
𝐂𝐀𝐏𝐈𝐓𝐔𝐋𝐎 (𝟎𝟏𝟔)
Sentir-se uma completa bagunça ia muito além do sentido figurado. Natalie também estava assim, começando pelo vestido, onde o tecido preto grudava, molhado pelo sangue de outra pessoa. Suas mãos estavam na mesma condição, sujas e trêmulas. Sua visão estava borrada pelas lágrimas que ainda escorriam enquanto tentava limpar o que podia ao seu redor e em si mesma. Muita coisa havia acontecido em questão de minutos, e muitas mais ainda iriam acontecer até o fim daquele dia. Ela encarou o corpo inconsciente de Lily, e tudo o que conseguiu sentir por ela foi raiva. Aproximou-se das coisas espalhadas pelo chão: uma garrafa de água, uma adaga de prata suja de sangue e um crucifixo. Lily estava realmente disposta a matar um vampiro naquele dia, e havia deduzido com facilidade que Charlotte estaria presente no velório. Fácil até demais.
Ao ouvir duas batidas na porta, Natalie correu para impedir a entrada de quem quer que fosse. O cômodo ainda estava coberto de sangue, e ela, principalmente. Explicar o que havia acontecido ali minutos antes seria complicado. Natalie conteve a abertura da porta, colocando parcialmente o rosto pela fresta que permitiu abrir. Encontrou a senhora Harris, uma das vizinhas que estava ajudando com o velório.
— Natalie, querida, estávamos procurando você — disse ela, tentando empurrar a porta um pouco mais, mas Natalie a impediu. — Aconteceu alguma coisa?
— Sim... quer dizer, não... — Ela balançou a cabeça, confusa. — Passei mal, mas já estou melhor. Vou descer em alguns minutos.
— Oh, céus, você precisa de algo?
— Não, já estou bem, obrigada.
— Sendo assim, desça, pois queremos que você diga algumas palavras de conforto sobre o seu pai antes de partirmos para o enterro.
— Claro — respondeu Natalie, acenando. A senhora Harris a olhou com confusão, mas sem insistir, virou-se e saiu pelo corredor.
Natalie fechou a porta, aliviada por ganhar mais alguns segundos. Agora precisava se limpar e descer para falar em público. Ela rangeu os dentes, furiosa. Odiava falar em público, e não tinha nada de bom para dizer sobre Joe. Aproximou-se de Lily, verificando o estado da mordida de Charlotte. Felizmente, a ferida já estava seca. Ela sacudiu a outra garota com força para acordá-la. Lily piscou, recobrando a consciência gradualmente.
— Natalie? — murmurou o nome dela. Viu duas Natalies à sua frente, ambas com expressões furiosas. — Não me olhe assim...
— E como você queria que eu olhasse? Você perdeu o controle, Lily! Machucou o meu amigo no velório do meu pai! — Natalie levantou-se, a voz subindo de tom. — Você aproveitou esse momento para se vingar.
Lily piscou, ainda se ajeitando. Passou a mão pelo pescoço, assustada ao perceber a mordida sarada. Ela estava tão perto de terminar com tudo aquilo. Tão próxima do que realmente queria.
— Você tem noção do que fez?
— Eu poderia ter feito algo se você não tivesse chegado — disse Lily, levantando-se com um pouco de dificuldade. Natalie se aproximou, furiosa, com os ombros tensos.
— Ter feito algo? Você esfaqueou o meu melhor amigo! — Gritou a acusação. — Que tipo de psicopata você é?
— Ele só apareceu no lugar errado e na hora errada. E além disso, ele ficaria bem depois que eu matasse aquela vampira. Só precisava do sangue dele para atraí-la.
— Ficar bem? Você realmente acreditou nisso? — As mãos de Natalie tremeram ainda mais. Greg não teria sobrevivido se ela não o tivesse encontrado. Lily o teria deixado morrer só para concluir sua vingança. E agora, Greg estava tecnicamente morto. — Você vai desaparecer da nossa vida, Lily. Volte para o buraco de onde saiu.
— Acha que será fácil se livrar de mim agora que estou aqui? — Lily avançou contra Natalie, encarando-a. — Não terminei o que vim fazer. Só vou embora quando acabar com essas coisas que você insiste em proteger.
— Então terá que acabar comigo também! — Natalie retrucou entre os dentes. Seus olhares se estreitaram, a raiva fervendo nos dois lados. Algo na postura de Natalie fez Lily lembrar-se do passado que ela tanto odiava recordar.
— Não quero você como inimiga, Natalie.
— Devia ter pensado nisso antes de vir aqui e fazer o que fez.
— Onde está Greg? Posso levá-lo ao hospital — disse Lily, encarando a outra porta. Natalie prendeu a respiração.
— Não é da sua conta. Agora vá embora, você não é bem-vinda aqui! — Apontou para a porta. Lily pegou suas coisas do chão e as guardou na bolsa.
— Você ainda vai me procurar pedindo ajuda, Natalie — foi a última coisa que disse antes de sair.
Natalie respirou aliviada quando a viu partir. Saiu do cômodo em seguida, em busca de um banheiro para dar um jeito nas roupas. Felizmente, vestia preto, então, embora se sentisse pegajosa de sangue, ainda conseguia disfarçar bem. De volta ao primeiro andar, caminhou até o pequeno altar. Precisava falar sobre o pai, dar-lhe uma última despedida. Seu olhar vagou pelos rostos presentes. Alguns eram desconhecidos, enquanto outros ela mal entendia o que faziam ali. Afinal, Joe não era uma pessoa querida. Avistou Vera sentada em um banco, com os olhos fundos e enxugando o canto do nariz com um lenço. Obviamente, estava sofrendo com a perda do marido, o que preocupava Natalie. Quando Anelise morreu, Vera se fechou para o mundo, e agora, com a morte do pai, Natalie temia que isso acontecesse de novo, de uma forma ainda pior.
Ela olhou para o caixão ao lado. Devido ao estado do corpo de Joe, não o deixaram aberto, e o velório deveria ser rápido, pois o corpo já começava a cheirar mal. Saber que Charlotte não havia matado seu pai fazia com que a dúvida pairasse em seu peito. Havia mais vampiros na cidade, e isso não era nada bom. Natalie engoliu seco e se posicionou atrás do púlpito.
— Oi, eu sou a Natalie, mas vocês já sabem disso... — começou, sem jeito. — Primeiro, quero agradecer por estarem aqui e, segundo, perguntar... por que estão aqui? — O murmúrio cresceu entre o público. Vera a encarou de longe. — Joe foi simpático com algum de vocês? Porque ele não foi comigo, nem com a minha mãe. Então, se acham que subi até aqui para dizer que ele foi um pai amoroso e gentil, não vão ouvir isso. — Ela limpou a garganta. — Eu não era a filha favorita do Joe, e acho que quando perdi minha irmã, ele desejou que tivesse sido eu. No fundo, eu também desejei o mesmo. — Ela sorriu dolorosamente e deu de ombros. — Vocês não precisavam ouvir isso, mas é que nos últimos dias tenho vivido como se fossem os últimos da minha vida. E como se não bastasse uma pilha de coisas desmoronando, eu perdi o meu pai de forma brutal. Para ser franca, ainda não sei como me sinto. Não sei como devo me sentir. — Natalie suspirou. Os murmúrios já estavam altos o suficiente para ela encerrar ali, mas decidiu continuar. — Mas acho que me sinto aliviada. E não me sinto mal por perder um pai, porque eu nunca senti que tive um.
Ela se afastou do púlpito, o coração disparado. Desceu as escadas e caminhou até Vera, que a observava com um olhar melancólico. Se encararam por um longo tempo em silêncio. Não havia muito o que dizer entre mãe e filha. Vera desviou o olhar e acenou para as outras mulheres. Já era hora de enterrar o verdadeiro fardo da família Scatorccio. O cortejo seguiu em silêncio até o cemitério no sul da cidade. Hora ou outra, a viúva ouvia murmúrios sobre o discurso da filha. Mas ela jamais julgaria Natalie, não da forma como aquelas pessoas estavam fazendo. Talvez, se tivessem conhecido Joe de verdade, teriam mantido a língua dentro da boca. O enterro foi rápido, e em questão de minutos, não havia mais ninguém no cemitério.
— Eu nunca a culpei pela morte da Ane — ouviu uma voz atrás de si. Natalie amassava a grama entre os dedos, ajoelhada na terra úmida. A lápide de Anelise estava suja de lodo, e ao lado dela, agora seu pai repousava. Vera ajoelhou-se ao lado da filha, passando o braço pelos seus ombros finos. Ela estava gelada, e isso assustou a mãe. — Pelos céus, Natalie, você está congelando — disse Vera, preocupada.
— Estou bem — a mentira foi cuspida da sua boca. Ela não estava bem, mas sua mãe não precisava saber o que estava acontecendo. — Eu sei que você nunca me culpou pela morte dela.
— Foi uma fatalidade. Não havia o que fazer, ela bateu a cabeça ao escorregar da pedra — Vera retirou o lenço para limpar as lágrimas. Em seguida puxou o casaco que vestia e pôs ao redor da filha. Natalie relaxou quando o calor a acolheu. — Eu nunca mais fui a mesma depois disso, e sei que você também não. O tempo correu tão rápido diante nossos olhos. Você se culpou por anos e seu pai só colaborou com isso. E eu como mãe, só me ausentei dessa dor. O que falou naquele momento, eu... eu não posso crucificá-la por isso, quando a culpa também é minha.
— Eu exagerei ao dizer tudo aquilo, aquelas pessoas não tinham nada a ver com nossos problemas.
— Você só precisava pôr para fora o que sentia, Natalie. — Vera abraçou a filha. Ela ainda possuía o perfume cítrico impregnado no cabelo. No fundo, Natalie era só uma menina que já havia vivido muitas tragédias. Amadurecido cedo demais. — Agora somos só nós duas, querida.
— Nós duas contra o mundo? — A jovem a encarou.
— Isso, nós duas contra o mundo. — Confirmou a mãe ao deixar um beijo demorado sobre o cabelo tingido do seu pequeno milagre.
Vera acariciou o ombro de Natalie, enquanto juntas observavam as lápides. Natalie não sabia o que o futuro reservava para elas, mas, por um segundo, reconectar-se com a mãe foi uma sensação que ela havia esquecido como era.
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O cemitério do lado norte ficava localizado entre o centro da cidade e o bairro de classe alta. A avenida estava tão deserta quanto a movimentação do lado de dentro dos enormes gradeados. As lápides de mármore estavam em perfeito estado e limpas, mas as esculturas de santos e anjos, com seus olhos vazios e expressões severas, chegavam a ser assustadoras de tão realistas. Charlotte sentiu-se aliviada por estar sozinha naquele lugar; ainda era dia, e ela carregava um corpo sem vida nos ombros. Caso fosse vista por alguém naquele momento, seria complicado explicar sua situação ou no que havia se envolvido. Levou um tempo para encontrar o lugar perfeito para a transição. Estava no lado mais afastado da entrada, quase no fim do cemitério; provavelmente Natalie demoraria horas para encontrá-la, mas deveria ser feito ali, sob as sombras de uma árvore centenária, de raízes grossas. Talvez, se Greg tivesse morrido de outra causa, aquele seria um bom lugar para enterrá-lo. Um bom lugar para repousar por toda a eternidade.
No entanto, a partir do momento que um humano morre com sangue vampiro no organismo, está fadado a uma vida carregada de maldições e dádivas. Charlotte sentiu pena do destino de Gregory. Eles não eram colegas, e na escola mal se falavam. Ela sempre o via com Natalie, perseguindo a garota como um cachorrinho bem adestrado, e ela, como uma boa egoísta, o ignorava na maior parte do tempo. Às vezes ele a fotografava durante os jogos, ou interrompia a aula para que todos ouvissem seu ponto de vista sobre determinado assunto. Ainda assim, eles eram estranhos um para o outro, e deparar-se com o desespero de Natalie para salvá-lo foi surpreendente. Talvez, no fundo, Natalie só não soubesse lidar com amizades da mesma forma que Charlotte não sabia lidar com suas emoções e desejos reprimidos.
Sentando o corpo do garoto nas raízes da árvore, Charlotte deslizou os pés até o lugar onde o coveiro guardava suas ferramentas. Pegou uma pá e voltou para o corpo. A transição podia levar minutos ou horas. Poderia levar até mesmo dias ou acontecer em um piscar de olhos. E ela precisava de Natalie. Primeiro, porque Greg estava naquela situação por culpa dela; segundo, porque ele precisaria de sangue para completar a transformação. Respirando fundo, Charlotte iniciou o serviço. A pá bateu na grama fofa, arrancando um tufo generoso de terra preta. Aquela parte era desagradável, e ela ainda se lembrava bem de quando enfrentou seu próprio inferno e de como foi doloroso se enfrentar e arrancar a própria carne com as unhas. Cada humano que se torna vampiro desce para as profundezas do submundo e cruza o caminho mais doloroso possível. Para cada um é de uma maneira diferente, mas a sensação é sempre a mesma: dor, desespero, medo, e, por último, renascimento. Se ela fosse cristã, com certeza diria que esse é o castigo por se viver em pecado durante toda a vida, mas, como não era, acreditava apenas que sacrifícios dolorosos deveriam ser feitos para alcançar a vida eterna.
Charlotte trabalhou rapidamente, abrindo uma cova rasa e de tamanho grande. Embora Greg tivesse um metro e oitenta, ele não deveria ter dificuldade para cavar até a superfície quando retornasse como vampiro. Aquela fase era completamente angustiante e desesperadora, fazendo com que o recém-criado ficasse ainda mais confuso e furioso. Pulando para fora, ela empurrou o corpo do garoto para o buraco e o cobriu com terra, finalizando ao pisar na grama agora murcha para garantir que todo o corpo estivesse soterrado. Avaliou o serviço feito e sentou-se, observando a paisagem local. Agora era aguardar. Se Natalie tivesse sorte, não presenciaria o nascimento de um vampiro, uma parte assustadora até para ela, mas não se livraria da parte do sangue. Não mesmo. Charlotte poderia capturar qualquer humano para completar a transição de Gregory ou pegar algum animal, mas seria fácil demais para Natalie apenas ver seu amigo de turma voltar à vida. Ela deveria aprender o peso das escolhas a partir do primeiro momento da vida pós-morte. Além disso, se pegasse alguém aleatório, seria facilmente culpada pela loira por tirar uma vida inocente, então Natalie deveria fazer seu próprio sacrifício em nome da amizade.
Uma verdadeira tempestade de confusão desabava ao redor das garotas. Como se não bastasse um recém-criado no mundo dos vampiros, Natalie e Charlotte deveriam lidar com uma caçadora de vampiros amadora e outro vampiro à solta na cidade. Sebastian havia sido claro ao dizer que poucos vampiros andavam pela terra; aquela era uma espécie quase em extinção, por isso Charlotte acreditava que o desejo de um dos primeiros vampiros era criar seu próprio clã, mas, obviamente, ele tinha outras intenções. Então, quem havia matado o pai de Natalie Scatorccio? Charlotte tinha suas dúvidas, assim como questionava se o próprio Sebastian não havia decidido atingir a garota que ela gostava de alguma forma. Aliás, ele mesmo havia solicitado que Natalie fosse morta, pois sua curiosidade, combinada com a obsessão em descobrir o que Charlotte era, estava pondo seu plano em perigo. Com certeza essa era uma hipótese que não poderia ser descartada facilmente.
Charlotte respirou fundo, ainda sentindo desconforto nos lugares onde a água benta havia queimado sua carne. Embora os machucados estivessem cicatrizados, a ardência nas protuberâncias ainda podia ser sentida. Aquela vadia metida a caçadora iria pagar pelo que fez. Aliás, quem era ela? Charlotte tentou se lembrar do nome gritado por Natalie. Lily, a vadia se chamava assim, provavelmente alguma nova amizade da Scatorccio. A garota estava realmente disposta a matá-la, mas isso não seria fácil. "Você matou meu pai", recordou-se da acusação. Charlotte perdeu a conta de quantos homens já havia matado desde que se tornou o que era, então, mesmo que quisesse, não saberia dizer qual de suas vítimas era o pai de Lily. Mas sabia que o ataque a deixou enfurecida, e Lily teria o que merecia muito em breve.
Aquele dia realmente estava sendo caótico, principalmente por Charlotte finalmente ter conseguido dizer o que seu coração gritava há anos sem ser ouvido. Tudo bem que não fora a melhor declaração a ser dita em voz alta ou no momento mais adequado, muito menos romântico, mas ela precisava falar e fez isso da melhor forma que pôde. Agora só restava saber o que Natalie faria, mas algo em seu interior dizia que talvez a loira não tivesse tempo para romance. Muito menos agora, quando sua vida parecia ter virado de pernas para o ar.
A noite caiu silenciosa. Já se aproximava das dezenove horas, e nenhum sinal de Natalie naquele cemitério. Talvez ela tivesse desistido da ideia de comparecer àquele lugar. Algo que Charlotte não podia julgar, realmente ter um humano e um vampiro recém-criado no mesmo ambiente era perigoso. Encarou o buraco onde Greg estava enterrado, nenhum sinal dele, por enquanto. Então, uma brisa suave e gelada a envolveu e, junto com ela, veio um cheiro conhecido ao seu olfato apurado. Era cítrico e levemente adocicado. Charlotte virou o rosto na escuridão, encontrando Natalie parada a uma distância segura. A garota loira usava sua velha jaqueta de couro e seu jeans surrado; as botas estavam sujas de terra, e ela tremia levemente.
— Você finalmente veio. — Charlotte ergueu o rosto. Natalie esticou os lábios em um sorriso rápido e acenou.
— Só tive um pouco de trabalho para sair de casa depois que minha mãe adormeceu no meu colo. — Explicou, ainda hesitando em dar um passo. Charlotte se compadeceu com a situação.
— Como ela está?
— Como alguém que acabou de perder o marido. — Deu de ombros. — O Joe era um babaca, mas foi a paixão da minha mãe desde a adolescência. Ela o amava de verdade, mesmo quando ele não dava valor a ela.
— E como você está? — Perguntou a vampira. Natalie separou os lábios, sugando o ar gelado para os pulmões.
— Não sei, realmente não sei. — Encarou as unhas roídas e machucou a cutícula. Charlotte franziu o cenho.
— Você pode se aproximar, eu não vou te machucar. — Usou o tom mais fraternal possível. Natalie engoliu seco. Então, deu um passo corajoso em direção a ela. Para Scatorccio, estar na presença de uma vampira assassina ainda era... assustador, mesmo depois de tudo que já haviam passado juntas. Por isso, tentou esquecer esse lado de Lottie. Ela ainda era uma garota. — Você parece estar com frio, senta aqui.
— Você não parece sentir o mesmo. — Observou Natalie. Charlotte deu de ombros.
— Deve ser porque estou morta e não consigo sentir algumas coisas que vocês, vivos, sentem.
— Nossa, isso foi...
— Estranho?
— Pra cacete!
Charlotte reprimiu o sorriso quando Natalie se sentou ao seu lado, entre as raízes. Com destreza, a vampira retirou o casaco que vestia. Ela realmente não sentia frio, mas a garota ao lado sim, então a cobriu com cuidado, recebendo um sorriso tímido, embora agradecido. Charlotte sentiu o coração disparar, e os dedos gelaram imediatamente. Bem, talvez mesmo estando tecnicamente morta, ainda conseguisse sentir as velhas sensações de quando era viva e humana. Natalie pigarreou e encarou o túmulo à sua frente, questionando-se se era assim que um vampiro era feito. Ela já havia visto algo parecido nos filmes que viu há poucos dias, mas não esperava que todo aquele cenário tivesse um fundo de verdade. Era assustador.
— Talvez eu devesse ter aceitado o destino do Greg. — Falou a loira.
— Não me diga que agora está arrependida?
— Como vai ser daqui pra frente?
— Olha, eu realmente não tenho como prever o futuro, mas acho que devemos nos preocupar muito mais com o agora. — Charlotte falou. Natalie a encarou.
— Tem razão. — Disse, então apontou para o buraco. — Essa coisa de transição costuma demorar?
— Depende muito de certos casos. Estou aqui desde que era dia, e nada do Greg voltar.
— Fizemos algo errado?
— Não. Acredito que não. — Charlotte encolheu as pernas. Natalie se escondeu ainda mais na jaqueta e no casaco. Estava ficando cada vez mais frio, o verão dando adeus e o outono um belo olá.
— Como acontece esse processo? É só enterrar e pronto?
— Esse é o começo. Há algumas etapas. Primeiro, ele precisa morrer com sangue de vampiro no organismo, então precisa ser enterrado. Depois, vem a parte assustadora. — Explicou. Natalie prestou atenção no que a morena dizia com sabedoria. — O Greg vai ao inferno, literalmente, e será atormentado até se tornar um vampiro. Não é uma parte legal, é assustador e doloroso. Depois ele deve cavar até a superfície e, aí sim, finalizar a transição.
— Caramba, nos filmes parece mais simples. — Natalie falou, soltando um suspiro preso no peito em seguida. — Só quero que ele volte.
— Ele vai, mas não espere que continue como sempre foi. Isso realmente nos muda, ou aflora nosso melhor lado, ou o pior.
— Não vai ser assim com o Greg, tenho certeza.
O perfume adocicado da roupa da vampira a embriagou. Natalie estaria mentindo se dissesse que não gostava do cheiro frutado de cereja que Charlotte exalava. E isso só a fez se lembrar de mais cedo, quando ouviu tudo que a vampira tinha a dizer. A confissão de sentimentos, um turbilhão de palavras sinceras, mas quase dolorosas de serem ouvidas. O beijo que veio em seguida e o desejo que crescia dilacerando seu peito, tornando-se incapaz de ser reprimido. Seu olhar foi ao encontro da garota ao lado. Lottie estava um pouco suja de terra escura, e os cabelos escovados estavam levemente frisados e ondulados pela umidade. Ainda assim, era a garota mais bonita da escola e da cidade, assim como a mais fria e dissimulada que Natalie já tivera o prazer de conhecer.
— O que foi? — Perguntou a vampira. Natalie piscou, voltando à realidade.
— Só estou pensando no que me disse mais cedo e no que fizemos...
— Ah! Natalie, eu sei que tudo está acontecendo rápido demais, então, podemos falar sobre isso em outro momento.
— Mas eu quero...
— Você quer? — Charlotte a encarou com as sobrancelhas erguidas. Natalie sorriu.
— Quero falar sobre o que me disse mais cedo, e quero saber o que aconteceu com você.
— Ah... — Charlotte engoliu em seco. Encarou o túmulo, porque encarar as esmeraldas verdes talvez fosse demais para ela naquele instante. — Certo, por onde começamos?
— Você gosta de mim desde quando exatamente? — Natalie mostrou interesse, aproximando-se mais.
— Desde que eu te vi, eu acho. — Charlotte passou a mão pelo rosto. Ela não deveria ter vergonha de dizer aquilo, então por que ainda se sentia insegura em finalmente admitir isso?
— Então era uma escrota de propósito comigo? — Natalie perguntou, com uma sobrancelha erguida. — Implicar é o seu jeito de flertar?
— Você não era muito fácil, sempre cheia de razão e respostas na ponta da língua. — Charlotte rebateu. — E, no fundo, eu realmente te acho uma gracinha quando está com raiva.
— Você é uma idiota, Lottie. — A loira revirou os olhos. Charlotte mordeu os lábios. — Mas, se quer saber, uma parte de mim desconfiava disso, mas eu não quis acreditar que era verdade. Quem diria, a filha do prefeito apaixonada pela garota-problema da escola?
— Opostos se atraem, certo?
Natalie desviou o olhar para frente sem confirmar. Charlotte a encarou com os lábios separados.
— Opostos se atraem... — Natalie murmurou. — Você me assombrou e mexeu com minha cabeça. Puta merda, Lottie, tenho certeza que uma parte sua é má por natureza.
— Engraçado, dizem que essa é uma das minhas melhores qualidades. — Jogando uma mecha de cabelo por cima do ombro, Charlotte exibiu um sorriso perfeito. Natalie soltou um arzinho pelo nariz.
— Eu queria te matar. Eu estava realmente disposta a fazer isso, mas depois...
— Depois?
— Depois daquela festa, você ficou presa em um lado da minha mente. — Natalie recordou-se do seu aniversário de dezoito anos. O beijo, o que fez em casa sozinha, tudo sempre voltava para ela. De alguma forma, estavam ligadas uma à outra. — Eu nunca pensei que estaria gostando de uma garota também.
— Você gosta de mim?
— Eu queria te odiar, isso sim! — Natalie a encarou. — Você se tornou cruel e sádica, matou pessoas inocentes, devorou meu vizinho e quase me enlouqueceu só porque estava insegura com seus próprios sentimentos. — Charlotte piscou enquanto Natalie buscava mais palavras. — Mas percebi que não consigo te odiar por muito tempo, não importa mais o que aconteça. Você plantou algo no meu coração. Às vezes, me vejo em você. Outras vezes, tenho inveja de tudo o que você é, de tudo o que tem.
— Minha vida sempre foi uma farsa, Natalie. — Charlotte balançou a cabeça. — A família Matthews não é perfeita, embora meus pais façam parecer que sim. No fim, eu não tenho nada.
— E a minha sempre foi um inferno, Lottie. Os Scatorccio não escondem quem são, mas ainda temos tanta sujeira embaixo do tapete quanto vocês. — Natalie deslizou a mão até a de Charlotte. Seus dedos se entrelaçaram. — No fim, eu não estava errada ao deduzir que somos parecidas, só que de formas diferentes.
— Isso não faz muito sentido.
— Você é uma vampira, estamos em um cemitério esperando meu amigo nerd voltar dos mortos. Você acha mesmo que algo à nossa volta faz sentido?
— Talvez tenha razão. — Charlotte sorriu.
— Tenho uma coisa para te dar. — Natalie se aproximou, reunindo toda a coragem que tinha. — Feche os olhos e não se mova. — Charlotte obedeceu, ansiosa pelo que ganharia.
Lambendo os lábios, Natalie aproximou o rosto até que sua boca colasse na de Charlotte. Ela precisava daquilo novamente. A sensação de beijar a garota que estava enraizada em sua mente e coração. Seus lábios se moveram lentamente, saboreando o gosto que já havia sentido horas atrás. Charlotte era doce, e naquela altura, Natalie só se perguntava se ela era assim em todos os lugares. Sentindo a língua da vampira pedir passagem, Natalie cedeu, abrindo caminho para um beijo mais intenso. Diferente de antes, quando pareciam que iriam devorar uma à outra, o beijo dessa vez foi mais lento e molhado, perfeitamente encaixado. No entanto, a sensação prazerosa não durou muito, já que um som ecoou das profundezas do solo. Charlotte foi a primeira a ouvir, abrindo os olhos para encarar o que estava subindo à superfície. Natalie abriu os olhos preguiçosamente, mas, ao perceber a pequena montanha de terra escura à sua frente, saltou de onde estava. Era Greg, surgindo do fundo daquele buraco, cavando desesperadamente em busca de oxigênio.
— Natalie, não chegue muito perto. — Charlotte a puxou para trás.
— Ele está voltando. — Um brilho iluminou o olhar esverdeado.
Primeiro, dedos alçaram o topo, cravando na terra escura para o corpo vir em seguida. Natalie acompanhou o renascimento de Greg, agora completamente sujo de terra e pálido como papel. O garoto jogou a cabeça para trás, sentindo o vento frio afastar seus cachos do rosto. Ele estava de volta ao mundo dos vivos, longe de todas as experiências vividas no inferno.
— Greg? — Natalie chamou, contendo a vontade de tocá-lo.
Um olhar selvagem foi lançado em sua direção. Natalie sentiu suas forças irem embora. Aquele não parecia mais Greg. Não havia sequer uma gota de doçura ou bondade em seus olhos azuis. Seu rosto estava contorcido e deformado, como um morcego. Natalie endureceu o olhar, e um grito agudo saiu de sua garganta quando o garoto correu em sua direção como um animal. Talvez, se Charlotte não estivesse ao seu lado, ali teria sido seu fim. Natalie viu quando Charlotte o segurou pelos ombros, impedindo que ele avançasse. Gregory não parecia reconhecer ninguém, mas talvez aquilo fizesse parte do processo de transição. Charlotte sibilou ameaçadoramente, revelando seus caninos afiados em um gesto destinado a intimidar o outro vampiro. Não deu certo; Gregory retribuiu com um sibilar ainda mais alto e dentes ainda mais afiados.
— A transformação dele foi diferente. — Charlotte falou com a voz grossa e contorcida. Ela fazia esforço para conter a fúria do garoto. — Tem algo errado.
— Como assim? — Natalie recuou, seguida pelos olhos vermelhos e de serpente de Greg.
— Greg, olhe para mim! — Ordenou Charlotte. Ele a encarou. — Sei que está com fome, mas precisa se acalmar para poder se alimentar. — Falou alto. Greg rosnou como uma besta. — Natalie, preciso do seu sangue.
— O quê? Ficou maluca?
— Se ele não beber sangue, então morrerá, dessa vez sem volta. — Charlotte a encarou por cima do ombro, o rosto assustador. Mas Natalie não se deixaria amedrontar. Essa era a natureza deles agora. — Não precisa ser muito, só o suficiente para ele completar a transição.
— E quanto é esse suficiente? — Natalie perguntou.
Charlotte suspirou. Uma de suas mãos deslizou para o peito do garoto. Quando o tocou, sentiu toda a confusão de sentimentos, principalmente a raiva. Greg estava confuso, e sua fome o impedia de ser racional. Ela teria que ser cuidadosa ao dar o sangue de Natalie sem que ele a drenasse. Seria injusto perder a garota logo agora.
— Me deixe afastar sua dor por alguns instantes. — Disse suavemente. Greg não conseguia falar; parecia ter perdido a prática. Seus dentes afiados machucavam a língua, e o sangue escorria pelo queixo. — Vai ficar tudo bem, eu prometo. Só respire. O que passou lá embaixo já se foi. — Charlotte ouviu os batimentos amenizarem e as presas sumirem. — Você se lembra de quem era? — Greg inclinou o rosto, voltando à sua face humana. — Se lembra da sua amiga?
— Natalie? — Chamou ele. A loira tremeu, mas se aproximou. Era só um pouco de sangue, pensou. Era para o bem dele, concluiu.
— Greg, ouça com atenção, você precisa beber um pouco de sangue. Somente um pouco. — Charlotte segurou seu rosto entre as mãos. — Não deixe a fome te consumir, ou a Natalie morrerá, e eu te matarei sem piedade.
— Não... — Ele negou, recobrando a consciência. No entanto, sentia tanta fome que começava a salivar. Viu Natalie se aproximar, e o suor no corpo dela denunciava seu medo. Felizmente ainda estava sendo contido por Charlotte, caso contrário, ele já teria fugido para longe ou feito algo pior. — Vou matá-la.
— Não vai, você é bom. — Natalie puxou a jaqueta para cima, e ergueu o pulso — Eu te coloquei nisso, é justo que eu continue. Você pode...
Greg piscou, incerto, mas sua fome o dominava. Observando a tensão crescente, Charlotte permitiu que Natalie esticasse o braço entre eles. O vampiro abriu a boca e abocanhou o pulso fino enquanto Charlotte o segurava firme.
Natalie gritou, mas a dor foi breve. Após alguns segundos, a sensação de lentidão a dominou. Ela se sentiu sonolenta, com os olhos pesados. Seu sangue parecia concentrar-se em uma só região e ir embora. Ela também queria ir embora, mas não conseguia se mover. Quando Greg a soltou por instinto próprio, Natalie caiu de joelhos, desejando dormir. Ela piscou, vendo o amigo recém-transformado se tornar um borrão enquanto se afastava. Antes de adormecer, viu o rosto desfigurado de Charlotte e o sabor do sangue dela escorrendo em sua garganta. Isso a faria acordar bem, tinha que acreditar nisso. Por isso, entregou-se à escuridão no colo da vampira.
Já ouviram a playlist da fic? Qual musica que tem lá lembra a Lottie e Nat desse universo aqui?
CAPITULO ATUALIZADO: 21/09/2024 - NÃO REVISADO
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