𝟎𝟐. sob ordens e poeira
O que faz um guerreiro continuar quando tudo ao redor parece destruído? Será a sede por sangue ou apenas o instinto de sobrevivência que os impulsiona a cada passo? Talvez seja a luta pela memória, pelos que ficaram no caminho. O destino dos que pegavam a estrada era incerto, mas aqueles que sobreviviam sabiam que não havia retorno. Tudo o que restava eram cicatrizes – algumas visíveis, outras enterradas no fundo. Pretoriano Jack era um desses guerreiros. Seu nome ecoava pelas margens da Cidadela, murmurado com respeito e temor. Ele que pilotava a Máquina de Guerra de Immortan Joe. Ele que havia se tornado uma lenda. Contudo, lendas também sangram, e o preço da glória muitas vezes é cobrado em perdas que ninguém ver. A vitória sobre a Fazenda da Bala e a Vila Gasolina era celebrada, mas Jack não tinha ânimo para festejar.
Ele caminhou entre as rochas, longe da agitação festiva. Não havia nada a ser comemorado quando o vazio ainda pulsava nas veias, a perda de seu amigo, Mão de Graxa, nessa última batalha, estava cravada em seu peito. A estrada havia tomado mais um, e, dessa vez, Jack não tinha como esquecer. Depois de tantos anos, a morte era algo que já deveria estar acostumado, mas a verdade era que estava longe de aceitar perdas de pessoas próximas. Ao entrar na caverna que chamava de lar, encontrou Furiosa, sua filha adotiva, focada em seus reparos. Ela não olhou para ele de imediato, mas o silêncio entre eles dizia tudo o que precisavam.
— Não vai se juntar a eles? — Furiosa quebrou o silêncio, a voz direta, mas com a ponta de compreensão que Jack esperava. — Pelo que soube, você foi fundamental na conquista das fortalezas.
Ele hesitou, movendo-se até a bacia com água no canto da caverna. Os músculos tensos, a poeira ainda impregnada na pele. Molhou o rosto, o toque da água fria o arrancando brevemente da névoa que envolvia sua mente.
— Não — respondeu, a voz baixa, seca.
Furiosa o observou em silêncio, os olhos atentos captando o cansaço que ele se esforçava para esconder. Jack, o melhor guerreiro de Immortan Joe, raramente demonstrava fraqueza, e o fato de estar ali, afastado, indicava que algo havia se quebrado naquele confronto. Algo que ele ainda não sabia nomear. Seu olhar desceu, acompanhando o movimento tenso de seu corpo, até que percebeu o brilho escuro do sangue escorrendo de um ferimento em seu braço. Uma ferida que ele sequer mencionara, mas que agora pulsava como um testemunho silencioso do que perdera naquela estrada.
— Está machucado — disse ela, se levantando e indo até ele. — Deixe-me cuidar disso.
Ele não protestou quando ela começou a limpar o corte em seus braço. A dor física não era nada comparada ao peso que carregava dentro de si. Jack olhou para o espelho, os traços endurecidos refletidos de forma distorcida. Ali, na caverna, com a única pessoa que parecia entender o que ele não conseguia expressar, Jack sabia que a verdadeira batalha não estava nas estradas ou nas cidades conquistadas. Estava dentro dele, nos fantasmas que ele não conseguia deixar para trás. E, por mais que quisesse, essa era uma luta que ele não podia vencer sozinho.
— Perdi o Mão de Graxa. — Jack disse, sua voz seca, sem deixar transparecer a dor que ele sabia que estava lá, escondida nas profundezas.
Furiosa levantou o olhar, surpresa, mas logo seus olhos refletiram o luto silencioso. Mão de Graxa havia sido muito mais do que um co-piloto para Jack antes dela assumir esse papel — ele também a havia ensinado muito. Agora, saber que ele não estava mais presente criava um vácuo incômodo em seu peito.
— Sinto muito... — murmurou ela, sua voz saindo mais suave do que ela esperava. — Se eu estivesse lá...
— Eu teria perdido você também. — Jack a cortou rapidamente, sua voz estava pesada, mas firme. Ele suspirou, e o silêncio entre eles tornou-se denso, cheio de tudo o que não era dito. Ambos sabiam que, naquele mundo, a morte era uma certeza, mas isso não tornava as perdas menos dolorosas. Furiosa apenas assentiu, deixando o peso daquela ausência cair entre eles, silencioso, mas esmagador.
Quando ela terminou de limpar o corte com uma precisão silenciosa, se afastou depois de observar o trabalho concluído. Jack permaneceu sentado por mais um momento, sentindo o peso da jaqueta em suas mãos. Ele a vestiu de volta, o couro grosso agora familiar em seu corpo marcado pela guerra. Sua figura chegava ser imponente – não tanto pela altura ou músculos, mas pela maneira como seus ombros largos pareciam carregar o mundo sobre eles. Os traços de seu rosto, duros e esculpidos pela sobrevivência, carregavam cicatrizes que contavam histórias sem palavras, principalmente a que carregava na bochecha direita, que estava quase sumindo com o tempo, e seus olhos, um azul acinzentado profundo, pareciam sempre à beira de revelar segredos que ninguém sabia, ou de se perder em memórias que ele preferia esquecer.
Furiosa o olhou por um instante, percebendo o movimento discreto dele em direção à saída. Não precisou de muito para entender que ele estava indo embora.
— Mudou de ideia rápido? — ela perguntou, não com desconfiança, mas como quem já o conhecia bem demais para ser enganada.
Jack parou na porta por um momento, os olhos encontrando os dela brevemente, antes de desviar.
— Não vou demorar — respondeu com o tom arrastado, já cansado de suas próprias palavras. — Só preciso de algo para relaxar.
E então ele saiu, deixando a filha adotiva em meio ao silêncio que havia entre eles. Seus passos ecoaram pelos corredores de terra e metal, passando pelos tubos enferrujados que ziguezagueavam pelas paredes. Jack caminhava devagar, o peso da noite ainda nos ombros, mas sua mente já focada em outra coisa. Havia um lugar onde ele sabia que poderia deixar os pensamentos para trás, pelo menos por algum tempo. A caverna onde as mulheres aguardavam, um alívio temporário para os homens da Cidadela. Eles trocavam suas vontades e necessidades por leite de mãe e, ocasionalmente, um pouco de água. Mas Jack conseguia mais do que isso ali, muito mais. Ao chegar ao espaço pouco iluminado, avistou um dos garotos de guerra responsáveis por controlar o acesso. Ele não era tão jovem quanto os outros, beirando os trinta, com os músculos retorcidos de alguém que havia sobrevivido tempo demais sob o sol implacável e os ventos cortantes do deserto. A tinta branca marcando todo seu corpo.
— Nadine está disponível? — perguntou Jack, a voz baixa, mas firme.
O garoto assentiu rapidamente, quase ansioso para agradar.
— Está, sim. Primeiro quarto à direita.
Jack não esperou mais do que o necessário. Ele seguiu pelo caminho das escadas, o som de seus passos reverberando pelas paredes como um lembrete constante de onde ele estava. Ao entrar no primeiro quarto, a penumbra acolhedora o envolveu, e ele soube que a encontraria ali. Nadine sempre estava à espera, uma constante naquele caos. Ela não era apenas uma distração para ele, não apenas um corpo para aliviar os desejos que ele não podia permitir que o consumissem na estrada. Em troca dos favores que ela lhe oferecia, Jack providenciava mais do que a simples ração de leite e água. Ela recebia frutas furtadas, legumes raros que quase não chegavam à mesa de ninguém. Jack fazia isso sem pensar muito, era parte de um acordo silencioso entre eles. Jack entrou no quarto escuro, a porta rangendo levemente enquanto se fechava atrás dele. O silêncio envolvia o ambiente, uma calmaria que ele reconhecia como prelúdio ao que sempre buscava ali. Ele passou os dedos pelos cabelos, mas já sabia como aquilo terminaria: uma breve fuga do caos e da dor.
— Nadine?
Ele esperava ver Nadine sentada na cama, sempre à sua espera, mas o silêncio continuava. Um véu branco se destacava na escuridão, e ele se aproximou, os passos lentos, deixando seus olhos se ajustarem à falta de luz.
— Está aí há muito tempo, esperando por mim? — disse, a voz rouca, reverberando nas paredes de terra.
Nenhuma resposta. Ele se aproximou, com a expectativa de ouvir alguma resposta, talvez uma risada tímida ou um comentário sobre a guerra. No entanto, dessa vez, o silêncio era diferente. Ele estendeu a mão, tocando o tecido macio do véu e, num movimento instintivo, a envolveu em seus braços, puxando-a para perto de si. Porém, algo parecia estranho. O corpo dela estava rígido, quase como se fosse a primeira vez que alguém a tocava daquele jeito. Jack franziu o cenho, mas continuou, afastando o véu do pescoço dela. Ele pressionou os lábios contra a pele macia, sentindo o arrepio que subiu por sua espinha. Sua barba áspera raspou contra a pele dela, provocando uma leve reação, mas ainda assim... algo estava fora do lugar. Jack sentiu o corpo dela se encolher contra o seu enquanto ele beijava a pele macia do pescoço. Algo na tensão que ela demonstrava o intrigava. Ele estava acostumado com Nadine, com o conforto que a mulher geralmente lhe dava, mas dessa vez, havia uma rigidez diferente, uma hesitação que não era familiar. E o perfume, também parecia outro.
— Por que está tão tensa? — murmurou ele, com a boca ainda próxima à pele dela. Seu tom era mais suave, quase carinhoso, enquanto ele deslizava os lábios pela curva do pescoço, sentindo a pele quente debaixo dos beijos.
Ainda sem resposta. Jack franziu o cenho, estranhando o silêncio. Normalmente, Nadine já teria respondido com um comentário provocativo ou uma risada suave. Ele parou, suspirando.
— Vou acender as luzes, assim vai ficar mais confortável — disse ele, já movendo uma das mãos para o interruptor mais próximo.
— Não — a voz dela surgiu de repente, um sussurro rápido e quase desesperado, tão inesperado que o paralisou por um momento. Havia urgência naquela resposta, algo que não parecia comum. Jack hesitou, absorvendo o pedido.
"Não é Nadine", pensou, sua intuição piscando como um alerta. Mas a hesitação dela, o modo como o corpo se moldava ao dele, o fez entender de outra maneira. Talvez ela quisesse manter o anonimato. Algo em ficar no escuro parecia libertador para aquela mulher. Ele a puxou mais para perto, deixando o corpo dela pressionado contra a parede, sentindo o calor de sua pele através do tecido fino de suas roupas. Seus toques tornaram-se mais ousados, explorando o corpo dela com a familiaridade de alguém que já havia passado por momentos assim. Beijos quentes e demorados traçaram o caminho de sua pele, sua respiração se tornando mais pesada à medida que ela parecia relaxar um pouco mais em seus braços.
Mas então, enquanto seus dedos deslizavam pelos contornos do corpo dela, ele sentiu algo metálico. O toque firme de ferro o fez parar de imediato. Aquilo não deveria estar ali. Ele apertou o pedaço de ferro entre os dedos, uma corrente de realização percorrendo sua mente. Isso não era parte de qualquer coisa que Nadine usaria. Isso era... um cinto de castidade. Ele conhecia bem esse tipo de restrição. Apenas as mulheres do cofre de Immortan Joe o usavam, aquelas que ele mantinha como prisioneiras, como reprodutoras. A consciência veio como um soco.
Seu rosto se afastou do pescoço dela enquanto sua mente corria, tentando juntar as peças.
— Espera... — começou ele, sentindo o ar entrecortado por algo mais do que apenas desejo. — Você não é...
Mas antes que ele pudesse terminar, ela o empurrou com força, fugindo de seus braços em uma fração de segundo. Jack ficou parado, perplexo, enquanto ouvia os passos apressados dela ecoarem pelo corredor. A confusão tomou conta de seus pensamentos. Quem era aquela mulher? E por que ela estava lá? Jack ainda estava imóvel no escuro, processando o que acabara de acontecer. O contato metálico do cinto de castidade ainda lhe percorria a mente. Quem quer que fosse aquela mulher, ela claramente não deveria estar ali. Algo não estava certo, e sua mente rodava com perguntas. Ele suspirou, passando a mão pelo rosto enquanto dava um passo para fora do quarto, os sons abafados das comemorações ainda ecoando ao longe. Contudo, antes que pudesse fazer qualquer coisa, ouviu passos leves se aproximando por trás. Quando se virou, deparou-se com Nadine.
— Desculpe, Jack — ela murmurou, a voz suave, mas com um toque de cansaço que lhe era característico. Nadine tinha seus cabelos loiros caindo em ondas desordenadas, as sobrancelhas escuras contrastando com sua pele pálida. Ela possuía uma beleza dura, marcada pelas cicatrizes invisíveis de uma vida difícil na Cidadela. Seu corpo magro, consequência de uma sobrevivência constante, ainda mantinha uma atração inevitável, mas diferente do que havia acontecido momentos antes, Jack não sentia mais aquele desejo urgente. Ela sorriu um pouco, constrangida. — Eu estava no outro quarto, te esperando... Achei que ia demorar mais.
Jack engoliu seco, desviando o olhar por um segundo. Ele precisava disfarçar o que havia ocorrido, mas algo nele já estava distante. A confusão e o desejo pelo desconhecido que sentira momentos antes tinham esvaziado qualquer intenção que tivesse com Nadine naquela noite.
— Está tudo bem — respondeu ele, a voz mais fria do que pretendia. Seus olhos intensos, de um azul acinzentado que carregava histórias demais, encontraram os dela, e ele apenas acenou, tentando não demonstrar o turbilhão em sua mente. — Talvez outra hora. Preciso de um tempo.
Nadine notou a mudança no comportamento de Jack, mas não o questionou. Ela estava acostumada a viver de migalhas, tanto de água e alimentos quanto de afeto. Apenas assentiu, os olhos ficando um pouco mais sombrios, resignados. Jack a deixou ali, sem olhar para trás. Afastou-se rapidamente, os passos ecoando pelos corredores de terra e metal da Cidadela. Enquanto caminhava, sua mente se voltava para aquela mulher misteriosa. Quem era ela? E por que havia algo tão familiar naquele desconforto e tensão? O desejo de encontrar respostas agora queimava mais forte do que qualquer outra coisa.
══════════════════
Asteria mal havia alcançado sua cama quando seu corpo colidiu com o colchão áspero, o coração ainda acelerado e a mente turbilhonando. Ela puxou as cobertas rapidamente, ocultando-se em meio às outras parideiras adormecidas. A sensação ainda queimava em seu peito, como se cada célula sua estivesse em chamas, uma mistura de vergonha e excitação percorrendo seu corpo, especialmente entre suas pernas. Ela nunca havia sentido algo assim antes, nunca soubera que seu corpo pudesse reagir de tal maneira. E mesmo sem entender o que aquilo significava, seu corpo parecia saber. Tentou afastar os pensamentos que insistiam em retornar àquele homem no quarto escuro, mas quanto mais se esforçava, mais sua mente reproduzia o toque dele, o roçar da barba em sua pele.
Respirou fundo, virando-se para o lado, tentando encontrar algum alívio. O desejo de fuga, agora, parecia absurdo, mas ao mesmo tempo, a lembrança daquele momento — dos beijos, dos toques — a envolvia. Cedeu ao cansaço. No entanto, o descanso não durou. Um grito atravessou o silêncio, acordando Asteria em um sobressalto. Ela se sentou rapidamente, seus olhos varrendo o ambiente até encontrar a origem da confusão. Deneb, uma jovem parideira da sua idade, havia entrado em trabalho de parto. As outras mulheres se agitaram, correndo para ajudá-la e para avisar aos garotos de guerra o que estava acontecendo, enquanto Asteria permanecia imóvel, observando de longe. Ela nunca soube o que fazer em situações assim. Por isso, ficava sempre à margem, com um misto de medo e curiosidade.
— Querida, faça força o seu bebê vai sair — a Senhorita Giddy a tranquilizou, levando um pano umedecido para a testa de Deneb.
Mais uma vez, o grande portão de ferro do cofre se abriu com um estrondo. Immortan Joe entrou, seguido de seus filhos, Rictus Erectus, um gigante musculoso e de mente lenta, e Corpus Colossus, atrofiado, carregado em uma cadeira de rodas, com o corpo disforme. O Mecânico Orgânico, o médico da Cidadela, estava logo atrás. O clima no cofre mudou com a presença deles. As parideiras se calaram, os gritos de Deneb foram abafados pelo medo. Asteria se escondeu, enfiando-se debaixo de seu véu branco. O pai, que preferia ignorá-la, não deveria nem mesmo lembrar que ela existia. Melhor assim. Quanto mais distante, mais segura.
— Quanto tempo ela está em trabalho de parto? — Immortan Joe perguntou.
— Acabou de começar. — Foi tudo que a velha respondeu ao soberano.
O parto prosseguiu com gritos e gemidos. Deneb estava em agonia, e o Mecânico Orgânico tentava apressar o processo. Até que o som de um choro de bebê preencheu o cofre. Por um breve segundo, a esperança cintilou nos olhos de Deneb. No entanto, o choro cessou quase imediatamente. Asteria espiou por trás do véu e viu o bebê nos braços do Mecânico Orgânico. Uma anomalia grotesca. O recém-nascido tinha três braços, duas pernas e um único olho no centro da testa. Asteria sentiu um nó no estômago. Outra falha. Mais uma vida distorcida por conta das gerações decaídas de Immortan Joe. Mesmo através da máscara de oxigênio que usava, Asteria percebeu o semblante endurecido do pai.
— Não... — Deneb soluçou, os olhos desesperados em lágrimas. — Eu vou dar um filho saudável para você, eu prometo... Eu juro!
O Mecânico Orgânico balançou a cabeça negativamente, sem expressar emoção.
— Esta é sua terceira falha, Deneb — Immortan Joe anunciou com uma voz firme e impiedosa. — Não me serve mais como parideira.
— Por favor! Mais uma chance! — Deneb gritou enquanto os guerreiros de Joe a agarravam pelos braços, arrastando-a para fora. — Eu posso tentar de novo! Eu posso te dar um senhor da guerra!
— Leve-a — ordenou ele quando olhou para Deneb com desprezo, sentenciando seu destino.
Immortan Joe, sem se virar para ela, fez um sinal para que fosse levada. Deneb seria rebaixada ao posto de leiteira, já que seus seios estavam fartos de leite materno. Seu grito desesperado ecoou pelo cofre, mas Asteria não ousou se mover, escondida atrás do véu, observando a brutalidade de tudo aquilo. Quando Deneb foi levada, os olhos de Immortan Joe vagaram pelo recinto, e por um breve instante, pousaram sobre Asteria. O olhar dele perfurou sua alma, pesado e silencioso. Ela sentiu um calafrio, seu corpo paralisado pelo medo. O silêncio entre os dois pareceu durar uma eternidade, até que, sem dizer uma palavra, Immortan Joe se virou e deixou o cofre, levando seus filhos com ele. Asteria permaneceu imóvel por longos minutos, até que, finalmente, respirou fundo, sentindo o peso daquela troca de olhares.
O sol ainda não havia nascido completamente, mas a claridade começava a esgueirar-se pelas fendas das paredes do cofre, projetando um tom alaranjado sobre o ambiente árido. As parideiras estavam em um espaço cavernoso, que, apesar de seu propósito, parecia não mais do que uma prisão ornamentada. As pedras antigas que moldavam as paredes e o chão eram lisas, frias, e o ar estava impregnado com o cheiro de poeira, suor e o leve odor metálico do sangue. No centro da sala, havia uma pequena piscina rasa, uma tentativa fracassada de luxo em meio ao caos. A água estava morna, turva, quase estagnada, mas para as parideiras, aquilo era um alívio diante da secura do deserto que cercava a Cidadela e talvez o mundo.
As outras garotas — as cinco que haviam sobrevivido ao inferno de serem escolhidas — estavam ali, reunidas em um silêncio tenso. Toast, Cheedo, Capable, Angharad e Dag. Todas jovens, de pele clara ou dourada, marcadas não apenas pela beleza, mas também pelo medo constante. Elas sabiam o que as aguardava. Sabiam que, a qualquer momento, poderiam ser chamadas, forçadas a gerar os futuros senhores de guerra, assim como Deneb antes delas. Nenhuma delas queria isso. A ideia de dar à luz crianças destinadas a se tornarem monstros, como Rictus, Scrotus ou Corpus, era insuportável. Capable, de cabelos avermelhados, e Dag, de pele pálida, estavam sentadas próximas uma da outra, em um canto, murmurando sobre os acontecimentos da noite anterior, enquanto Angharad observava a entrada do cofre com um olhar vazio. A pressão de sua própria posição estava começando a quebrá-las. Toast, com uma expressão dura, andava de um lado para o outro, inquieta, como se esperasse que a qualquer momento o portão se abrisse de novo.
Asteria, por outro lado, havia encontrado um pequeno momento de paz. Estava sentada na borda da piscina, com as pernas submersas na água morna. Em suas mãos, segurava uma maçã — uma das poucas frutas raras que conseguira. Ao seu lado, um copo de metal com leite de mãe. Ela mordia a maçã com calma, mas seus pensamentos estavam longe. O parto de Deneb ainda rondava sua mente, junto com a sombra da noite passada. O toque daquele homem, o calor de seu corpo contra o dela. O que teria acontecido se ele não tivesse percebido o cinto de castidade? E se ela não tivesse fugido a tempo? Ela sentia o desejo e o medo colidirem em seu peito, um nó difícil de desatar. Cheedo se aproximou em silêncio, seus passos leves como uma sombra, até parar ao lado de Asteria. A garota de pele bronzeada e cabelos longos e escuros, tinha os olhos inquisidores. Ela se abaixou perto da água, observando Asteria com cautela.
— Asteria... — Cheedo sussurrou, inclinando-se ligeiramente. — Eu te vi saindo na noite passada.
Asteria sentiu o sangue gelar. Sua mão, que segurava a maçã, parou a meio caminho da boca. Ela olhou para Cheedo, tentando esconder o nervosismo, mas era inútil. O olhar de Cheedo era direto demais, e a tensão pesou ao redor.
— Não fala isso pra ninguém — Asteria pediu rapidamente, sua voz baixa, quase inaudível. — Por favor.
Cheedo não respondeu de imediato, estudando o rosto de Asteria. A água na piscina balançava levemente, o único som que as rodeava. Depois de um tempo, ela soltou um suspiro, visivelmente ponderando sobre o que fazer.
— Não vou contar. — Cheedo finalmente disse, mas havia uma advertência silenciosa em seu tom. — Mas você sabe que está brincando com a morte, não é? Se alguém descobrir...
Asteria assentiu, mas não disse mais nada. Ela sabia o risco que corria, mas por mais assustador que fosse, havia algo dentro dela que ansiava por aquele vislumbre de liberdade, aquele momento breve fora do cofre. Mesmo que, na escuridão, ela tivesse se confrontado com algo inesperado. Cheedo se levantou, deixando Asteria com seus pensamentos. O clima de tensão pairava no ar, e o futuro parecia cada vez mais incerto para todas as parideiras. Cada uma delas tinha seus próprios pesadelos, seus próprios medos sobre o que seria delas, mas, naquela manhã, todas compartilhavam o mesmo sentimento: a expectativa sombria de serem as próximas a carregar o fardo de Immortan Joe.
══════════════════
A reunião na sala de guerra de Immortan Joe era um encontro constante para tomada de grandes decisões. As paredes de metal enferrujado e as vigas expostas faziam o ambiente parecer sufocante, e o calor do deserto vazava por cada fenda da estrutura colossal que era a Cidadela. Immortan Joe usava sua máscara respiratória, sentado no trono improvisado de ossos e metal, sua presença dominava toda a sala. Diante dele, seus filhos estavam reunidos, Ríctus Erectus, Corpus Colossus e Scabrous Scrotus, com seus olhos ansiosos e temerosos. Naquele momento, havia um problema que ninguém ousava ignorar, mesmo que o ambiente estivesse tenso com as discussões sobre as ameaças externas. As gangues do deserto estavam se unindo, famintas pelo poder que Immortan Joe controlava. O domínio dele estava em risco, e os ataques que vinham das dunas se tornavam cada vez mais frequentes. Porém a ameaça maior estava ali, no coração de sua fortaleza. Seus filhos. Seus herdeiros.
Immortan Joe sabia que o tempo era cruel. O que ele construiu estava começando a desmoronar, não pelas gangues, mas por causa da fraqueza de seu próprio sangue. Seus filhos eram deformados, limitados, suas vidas curtas e seu vigor, questionável. Ríctus Erectus era forte, mas tolo. Corpus Colossus era frágil e deformado. Scabrous Scrotus, embora mais saudável, era instável e sanguinário demais, um guerreiro sem controle. Não havia herdeiro à altura de Immortan Joe para continuar seu legado.
— Precisamos de mais herdeiros. — Immortan murmurou, sua voz rouca, distorcida pela máscara. — Precisamos garantir que a Cidadela tenha sangue forte.
— Nenhuma das últimas esposas tem gerado bebês saudáveis — disse Corpus Colossus, sua voz arrastada, o corpo debilitado movendo-se com dificuldade. Ele fez uma pausa, olhando para o pai. — Mas você tem mais do que elas, pai. Você ainda tem a Asteria.
A menção do nome da filha fez com que o ar na sala ficasse ainda mais pesado. Asteria, a filha escondida no cofre das parideiras, saudável, forte e... intocada. Immortan Joe franziu a testa, os olhos escuros por trás da máscara analisando Corpus. Os outros filhos reagiram de formas diferentes. Ríctus Erectus, com seu imenso físico, deu um passo à frente, a excitação óbvia em sua expressão primitiva.
— Eu posso me casar com ela, pai — Ele disse, a voz grave e cheia de determinação. — Nós geraremos filhos fortes, saudáveis!
— Seu burro! — Scabrous Scrotus o interrompeu, com um tom de desprezo. Ele deu um passo brusco na direção de Ríctus, batendo a palma da mão contra o peito do irmão. — Relação entre parentes gera crianças deformadas. O que você acha que vai acontecer? Que vamos acabar com outra versão sua? Ou algo ainda pior?
Ríctus, embora forte, não era conhecido por sua inteligência, e a observação de Scrotus fez seu rosto se contorcer em raiva confusa. Ele deu um passo ameaçador na direção do irmão, mas Immortan Joe levantou a mão, impondo silêncio. A tensão entre os irmãos era um reflexo da decadência iminente de sua linhagem, e Immortan Joe sabia disso melhor que qualquer um ali.
— Basta. — Sua voz cortou o ar, fria e autoritária. Os dois filhos pararam imediatamente, e o silêncio recaiu sobre a sala. Immortan Joe ficou em silêncio por um momento, seus pensamentos vagando. Asteria. Ela era diferente. Ela poderia ser a chave para o futuro da Cidadela. Mas não com um de seus filhos. Não com o sangue doente que ele já carregava.
Immortan Joe varreu a sala com os olhos, analisando cada um dos homens presentes. Nenhum deles parecia digno o bastante. Ele precisava de alguém forte, alguém que fosse saudável, mas que também fosse leal. Um guerreiro capaz de proteger a Cidadela, de defender seu legado e gerar filhos poderosos com Asteria. Então, a porta da sala se abriu, revelando um dos seus pretorianos. Jack, entrou acompanhado de Furiosa, ambos prontos para a missão do dia. Jack era o guerreiro mais formidável da Cidadela, o mais confiável, imponente e saudável. Seus passos firmes e postura altiva não passavam despercebidos, e Immortan Joe sentiu algo se alinhar dentro de si. Era óbvio.
— Ele. — Immortan Joe falou, os olhos fixos em Jack, que havia parado diante do trono, esperando ordens. Todos na sala se viraram para observar. — Pretoriano Jack.
Jack ergueu os olhos, confuso por um breve momento, seus olhos azuis penetrantes encontrando os de Immortan Joe. O silêncio na sala era absoluto. Furiosa, ao lado dele, observou atentamente, mas manteve-se em silêncio. Joe se inclinou um pouco mais em seu trono, olhando fixamente para o guerreiro.
— Você se casará com minha filha. Asteria. — A voz de Immortan Joe soou como uma sentença definitiva. — E garantirá a continuidade do meu legado.
O silêncio na sala ficou ainda mais espesso com a declaração de Immortan Joe. Jack, que estava acostumado a ordens claras e missões perigosas, se viu momentaneamente perdido. Casar com a filha de Joe? A informação atingiu sua mente como um soco no estômago, e por um breve instante, ele achou que tivesse entendido errado. Immortan Joe tinha uma filha? Ele sequer sabia da existência dela mesmo trabalhando para ele por todos esses anos, muito menos uma capaz de se casar. Asteria. O nome dela ecoou em sua mente enquanto ele mantinha o rosto impassível, sem dar sinal algum do caos que começava a fervilhar por dentro.
Jack forçou-se a respirar lentamente, mantendo a postura rígida e profissional que sempre o definira. Sabia que questionar Immortan Joe na frente dos outros seria perigoso, talvez até fatal, mas sua mente não parava de processar aquela nova realidade. Uma filha escondida, uma mulher presa, uma peça chave na continuidade de Immortan Joe, que agora ele era obrigado a... se casar. Ele era um guerreiro, moldado para a estrada, para a guerra e o comando dos homens. O que ele sabia sobre casamento? Sobre... herdeiros? Nada.
Seu olhar desviou por um segundo, tentando captar qualquer reação de Furiosa, que permanecia ao seu lado. A expressão dela estava tão firme quanto a dele, mas havia algo nos olhos dela. Algo que ele reconheceu como alerta. Ela sabia o que estava por vir, talvez mais do que ele próprio. Por dentro, a confusão continuava a crescer. Por que eu? Jack se perguntava, mesmo já sabendo a resposta. Ele era o guerreiro mais forte e saudável da Cidadela. Mas essa era a única razão? A única justificativa para entregá-lo uma responsabilidade tão... pessoal? Ou havia mais por trás disso? Sua mente, sempre tão clara em batalha, estava nebulosa agora. Ele sentiu um nó formar-se no estômago, uma mistura de dúvidas, medo e uma sensação de que, qualquer que fosse o rumo das coisas, sua vida jamais seria a mesma. Talvez ele nunca tivesse uma escolha. Não na estrada, e nem sob as ordens de Immortan Joe.
— Você entendeu, Pre-Jack? — A voz rouca de Immortan Joe cortou o silêncio, como uma lâmina afiada.
Jack assentiu lentamente, mesmo sem ter certeza se realmente entendia o que estava acontecendo.
— Sim, meu senhor. — A voz saiu firme, mas por dentro ele lutava para organizar seus pensamentos. Um filho. Um casamento forçado. O que ele teria que fazer para cumprir essa nova ordem?
Joe o observou por alguns segundos, sua máscara abafando os sons da respiração.
— Asteria é a chave para garantir nosso futuro. — Ele continuou, a voz mais controlada, mas carregada de um significado maior do que Jack poderia processar naquele momento. — E você vai garantir isso.
O guerreiro manteve o olhar fixo em Joe, seu rosto uma máscara de obediência, mas dentro de si, o turbilhão de dúvidas apenas aumentava. Ele não ousava falar, não ousava questionar. Mas por dentro, a confusão se expandia como um deserto inexplorado. Antes que qualquer outra palavra fosse dita, Jack sentiu o peso da sala aumentar, como se todos ali estivessem à espera de sua resposta. Mas, o que dizer? O que fazer? Ele não podia recusar, sabia disso. E ao mesmo tempo, não conseguia aceitar completamente o que estava sendo imposto a ele. Sua mente lutava entre as obrigações de um guerreiro leal e o desconforto crescente que vinha com a ideia de um casamento forçado, um herdeiro, e a figura oculta dessa filha, uma desconhecida para ele até aquele momento.
— Então está decidido. — Immortan Joe finalizou, a voz cortante, encerrando o assunto sem qualquer espaço para questionamentos. Ele olhou para os filhos, depois para a sala, decretando — Preparem-se. O casamento será em dois dias.
Jack não moveu um músculo, seu corpo se encontrava tão rígido quanto uma estátua, mas sua mente estava em um turbilhão. Era como se o mundo ao redor estivesse se desfazendo, pedaço por pedaço, e ele estivesse ali, no olho da tempestade, incapaz de escapar. Ele apertou os punhos levemente, sentindo o suor começar a brotar nas palmas. Precisava processar aquilo. Precisava sair dali. Quando Immortan Joe se virou, a sala começou a se esvaziar. Os outros filhos, ainda discutiam entre si. Jack permaneceu imóvel por alguns instantes, lutando contra a confusão interna. Por fora, ele ainda era o guerreiro forte que todos conheciam, mas por dentro, tudo parecia estar desmoronando. Enquanto ele dava um passo para sair da sala, seu olhar se encontrou com o de Furiosa, por um instante breve, mas significativo. Havia compreensão ali, e talvez algo mais. Ele não estava sozinho, mas o peso da responsabilidade, do que estava por vir, o esmagava.
E assim, Jack deixou a sala, a mente carregada, o destino traçado, sem saber ao certo como ou quando as peças desse jogo mortal começariam a cair. Mas sabia de uma coisa: sua vida nunca mais seria a mesma.
Atualizações da fanfic devem acontecer todo domingo alternadamente, espero que tenham gostado desse capitulo, essa fanfic promete muita emoção. Comentários são ótimos para me motivar a escrever, então espero que tenham gostado .
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro