรก, bolinhos? Sanduรญche de pepino sempre faz sucesso โ Klaus interveio, segurando uma taรงa de bebida em uma mรฃo e um cigarro na outra. Ele parecia bem animado para alguรฉm que estava em um enterro.
โ O quรช?! Nรฃo! E apaga isso! Vocรช sabe que o papai odiava que fumassem aqui! โ Luther interveio, incrรฉdulo com a falta de noรงรฃo do irmรฃo.
โ Papai estรก morto agora โ dei de ombros. โ O que ele vai fazer? Puxar o pรฉ dele ร noite?
โ Considerando que nem consegue mais se comunicar com os mortos, nem isso โ Diego soltou, de forma afiada. Estava ao meu lado, e ergui a mรฃo para um "toca aqui". Rimos enquanto Klaus, impassรญvel, apenas sorriu e pรดs a mรฃo na cintura.
โ Essa saia รฉ minha?! โ Allison reclamou, franzindo o cenho ao reparar na roupa de Klaus.
โ Sรณ notou agora? โ perguntei, um tanto surpresa pela demora. Klaus parecia lisonjeado, admirando a saia.
โ Achei no seu quarto. ร um pouco ultrapassada, eu sei. Mas... dรก uma boa arejada... nas partes.
โ Escutem, ainda temos coisas importantes para discutir, tรก legal? โ Luther interveio, claramente tentando manter o controle da situaรงรฃo.
โ Como o quรช? โ Klaus perguntou, com indiferenรงa.
โ Tipo a causa da morte.
โ E lรก vamos nรณs โ Diego suspirou, coรงando a nuca, visivelmente desconfortรกvel com o assunto.
Naquele momento, me lembrei da visรฃo que tive na madrugada passada, pensando que talvez fosse melhor apoiar Luther. Mas havia a chance de estar errada. Afinal, o diagnรณstico de Pogo era claro: nosso pai morrera de ataque cardรญaco.
Ainda assim, por mais que a morte dele me incomodasse, eu nรฃo conseguia me importar de verdade. Ele estava morto, e nada mudaria isso. A verdade sobre como ele morreu nรฃo traria consolo.
โ Nรฃo entendo. Disseram que foi um ataque cardรญaco โ Vanya entrou na conversa, sua expressรฃo era de pura confusรฃo.
โ Foi o que os mรฉdicos disseram โ Luther respondeu.
โ E eles nรฃo saberiam?
โ Teoricamente โ Luther deu de ombros.
โ Teoricamente?! โ Allison cruzou os braรงos, incrรฉdula. A tensรฃo comeรงava a subir.
Olhei para Diego, que observava a cena com cautela. Se Luther estivesse insinuando o que eu pensava, tudo estava prestes a desmoronar.
โ Olha, eu acho que algo aconteceu. A รบltima vez que falei com papai, ele estava estranho โ Luther continuou, firme.
โ Oh! Quelle surprise! โ Klaus zombou, com um ar teatral. Ninguรฉm parecia levar aquilo muito a sรฉrio.
โ Estranho como? โ Allison perguntou.
โ Ele parecia nervoso. Disse para nรฃo confiarmos em ninguรฉm.
โ Luther, ele era um velho paranoico e ranzinza, jรก nรฃo batia bem da cabeรงa โ Diego comentou, saindo de perto de mim e se aproximando de Luther.
โ Nรฃo. Ele devia saber que algo iria acontecer.
โ Por que estamos discutindo isso mesmo? โ perguntei, impaciente. โ Ele sempre foi um maluco. Nos รบltimos anos, ficou ainda pior. Babaca, traiรงoeiro, mas esperto demais. โ Suspirei. โ Descobrir o que aconteceu vai trazรช-lo de volta?
โ Como se ele te visitasse muito โ Luther retrucou, sarcรกstico.
Visitava, sim. Mas nunca era algo amigรกvel. As visitas se resumiam a reprimendas e lembretes de como eu era a pior filha de todas.
โ Ele foi na minha casa semana passada, babaca. E do jeito que o descrevi, estรก perfeito. โ Sorri com ironia. โ Atรฉ onde eu sei, vocรช foi o que ficou sem falar com ele. Estava na lua, nรฃo รฉ mesmo? โ provoquei.
Luther suspirou, passando os dedos pelos olhos em um gesto de frustraรงรฃo, tentando manter a calma.
โ Olha, Klaus, sei que vocรช nรฃo gosta disso, mas preciso que fale com nosso pai.
Klaus franziu o cenho, incrรฉdulo.
โ Nรฃo tem como chamar ele do outro lado e dizer: "Pai, dรก para parar de jogar tรชnis com Hitler pra eu falar com vocรช rapidinho?"
โ Literalmente โ murmurei, jรก desconfiada de que Klaus nรฃo estava sรณbrio.
โ Desde quando?! Essa รฉ sua especialidade!
โ Nรฃo estou pronto... mentalmente.
โ Estรก chapado? โ Allison perguntou, mas sua voz soou mais como uma afirmaรงรฃo.
โ Isso! โ Klaus riu, orgulhoso de ser compreendido. โ E como vocรชs nรฃo estรฃo? Para aguentar toda essa baboseira.
Concordei em silรชncio.
โ Entรฃo fica sรณbrio! Isso รฉ importante! โ Luther rebateu, impaciente. โ E ainda tem o problema do monรณculo, que sumiu.
โ E quem liga pra porcaria do monรณculo? โ Diego retrucou, com total desinteresse, quase rindo da ideia.
โ Tem razรฃo. Nรฃo vale nada. Entรฃo, quem pegou deve ter algum motivo pessoal. Alguรฉm prรณximo a ele, com algum ressentimento.
โ Quer parar de bancar o detetive, por favor? Isso era pra ser o enterro do papai, nรฃo uma delegacia de polรญcia โ falei, balanรงando a cabeรงa em negaรงรฃo. Aquilo estava ficando ridรญculo.
โ Aonde quer chegar com isso?
โ Nรฃo รฉ รณbvio, Klaus? Ele acha que algum de nรณs matou o papai. โ Diego soltou, รกcido.
O ar da sala pareceu pesar imediatamente. Luther ouviu suspiros exasperados de todos os irmรฃos. Ele mesmo fez uma careta de desconforto, como se quisesse dizer silenciosamente: "Era isso, mas nรฃo precisava ser tรฃo direto."
โ Era sรณ o que faltavaโฆ โ murmurei, incrรฉdula. Nรฃo consegui conter um sorriso de desgosto.
โ Isso รฉ sรฉrio?! โ Klaus perguntou, sem acreditar.
โ Como pode achar isso? โ Vanya se manifestou, magoada. Sua voz soava suave, mas carregada de decepรงรฃo.
Antes que Luther tentasse se explicar, Diego jรก estava saindo da sala, atirando as palavras por cima do ombro:
โ Parabรฉns, Luther. Grande lรญder vocรช รฉ.
โ Eu nรฃo disse isso! โ Luther se defendeu, tentando desesperadamente recuperar o controle.
โ Vocรช tรก louco, cara! Doido! โ Klaus exclamou, levantando-se e saindo em disparada para outro cรดmodo, sem paciรชncia para mais nada.
Olhei para Luther, sentindo uma mistura de exaustรฃo e frustraรงรฃo. Respirei fundo antes de falar:
โ Fiquei fora todo esse tempo para ser recepcionada assim? Pelo visto, toda aquela curiosidade sobre onde eu estive era sรณ pra descobrir meu รกlibi, nรฉ? โ Perguntei com sarcasmo, sentindo uma pontada de mรกgoa. Mesmo sabendo que ele estava apenas preocupado, a ideia de ser suspeita me irritava profundamente. Me virei com um drama deliberado e saรญ da sala em passos largos, bufando.
โ Eu ainda nรฃo terminei! Nรฃo foi isso que eu disse, Celly! โ Luther tentou se justificar, sua voz soando quase desesperada.
โ Tranquilo, eu e a Celeste sรณ vamos matar a mamรฃe ali rapidinho e jรก voltamos! โ Klaus disse, com deboche, me esperando na porta.
Quando saรญmos, dava para sentir o peso do fracasso no ar ao redor de Luther. Ele estava frustrado, nรฃo sรณ por ser mal interpretado, mas porque tudo o que queria era ser ouvido. Ele queria estar certo, queria proteger a famรญlia. Sentira saudade de todos durante seu tempo na lua, e agora, em questรฃo de minutos, tudo parecia desmoronar.
revisรฃo concluรญda โ๏ธ ๐
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