𝐂𝐀𝐏𝐈𝐓𝐔𝐋𝐎┊𝟎𝟏𝟖
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BOSTON
DOIS ANO DEPOIS
Antes que pudesse enviar o documento que tinha em mãos para a edição final, Amara o leu mais uma vez. A entrevista com Jessie Eden fora melhor do imaginava. O ponto de vista da jovem revolucionária continuava mais inspirador do que antes. Agora que o direito ao voto feminino havia chegado aos Estados Unidos, muitas mulheres começavam a se importar mais com a política e reivindicarem por seus direitos nas fábricas e grandes empresas — fazendo barulho suficiente para serem ouvidas. Com isso, o Pacific Modern Diary havia ganhado força, sendo o principal jornal que dava visibilidade a essa luta como deveria. E em um ano, recebido prêmios e desbancado a concorrência que duvidava do seu potencial.
O jornal arrecadou fundos para ações de caridade e adquiriu reconhecimento suficiente para ser distribuído por boa parte do país. Esse foi o ponto crucial para abrirem uma nova editora em Boston — que se tornou a principal sede para o veículo de comunicação de pensamentos modernos. Amara estava orgulhosa por ver seu sonho reconhecido, principalmente por ser o primeiro jornal onde setenta por cento dos funcionários era composto por mulheres espalhadas pelas mais diversas funções. Richard também via seus negócios e lucros triplicarem, sabendo que apostar na garota de pensamento grandes fora seu maior investimento.
Amara fechou um botão do terninho branco que usava. Uma das vantagens de se tornar Diretora Executiva era não ser julgada pelas roupas modernas que insista em usar ou de afrontar a política com suas ideologias. Todos os prêmios e menções honrosas que havia ganhado em dois anos, mostrava muito bem que ela sabia seu lugar fala e não tinha medo de fazer isso. Amara estava ciente que muito em breve novos problemas começariam se forma no mundo e quem sabe, coubesse-lhe abrir o olho da população ainda cedo e prevenir grandes perdas. Satisfeita com a entrevista de Eden, desceu as escadas, passando por um grupo de mulheres que se reuniam para fumar na hora do almoço em um espaço reservado para isso. Escutava os saltos ecoarem pelo corredor adornado de quadros com os primeiros registros do jornal, até chegar na sala de redatores.
— Sra. Flynn. — Ouviu ser chamada. Amara parou no meio do caminho se virando para a nova funcionária. — Os entrevistadores da revista Modern chegaram. Estão aqui pois querem saber sobre seu livro.
— Diga para me esperarem na minha sala. — Ordenou.
Amara girou os calcanhares novamente para a sala de redatores. Em pouco menos de um ano conseguira publicar o primeiro livro, e embora tivesse alterado um pouco os reais objetivos com todas as pesquisas que conquistara em Birmingham, utilizou o que tinha para dar vida para Kevin Mooney e todo seu poder. O Império de Mooney ganhara não só fama entre os poderosos com um protagonista de mente brilhante, mas também servira para abrir os olhos de que ganância e poder em excesso também levavam à ruína. Amara se sentia satisfeita em saber que fizera um bom trabalho e principalmente que um livro escrito por uma mulher havia caído no gosto de muitos — na maioria, homens.
De volta ao escritório, se deparou com dois jovens homens. Enquanto um segurava uma máquina fotografica, outro tinha um bloco e caneta em mãos. Eles sorriram para a mulher, trocando um rápido aperto de mãos. Ambos eram jovens, talvez não tivessem pouco mais que vinte e cinco anos, possuíam uma beleza singular e boa aparência. Amara indicou duas cadeiras para se acomodarem, enquanto caminhava a sua, logo à frente do próprio autorretrato.
— Chegaram mais cedo do que eu esperava. — Disse ela ao se sentar. Relaxou as mãos na mesa, em uma postura quase invejável.
— Não poderíamos desperdiçar nenhum momento com a senhora. — Disse. — A propósito, me chamo Brandon West e esse é o Charles Hook, o fotógrafo da revista. — Se apresentou, indicando para o colega logo depois. Amara abriu um sutil sorriso para os homens.
— Então, o que tenho para responder? — Perguntou.
Brandon pigarreou, colocando a caneta sobre o bloco de notas. Um pouco daquele jovem entrevistador lembrava a própria Amara durante o tempo de estágio na universidade de jornalismo. Entendia principalmente o nervosismo do homem, ou talvez, a presença autoritária dela naquela sala os incomodasse. Sabia que mesmo que tivesse alcançado tanto sucesso e respeito, ainda incomodava as mentes masculinas fechadas, principalmente aqueles que não acreditavam tanto em potenciais femininos. Estudou minuciosamente o jovem, aquele não era o caso dele. Brandon estava apenas nervoso, talvez fosse a primeira entrevista que estava fazendo. Ela sorriu quando ele ergueu o olhar.
— Primeiro, gostaria de parabenizá-la por se tornar uma referência para as mulheres, seu jornal tem se tornado renomado e indicado em muitos lugares. É bom ver que podemos ver e conhecer a política de uma forma, digamos, menos chata que a de costume. — Sorriu nervoso. Passou a mão pelo cabelo escuro e bem penteado, exibindo um riso de dentes alinhados. — E segundo, por seu livro. O Império de Mooney tem sido bastante comentado, principalmente por ter um protagonista tão...
— Engenhoso. — Amara completou.
— Sim, sim. — Confirmou, rabiscando no bloco de notas. — Confesso que não esperava me deparar com um livro tão verdadeiro. A forma como você descreve a vida do Kevin é quase como se o conhecesse pessoalmente. Quem ou o que deu a você essa inspiração?
— Kevin é a personificação do que chamamos de ambição. E quem não tem isso, não é verdade? — Disse Amara. Passou o dedo no queixo, elaborando as próximas palavras. — Eu tinha em mente algo diferente do que foi para o livro, mesmo assim, consegui passar o que realmente queria. Penso que ele se tornou conhecido por mostrar para os grandes investidores como realmente funciona o mundo dos negócios, sendo eles justos ou não. Dinheiro é dinheiro.
— Além disso, você mostrou a evolução de um homem que saiu da vila de ciganos para o mundo dos negócios, se tornando inclusive dono de fábricas de autopeças. Acredita que as pessoas da realidade também são capazes de conseguir o mesmo sucesso?
— Se tiverem determinação, e claro, ajuda certa, tudo é possível. — Disse ao se encostar na cadeira. — Kevin Mooney não conseguiu tudo que quis de uma hora para outra, ele lutou e deu sangue por absolutamente tudo que conquistou. As coisas no mundo real não diferem, temos uma luta diária. Eu, por exemplo, não cheguei tão facilmente onde estou. E se não tivesse a ajuda certa, com certeza não estaria aqui conversando com você.
— Ouvimos falar sobre seu progresso no mundo das notícias. Richard Abbott é seu sócio no jornal. Como começou essa amizade? — Perguntou, curioso.
— Achei que entrevista era sobre meu livro e não sobre meus negócios com o Richard, mas compreendo que todos ficam curiosos para saber que tipo de relação levamos. — Amara mudou o tom de voz. Agora estava mais séria, não gostando tanto do rumo da conversa. — A única coisa que cabe a vocês saberem é que Richard e eu temos um bom e puro relacionamento. Ele me ajudou quando eu precisava. Acreditou em mim quando ninguém mais acreditava. Eu sou grata a ele de muitas formas.
— Em nenhum momento quis insinuar outra coisa, percebo como o Sr. Abbott é carinhoso em mencionar seu nome nas entrevistas. — Comentou. Amara cruzou as pernas, mordendo o canto interno da boca.
— Richard é o mais próximo que tenho de um pai. — Disse, sincera. — E sobre meu livro, algo mais que queiram saber?
— Sim, claro. — Brandon limpou a garganta. — Mas antes, queremos uma foto sua para a posteridade.
— É claro. — Amara disse.
Enquanto se arrumava na cadeira para a fotografia, pensou em tudo que conquistara graças a Richard. Ele realmente era um anjo em sua vida, acreditou nela quando outras pessoas a diminuíram. O Sr. Abbott era um homem sincero e gentil, nunca a desrespeitou ou insinuou ideias imorais. Richard era a prova que pessoas boas ainda existiam. A parte ruim era saber que com o passar do tempo, sua doença se agravava e diminuía um pouco mais do brilho do seu olhar. O flash da câmera trouxe Amara novamente para realidade.
— Por escrever um livro diferente do que as pessoas esperavam de costume, trouxe algum problema? Como reagiu às críticas?
— Transformando as palavras ruins em boas. — Respondeu sutilmente. — Nem mesmo sendo patrocinada pelo poderoso Richard Abbott me livrou de ser julgada. As pessoas esperam que mulheres escrevam romances, e eu não vejo qualquer problema nisso. Mas quantas não tiveram que criar pseudônimos masculinos para que seus livros fossem levados a sério? Estamos em um tempo de revolução. Eu sou uma pessoa realista e fui sincera em cada palavra daquele livro e não me importo com críticas negativas, desde que sejam feitas por pessoas que saibam o que estão falando.
— Alguns críticos foram bem brutais quando você estava começando, e eu me refiro a tudo. — Comentou. Amara sorriu de lado.
— É, eu já esperava por isso. — Deu de ombros. — Inclusive no começo do Pacific Modern Diary as pessoas faziam comentários grotescos sobre mim, não me davam a real credibilidade e eu mostrei da maneira mais cordial que era merecedora de tudo. Meu jornal é comandado por uma ampla equipe de mulheres. É lido em mais de vinte e quatro estados e o meu livro está quase se tornando um best-seller.
— Como acha que seu livro vai ser recebido fora do país? Soube que tem assinado com editoras de outros países.
— Suponho que vai causar impacto em certas pessoas. — Amara desviou o olhar para as mãos, apertando alguns dos anéis de ouro que usava. — Espero que sirva de aviso para algumas delas.
— Tenho certeza de que conseguirá tudo isso. — Disse sincero. — Sra. Flynn, sei que fez uma certa fortuna ao longo dos anos. Obviamente sei que você deve aproveitar bem seu dinheiro.
— Tenho um fundo solidário destinado para crianças órfãs e pretendo abranger mais instituições carentes e outras ações filantrópicas. Minha amizade com Jessie Eden me mostrou ainda mais que devemos ajudar aqueles menos favorecidos e deixados as margens da sociedade. Também tive ajuda de Richard para controlar tudo que ganhava, investindo em imóveis e em meu próprio livro. Eu gosto de dinheiro como qualquer outro ser humano, mas também gosto de levar uma vida sossegada. Não há nada melhor do que pegar meu carro e viajar para minha fazenda e cuidar dos meus cavalos.
— Gosta de cavalos? — Perguntou.
— Desde criança, me sinto conectada a eles, é difícil de explicar. — Sorriu levemente. — Deve saber que Richard é também proprietário de um dos maiores hipódromo de Boston e tem cavalos maravilhosos, ele também financia corridas. Ele me inspira a entrar para essa vida. Suponho que terei muito sucesso e acredito muito no potencial dos meus cavalos.
— Bem, desejo sorte caso realmente entre para esse ramo. — Brandon disse. — E uma última pergunta para encerramos: você pensa em se aposentar cedo?
— Aposentar? — Amara sorriu. — Esse ainda é um pensamento distante. Vim de muito longe para pensar em tirar férias tão cedo. Eu amo o que faço e ainda sou jovem o suficiente para conseguir mais. Um pouco da personalidade de Kevin Mooney vem de mim também. Sou uma pessoa objetiva e quando quero algo, corro atrás dela até o fim. Meu império só está começando. Quero que o mundo inteiro me conheça. Assim como quero que meu nome fique na história.
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ALGUNS DIAS DEPOIS
Amara retirou os saltos apenas para sentir a grama macia debaixo dos pés. Como de costume, fez o caminho para o jardim. Aos fins de semanas, optava por passar o dia com o Sr. Abbott, visto ser sua única melhor companhia naquela cidade. Amara não se cansava de apreciar aquela mansão, onde colunas de marfim davam um toque sofisticado ao lugar, lembrando-a vagamente os antigos templos gregos. Adentrou em uma pequena trilha de pedras, sorrindo vagamente ao ser recebida por pequenas borboletas. Era como entrar em um pequeno conto de fadas. Richard contara que a falecida esposa, Alice, decorara toda a mansão. Ainda que o lugar se encontrasse em meio ao centro de Boston, uma área verde era bem preservada e plantas exóticas enchiam os olhos com toda a beleza.
Ao longe, o avistou. Richard parecia distraído ao alimentar os peixes que viviam em uma espaçosa fonte. Amara deu passos cautelosos, desviando o olhar para uma mesa logo à frente, onde alguns jornais estavam revirados.
— Amara Flynn, Diretora Executiva do Pacific Modern Diary, não abre mão de uma vida mais simples, embora não renuncie a admiração de toda sua fortuna. — Richard disse alto. Amara revirou os olhos com o comentário, sabendo que aquelas palavras vinham da última entrevista publicada.
— Eu posso gostar das duas coisas. — Respondeu em bom-tom.
Richard sorriu de lado. Encarou a jovem mulher.
— Eu concordo. — Disse.
Amara deu um passo para frente. Sentou-se à beira da fonte e passeou a mão pela água cristalina. Algumas carpas se assustaram com o movimento, nadando mais depressa. O cardume vermelho enchia os olhos. Richard deixou o pequeno saco de ração acima da mesa e guardou os documentos espalhados em uma única pasta.
— Eu li sua entrevista para a revista Modern.
— E o que achou? — Amara o encarou.
— Que sempre vão envolver meu nome até quando não faço parte da entrevista. — Richard sorriu.
— Eu já estou acostumada. — Amara sabia que seu nome sempre iria aparecer vinculado ao de Richard. Pelo que parecia, era mais fácil ligá-la a um homem do que aceitar a ascensão feminina de forma independente. — É difícil para as pessoas entenderem o que temos.
— Eu não me importo com o que essas pessoas pensam. — Richard se virou para Amara. — Me ajude com isso, por favor. — Pediu.
Amara puxou algumas pastas, se questionando o motivo de Richard trabalhar até nos dias que deveria ter folgas. O homem deu um passo largo, mas parou rapidamente. Amara se adiantou, se preocupando com o estado do Abbott. Richard deu um leve sorriso, demonstrando estar bem. Voltou a caminhar lentamente pela trilha que o levaria para dentro de casa.
— Como você se sente? — Amara perguntou. Não soube disfarçar o tom preocupado.
Em alguns meses Richard piorara, o câncer parecia tomar de conta rapidamente do corpo dele. Não importava o quanto os médicos pedissem repouso para o homem, ele não pararia as pesquisas, principalmente sabendo que seus dias estavam quase contados.
— Todos aqueles remédios. — Falou, ofegante. — Todas aquelas consultas e médicos falando como devo me comportar me deixam mais doente.
— É para o seu bem, Richie. — Amara disse logo atrás. Richard dispensou o comentário com um leve aceno, igual uma criança teimosa. Não demorou para que chegasse ao escritório, o lugar preferido de Amara.
Richard contava com uma ampla biblioteca particular. O cheiro dos livros enchia os pulmões de Amara, fazendo-a sentir-se em casa. Um globo terrestre tomava de conta do centro do escritório. Amara já havia perdido a quantidade de vezes que fizera uma viagem a outro país sem sair daquela sala. Quando deixou a pilha de papéis acima da mesa, voltou para o globo, girando-o até parar na América do Sul. Talvez um dia fizesse uma visita ao Brasil e conhecesse pessoalmente a maravilhosa Amazônia.
Richard suspirou cansado, estava um pouco indisposto naquele dia. Ainda assim, continuou a pesquisar e só parou quando sentiu os miolos esquentarem. Sua atenção se prendera a um papel, o começo de um desenho da jovem Alice, sua falecida esposa. Desenhar era seu hobby e mesmo que não tivesse o punho tão firme agora quando na juventude, ainda se agradava dos traços que fazia no papel. O rosto maduro ergueu-se para o meio da sala, observando a jovem jornalista distraída enquanto passeava o olhar pelo enorme globo terrestre. Amara havia evoluído muito em poucos anos, no entanto, Richard esperava que ela apreciasse mais o lado prazeroso da vida do que se afundar em meio a tanto trabalho, como ele fizera por muito tempo.
— Já ouviu a história da lamparina? — Richard perguntou.
— Não. — Respondeu ela.
— Uma lamparina cheia de óleo gabava-se de ter um brilho superior ao do Sol. — Iniciou, dando passos lentos até Amara. — Até que um assobio, uma rajada de vento e ela apagou-se. Acenderam-na de novo e lhe disseram: Ilumina e cala-te. O brilho dos astros não conhece o eclipse.
— E o que isso quer dizer? — Amara franziu o cenho. Richard parou ao lado dela, segurando o rosto feminino com uma única mão.
— Que o brilho da vida gloriosa é bom, prazerosa, mas não podemos deixar que elas nos encham de orgulho. — Explicou. — Nada do que adquirimos nessa vida, nos pertence de verdade.
— Não vou deixar o poder subir para minha cabeça. — Amara se afastou. — Finalmente estou tendo tudo que sempre quis. Conquistei coisas que jamais pensei em ter e você me ajudou muito e me ensinou muita coisa.
— E eu sei e tenho orgulho disso. — Richard descansou as mãos no bolso da calça. — Você é a filha que eu não tive, e como um pai, quero que tenha uma vida plena, mas me preocupo com sua saúde mental. Eu perdi muito tempo preso em escritórios e trabalhando, não quero que faça o mesmo com sua vida.
— Eu estou bem, Richie. — Ela deu um passo para frente. — E eu gosto de trabalhar, não vou me cansar disso.
— Você e sua teimosia. — Disse ao apertar a fonte do nariz. — O Andrea tem falado de você.
— Falar é o que ele mais gosta de fazer. — Amara se recordou do jovem advogado.
Andrea Mancini era italiano e dono de um grande ego. Em alguns momentos, Amara se pegará admirando-o nas reuniões. No entanto, sabia que o homem escondia algo atrás dos intensos olhos escuros. Isso a mantinha sempre cautelosa, até quando a outra parte do subconsciente dela pedia para fazer o contrário.
— Vocês trabalham bem juntos.
— Ele trabalha bem para você. — Disse ela. — Andrea tem dificuldade em ouvir o que tenho a dizer.
— Talvez ele esteja encantado por você, sei que está solteiro.
— Eu acredito que não. — Amara balançou a cabeça em negação. — E eu não quero me envolver com ninguém.
— Tudo bem, eu não vou dar uma de cupido. — Disse, humorado. — Eu estou me sentindo um pouco cansado, será que pode ler para mim?
— É claro. — Amara deu um passo para a estante de livros. — Alguma preferência?
— Só me leve para longe... — Pediu ao se deitar no divã.
— Que tal Moby Dick?
Richard acenou em silêncio. Amara se preparou para a leitura. Alguns segundos depois, o Abbott se permitia viver uma grande aventura em alto mar, velejando na suave voz aveludada de Amara.
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SEMANAS DEPOIS
Uma das características mais marcantes de Boston são os dias curtos devido ao inverno rigoroso. Amara já havia se habituado à nova cidade, sabendo que durante os meses mais gelados o sol se põe ainda cedo. Pela janela do carro espiou a paisagem de prédios de concreto darem espaço para algo mais selvagem. Há alguns meses havia comprado uma nova casa, longe do centro e caos da cidade, um lugar mais calmo onde pudesse se sentir mais próxima da natureza. Com o tempo, sentia as memórias de onde tinha realmente vindo se dispensarem, como se gradualmente sua mente absorvesse aquelas lembranças como fruto de um sonho. Viver naquele século não era fácil, mas Amara não sentia mais vontade de voltar para o século vinte e um, não após ter conquistado tanta coisa. Além disso, procurar pelos antepassados não havia caído em seu esquecimento, mas devido a outros fatores mais importantes, deixou de lado a busca sobre sua linhagem.
Amara sorriu para o chofer quando a porta ao seu lado foi aberta, adentrando em casa antes que congelasse do lado de fora. Com os pés descalços, retirou cada peça de roupa enquanto subia os degraus que a levariam para o andar de cima. A mansão estava silenciosa, mas sabia que isso seria passageiro. Horas depois, quando ouviu vozes vindo do andar de baixo, sentiu a alegria transbordar em seu peito. Vestiu um robe vermelho, descendo as escadas novamente tão depressa quanto subirá. A primeira pessoa que notou foi a jovem adolescente de rosto bem-feito. Sarah completara quatorze anos há poucas semanas, e mudado drasticamente após isso. Suas feições estavam mais afiadas e bonitas, abandonando o rosto infantil, mesmo que o eterno riso cativante ainda estivesse presente nos lábios bem desenhados. Amara sabia que ela se tornaria uma mulher tão bela quanto Ariana, assim como possuía uma língua ainda mais afiada que a da irmã. A adolescente sorriu, dando passos largos até a escada e envolvendo Amara em um abraço apertado.
— Feliz Dia de Ação de Graças. — Disse de modo animado.
— Feliz Dia de Ação de Graças. — Amara desejou de volta, se afastando da garota para encarar suas outras visitas.
Ariana abriu os braços, esperando por um abraço quente e apertado o suficiente para matar a saudade que sentia. Era como se os anos tivessem se passado entre elas desde o último mês que se viram. Ambas seguiram seus respectivos caminhos, mantendo contato e comemorando datas especiais juntas quando podiam. Torcendo uma pela outra, mesmo a distância. Embora faltassem alguns anos para Ariana se tornar oficialmente médica cirurgiã, a mulher saída de Birmingham sabia ter um futuro promissor.
— Meu Deus, eu não vou me acostumar nunca com esse clima frio de Boston. — Ariana comentou ao se afastar da amiga.
— Você se acostuma com isso depois que passar a morar na cidade. — Amara disse. Desviou o olhar para o belo homem que estava logo atrás de Ariana.
Amara bem se lembrava de Lowry ter citado tal companhia na última ligação que fez. Ariana estava provando que deixara de vez Birmingham para trás, inclusive, antigos amores. Em poucos anos começara a namorar um homem justo. Nicholas Hathaway era seu professor, além de um renomado médico-cirurgião. Ele era jovem para às duas profissões que tinha, e somente pelo olhar que dava a Lowry, mostrava o quanto estava apaixonado pela futura médica cirurgiã. Nicholas era dono de uma beleza perigosa e possuía riso sedutor.
— Você deve ser o Nicholas. — Amara caminhou até o homem.
— E você a grandiosa Amara Flynn. Ariana não cansa de falar de você. — O sotaque britânico era forte e envolvente. Nicholas exibiu um riso quase tão brilhante quanto os fios castanhos e bem alinhados na cabeça.
— É mesmo? E o que ela diz sobre mim? — Amara encarou a amiga.
— Será que podemos conversar enquanto comemos? — Sarah tomou atenção dos adultos. Alguns hábitos jamais mudariam na garota.
— Podem ficar à vontade, eu irei me trocar para jantarmos. — Amara disse.
— O Richard não vem? Ele sempre comparece nos feriados. — Ariana perguntou.
Quando conheceu Richard, meses depois da inusitada ideia de fazer um jornal, entendeu o motivo de Amara se sentir tão bem perto dele. Richard tinha um jeito especial de tratar as pessoas à sua volta. O Abbott era maroto e possuía um vasto conhecimento, não se poupando de compartilhá-lo com outros. Ariana gostava da companhia do homem, assim como Sarah que ganhava sempre balas de outros países dadas por ele.
— Ele não me disse nada, mas espero que sim. — Amara respondeu. Sentiu um pequeno vazio preenchendo o peito. A essa altura, esperava que Richard encontrar-se bem onde quer que estivesse.
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BIRMINGHAM
O líquido dourado e amargo atingiu o estômago de Thomas calorosamente, queimando-o de dentro para fora. Aquilo serviu para lembrá-lo que seus novos conflitos estavam começando e que a explosão do pub, a mando dos irlandeses, era só o início do que ainda viria a seguir. Após encarar os desaforos da rebelde irmã mais nova e, recém-viúva, teve que aturar os da família que ainda insistia em duvidar do seu poder. Tudo que Thomas queria era respirar fora dos problemas que tinha, mas talvez, nem aquele uísque irlandês conseguisse tal efeito. O pub localizado em um porão lhe dava agonia, mas estava longe o suficiente de casa e livre para pensar sobre como reagiria com as novas expansões. A época de fome na Inglaterra havia tornado tudo mais difícil, menos para os negócios da família Shelby. Pelo menos nisso, eles estavam indo bem.
— Tem algum demônio dos Peaky Blinders aqui? — Uma voz fina despertou Thomas dos pensamentos. Seu olhar se prendeu no alto de uma escada, onde um garoto pequeno olhava atento para cada rosto daquele pub.
— Dia de sorte, garoto. — Thomas deixou o copo sobre o balcão. — Encontrou o diabo em pessoa.
— Tenho uma mensagem para você, Shelby. — O menino disse atrevido.
Thomas ergueu as sobrancelhas, esperando pela resposta. O garoto subiu novamente as escadas com passos barulhentos. Thomas bufou, tendo que ir atrás da criança. Parou segundos depois em um beco estreito, quando finalmente conseguiu alcançar o menino.
— Quem mandou você? — Thomas perguntou. O garoto estendeu uma mão, vazia, esperando por algo.
Um suspiro furioso saiu das narinas do Shelby, que deixou uma moeda em troca da informação. O garoto encarou o tostão, mostrando a outra mão para o Peaky Blinders, nessa continha um bilhete. Thomas apanhou o papel, lendo o endereço escrito. Nenhuma assinatura, assim como o garoto que sumira antes que Thomas questionasse por mais alguma coisa. As noites mal dormidas e os sonhos sem nexos que vinha tendo estavam começando a fazer sentindo agora. Thomas sabia que seu novo inimigo estava perto, bem mais do que ele esperava.
O caminho feito até um simples restaurante o intrigou, imaginando quem realmente o aguardava naquele lugar. Thomas deu passos para dentro, guiado em seguida para a mesa onde deveria encontrar alguém. O lugar ainda vazio o deixou incomodado. Thomas imaginou quem possivelmente estaria fazendo aquilo em público, sabendo muito bem que o Shelby não poderia fazer nada na frente de tantas pessoas. Encarou a taça com água a sua frente, em seguida checou o relógio de bolso. Talvez comparecer naquele encontro não tenha sido uma boa ideia.
— Espero não o ter deixado esperando muito. — Ouviu dizer. Thomas travou o maxilar. Encarou pessoa que se sentava à sua frente, com um olhar tão frio e vingativo do que ele realmente esperava encontrar.
— Grace. — Murmurou o nome com força, quase entredentes. A mulher sorriu de lado, arrumando o pequeno chapéu verde musgo bem colocado acima dos fios dourados.
— Thomas Shelby, parece surpreso em me vê. — Disse sorridente. Thomas fechou a mão em um punho, batendo sobre a mesa. O pequeno estrondo chamou atenção de algumas pessoas. Thomas não se importou, seus olhos estavam presos na antiga garçonete e secretária.
— O que você quer, Grace? — Perguntou entredentes.
— Aposto que a essa altura imaginou que eu estivesse bem longe dessa cidade horrível. — Ela disse. — Eu realmente estive, até ser chamada novamente pela Coroa, mas estou de passagem, ficarei o tempo suficiente para conseguir o fui designada.
— Você não respondeu a minha pergunta. — Thomas disse.
— Por que tem tanta pressa em saber algo que vai me ajudar pessoalmente? — Riu. Thomas desviou o olhar para as outras mesas. — Se estiver pensando em como vai se livrar de mim, quero que saiba que não será tão fácil dessa vez, Thomas Shelby. — Suas palavras roubaram a atenção do gangster novamente. — Sei o que aconteceu com seu pub. Também sei quem mandou fazer aquilo e por qual motivo.
— Agora você é inspetora? Como conseguiu essa proeza? — Perguntou em tom de escárnio.
— Vim terminar o que Campbell começou. — O tom de Grace mudou, assim como os olhos azuis escureceram. — Chester e eu tínhamos um relacionamento. Ele era como um pai para mim e então foi morto quando só estava tentando fazer o certo: por pessoas imundas como você atrás das grades.
— Deveria saber que esse é um caminho de duas mãos e quando você escolhe a errada, acaba sem volta. — Thomas disse. Se encostou na cadeira, demonstrando serenidade.
— Sei que não foi você que o matou, mesmo que tenha assumido a culpa e se livrado facilmente da forca. Agora você tem poder e a polícia no bolso, mas não tem poder sobre mim, cigano. — Grace pronunciou as palavras lentamente, saboreando o efeito que causava no homem a sua frente.
— Eu não estou disposto a ajudá-la. Agora se não se importa, tenho mais o que fazer. — Thomas afastou a cadeira, pronto para se levantar.
— Sei o endereço de todos que você ama. Inclusive o da sua irmã que vive em Londres com aquele doce garotinho, como é mesmo o nome dele? — Grace franziu o cenho. Thomas mordeu o canto interno da boca. — Ah! Seria uma pena se algo ruim acontecesse a ela.
— Pelo visto tem muito o que dizer, então ganhou minha atenção. — Thomas sentou-se novamente. Puxou um cigarro do bolso e acendeu. Soprou a fumaça propositalmente na direção da mulher.
— Há alguns dias um homem foi assassinado, chamavam ele de Duggan. — Grace começou, segura do que falava. — O corpo foi encontrado em uma cova rasa, no seu território. E sei que foi você que assassinou o pobre homem. O sangue pinga das suas mãos, o odor de morte cerca você. Quero que saiba que você anda sendo bem observado, eu sei cada passo que dá.
— O que tem mais a dizer, Grace?
— O nosso reencontro faz parte de um planejamento bem bolado e elaborado há bastante tempo. Graça a todas as informações que tenho, eu posso te acusar de assassinato a qualquer hora. E comigo na cidade, você não terá como subornar nenhum policial sem eu saber. Eu sou a lei por aqui e levaria você facilmente para forca. — Grace disse. Thomas tragou o cigarro mais uma vez, não se deixando intimidar com as palavras da mulher. — Sr. Shelby de agora em diante você está nas minhas mãos e em alguns dias irei entrar em contato novamente. Então esteja atento a tudo, temos alguns meses até seu trabalho de verdade começar.
Grace se levantou da cadeira arrumando o vestido que usava. Antes que pudesse passar pelo cigano, deixou sobre a mesa algo bem embalado. Thomas encarou a caixa vermelha com uma fita branca acima. Olhou para Grace novamente, esperando ela dizer algo.
— Trouxe algo dos Estados Unidos para você. — Ela sorriu quase diabolicamente. — Sei que você deve estar ciente de todo o sucesso que ela tem feito bem longe de você. Confesso que depois de tudo que passaram, acreditei que fossem terminar juntos, mas pelo visto, ela viu que não ganharia nada ao seu lado. Mesmo assim, pelos velhos tempos, trouxe algo dela para você. Nem precisa agradecer, querido.
Grace sorriu uma última vez, sabendo que o recado fora passado da forma que planejara. Thomas apagou o cigarro, voltando a respirar longe daquela mulher. Suas mãos percorreram a fita branca, puxando-a com certa cautela. O que encontrou na caixa o surpreendeu. Era um livro de capa vermelha e letras douradas, o nome de Amara brilhava logo abaixo do título: O Império de Mooney. Após anos tentando empurrar para o fundo da mente o que viveu ao lado de Amara, seu coração voltara a acelerar ao ver que algo dela chegara a suas mãos.
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BOSTON
— Quero cavalgar da mesma forma! — Sarah levou as mãos para a cintura enquanto observava Amara descer do cavalo.
Quando o sol finalmente resolveu brilhar e a temperatura dar uma trégua, ambas partiram para um passeio. A noite de ação de graças ocorrera bem, mesmo com a completa ausência de Richard. Em todo esse tempo, Amara nunca ficara tanto tempo sem se comunicar com o Abbott e sua ausência no jantar fazia com a preocupação da mulher aumentasse. No entanto, estava sendo uma boa anfitriã ao distrair os convidados.
— E o que está esperando, eu ajudo você a subir no cavalo. — Amara disse.
— Katrina, uma colega da escola, disse que está aprendendo a cavalgar de lado. Sabe que não é permitido abrir as pernas para montar em um cavalo, não é? — Sarah deu um passo até o animal, acariciando a crina branca.
— Regras estúpidas, que bom que elas são feitas para serem quebradas. — Amara sorriu secamente. — Venha, deixe-me ajudar a subir. O Lestat é manso, mas é melhor não tentar correr com ele ou pode não parar mais.
— Eu não tentaria isso. — Sarah levantou um pé para subir no animal. Mesmo com certa dificuldade, se acomodou na cela, sorrindo do alto. — Nossa! Eu quero um cavalo como esse!
— E onde colocaria ele? — Amara segurou as rédeas de Lestat.
— Ariana iria enlouquecer com a ideia. Ela não gostou nem um pouco quando adotamos um cachorro, devido à alergia, mas Krishna a fez mudar de ideia. — Disse. — Se ainda morássemos na pensão, não poderíamos ter um animal, mas agora temos uma casa, é natural ter um bichinho de estimação. Não concorda? — Sarah esperou por uma resposta, mas percebeu que provavelmente falava sozinha, já que Amara pareceu distraída por um curto tempo. — Amara?
— Desculpa, o que estava falando? — Amara piscou, recebendo um olhar feio da adolescente.
— Você parece preocupada, tem a ver com o Sr. Abbott? — Sarah perguntou.
— Sim, eu estou um pouco preocupada com ele. — Confessou. — Na verdade, estou muito preocupada. Richard tem andado ruim de saúde e não nos falamos há alguns dias. Pensei que ele fosse aparecer no jantar, mas bem...
— Vai ficar tudo bem, Amie. — Sarah a consolou. — Agora, como faço para sair do lugar com o Lestat?
Amara abriu um leve sorriso, guiando Lestat e Sarah por uma trilha que as levariam de volta para a mansão. Sarah tinha muitas novidades para contar, desde as atividades extracurriculares até as novas amizades, e principalmente, seu primeiro beijo em um garoto do mesmo ano que ela. Falou sobre a nova casa em Ohio, maior e tão confortável quanto sua antiga residência em Small Heath. Krishna também havia se mudado com as irmãs Lowry, assim como iniciara um curso por correspondência de secretária, talvez futuramente, Amara a contratasse, seria bom ter as amigas por perto. De volta a mansão, Amara percebeu que algo não estava certo quando se deparou com o clima fúnebre dos visitantes. Os semblantes preocupados fizeram o coração dela acelerar, assim como o estômago congelar.
— O que aconteceu? — Perguntou, tirando as luvas de couro. Ariana foi a primeira a dar um passo para frente, segurando o pulso da amiga.
— Fizeram uma ligação mais cedo, quando você estava fora. — Ariana iniciou. Amara engoliu seco, sentindo o interior congelar. — Foi da casa de Richard, ele pediu para que você o visitasse. Parece que ele tem algo a dizer para você.
— Ele está bem? Aconteceu algo? — Amara desviou o olhar para Nicholas, que encarou as próprias mãos pensativo.
— Ele só pediu para você ir o quanto antes. — Disse de modo baixo.
Amara passou a mão pelo cabelo, agradeceu a amiga e subiu para o quarto. Minutos depois se via arrumando as coisas para partir para o centro de Boston. O pedido de Richard a preocupava agora mais do que nunca. Após anos sem clamar por forças maiores, Amara orou silenciosamente. Manteve as mãos firmes enquanto pedia que nada de ruim acontecesse ao homem que cuidara dela como uma filha.
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Não importava quantas vezes frequentasse a casa de Richard, Amara sempre se sentiria perdida entre os enormes corredores. Era noite quando chegou ao centro de Boston, levada diretamente ao palacete de Abbott. Foi guiada pelo mordomo até os aposentos de Richard. Amara não pode deixar de segurar a emoção ao ver seu mais fiel amigo acamado. Richard ergueu um dedo, chamando-a para sentar-se na enorme cama. Amara deu passos largos, acomodando-se rapidamente ao lado dele. Richard estava ainda mais pálido que o de costume. Os lábios finos e masculinos estavam rachados e os olhos não possuíam mais o brilho de antes.
— Não chore, minha menina. — Disse o homem, erguendo um dedo enrugado para enxugar uma lágrima que descia preguiçosamente pelo rosto de Amara.
— O que houve? — Amara perguntou, segurando a mão do velho Abbott. Sentiu o frio da pele madura passar para as dela.
— Há um momento em que sabemos que vamos partir. — Disse rouco, respirando fundo entre as palavras. — Hoje cedo eu conversei com Alice, ela estava linda e jovem como a primeira vez que a vi. Ela me disse que logo estaríamos juntos, mas eu precisava me despedir das pessoas que amava antes de ir.
— Não diga besteiras. — Amara balançou a cabeça, fazendo que alguns fios soltassem de penteado. — Vamos procurar os melhores médicos. Você vai ficar bem e vamos assistir muitas corridas de cavalos juntos, ir ao cinema e teatros.
— Eu sei que você fará isso, mas não com minha presença. — Ele emitiu um leve sorriso. — Amara, eu estou morrendo, não há mais nada o que fazer. O câncer é um inimigo silencioso, até quando decide atacar. Eu sei que perdi essa batalha.
— Richard. — Ela chamou, mas foi silenciada pelo homem.
Richard moveu a mão para a mesinha de cabeceira, puxando um livro de lá. Amara franziu o cenho, recebendo-o nas mãos. O Império de Mooney, leu o título em silêncio. Levantou o olhar para Abbott. As feições dele estavam suaves, batendo os cílios tão moderadamente quanto movia os dedos em gestos para que ela começasse a leitura. Amara sorriu de lado. Ler para Richard era quase um hábito, fazia isso principalmente em momentos tempestuosos. Richard precisava ouvir a voz suave de Amara uma última vez para poder repousar em um sono eterno.
Amara abriu o livro, sendo surpreendida por algo caindo dele. Sua atenção se prendeu primeiro ao anel que cairá sobre o colo, assim como um papel dobrado. Ergueu o olhar para Richard novamente, se perguntando o que realmente estava acontecendo. O anel, cujo uma safira verde chamava atenção no topo, brilhou na palma da sua mão. Richard segurou o pequeno círculo de ouro, colocando-o no dedo anelar da mulher. Amara não questionou o motivo daquela atitude, já que a tenção dela se prendeu ao papel.
— O que é isso? — Perguntou ela ao terminar de ler o que tinha no papel dobrado. Seus olhos ainda não acreditavam no que havia ali.
— Não tenho filhos, tampouco sobrinhos ou afilhados. — Richard fez uma pausa para tossir. — Eu não tinha ninguém até você aparecer e eu saber que foi uma das melhores coisas que me aconteceu depois da morte da Alice. Depois de tudo que conquistei, não posso simplesmente perder ou deixar nas mãos de alguém que não dará tanto valor. Então sei que estará em boas mãos ficando em seu nome.
— Você tem certeza disso? — Amara perguntou. Sentiu as mãos tremerem. O toque frio do anel em seu dedo a fazia estremecer.
— Esse anel foi da minha primeira esposa e coube perfeitamente em seu dedo. — Ele sorriu quase dolosamente. — Já disse o quanto vocês eram parecidas? Sei que você vai saber fazer tudo dar certo. Será mais fácil se carregar meu sobrenome e espero que aceite, como um dos meus últimos presentes para você.
— Você me chamou até aqui para nos casarmos? — Amara olhou para o papel novamente. A certidão de casamento assinada por um juiz, advogado e o próprio Abbott diziam que logo Amara Flynn se tornaria Amara Abbott, apenas uma assinatura oficializaria isso.
— Nunca a olhei como outros olhos. Você sempre foi como uma filha. — Disse, ofegante. Amara segurou a mão do homem, sabendo o quanto ele se esforçava para falar. — Eu lembro de me falar sobre sua família e como os perdeu drasticamente. Eu a acolhi, e agora estou cuidando mais uma vez de você. Assine esses papéis e cuide do que é meu e faça tudo que eu não consegui fazer.
— Disse que esse era um dos últimos presentes. — Comentou. — O que mais planejou?
— Isso será resolvido com meu advogado, Andrea. Meu testamento está com ele e... — Richard fez uma pausa, tossindo com força. O homem tomou postura novamente, ofegante. — Leia uma última vez para mim, para eu poder descansar.
Amara pousou o rosto sobre o peito do homem. Deixou que algumas lágrimas escorressem por seu rosto de forma voluntária. Não esperava uma despedida, assim como não estava preparada para assumir tanta responsabilidade ao se tornar uma Abbott, mas se Richard confiava nela para aquela função, então sabia que conseguiria mesmo com um pouco de dificuldade. Sentiu um leve afago no cabelo, um ato tão puro quanto gentil, se recordando dos momentos difíceis e das conquistas ao lado daquele homem. Amara levantou o rosto, sentando-se novamente na cama. Limpou a garganta antes de abrir e se concentrar no primeiro parágrafo do livro que escrevera. Richard suspirou uma última vez, se perdendo facilmente nas palavras que ouvia, mergulhando cada mais fundo nas imagens que formava em sua mente. Um riso moderado percorreu por seus lábios ressecados, dando-o uma expressão relaxada e livre das dores que sentia. Deixou que essa fosse a última imagem que daria à jovem mulher à sua frente.
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Amara assinou o nome na linha pontilhada, deixando a caneta ao lado assim que terminou. Encarou a janela do outro lado do escritório. Ouviu o barulho da papelada sendo arrumar preencher os ouvidos, dividindo a acústica com a da chuva que caía violentamente do lado de fora. Quando Richard se foi, antes mesmo que ela terminasse de ler o livro, sentiu que uma parte dela também havia partido. Era se como tivesse perdido um consanguíneo, entendendo que perdera o mais próximo de um pai que havia ganhado naquela época. A dor que sentiu durante o velório e o enterro dificilmente seria sarada, e quem sabe, coubesse o tempo fazer isso. Todavia, faria o bom uso de tudo que herdara ao se tornar a falsa esposa e recém-viúva de um dos homens mais poderosos da América do Norte. Sabia que Richard gostaria de vê-la firme e assim se manteria até o fim.
— Sra. Abbott. — Chamou o advogado, Andrea. Levaria tempo para que Amara se acostumar ao novo sobrenome e com todo o poder que ele levava. Brincou com o anel no dedo anelar, também se acostumando com a aliança ali. — Sinto muito por sua perda. Ainda é doloroso saber que o Sr. Abbott não estará mais entre nós. No entanto, Richard me contou que há alguns meses começou uma pesquisa, disse caber a mim informá-la caso ele não tivesse a chance.
— Que pesquisa? — A atenção de Amara foi tomada rapidamente pelo advogado.
— Sobre seus familiares. — Explicou. Amara uniu as sobrancelhas, encarando o papel entregue para ela. Se lembrava de ter mencionado sobre os familiares por parte de pai. Algo que parecia ter sido apenas um comentário inocente da sua parte, foi o motivo de Richard procurar por respostas enquanto a mulher se ocupava com outras questões. — Richard estava procurando sobre seus familiares e conseguiu algumas coisas a respeito dos Flynn.
Amara leu os documentos que tinha em mãos. O sobrenome Flynn tinha origem irlandesa. As próximas páginas mostravam que a maioria daqueles que o carregavam pertenciam à realeza pura e cigana, vivendo no País de Gales ou em outras redondezas. Um frio na barriga fez com a mulher desviasse o olhar para o outro lado da sala, atordoada com tudo que leu.
— Ele encontrou aqueles que podem ser seus parentes legítimos. — Andrea disse, tomando atenção de Amara novamente. — São ciganos, portanto, não param em nenhum lugar por muito tempo. Quando Richard os achou, eles estavam em um vilarejo chamado Rhossili, no País de Gales, em uma península. Muito provavelmente ainda se encontram no mesmo lugar, mas sabem como são, sempre estão partindo em caravanas.
— Por que ele fez isso? — Aquela pergunta não tinha uma resposta. O advogado deu de ombros. — Meu pai nunca mencionou isso, bem, talvez nem ele mesmo soubesse sobre a própria família. — Comentou, sabendo que talvez deixara Andrea confuso com suas palavras.
— E agora que você sabe, o que irá fazer? — Ouviu a pergunta ser feita.
— Não sei, talvez, ir atrás deles, quem sabe. — Respondeu ao dar de ombros. — Eu tenho muitas coisas para fazer agora que sou uma Abbott, então... Uma coisa de cada vez ou ficarei tão louca quanto Kevin Mooney.
Andrea suspirou, abrindo o botão do paletó. Sua semana também não fora fácil e a morte do velho amigo o assolou ainda mais. Ao levantar-se da mesa, deu passos até Amara, abaixando-se na altura da nova Abbott. Não era do gosto de Andrea ver que todas as posses de Richard estavam nas mãos daquela jovem mulher, mas respeitaria o último pedido do Abbott enquanto tivesse o controle dos negócios mais sérios. Amara precisava dele mais do que imaginava.
— Eu estou aqui. — Disse ao segurar a mão dela. Amara engoliu seco, se perdendo brevemente no abismo escuro que Andrea carregava no olhar. — Vou ajudar você, não está sozinha.
— Eu nunca achei que estivesse. — Disse de modo áspero.
— Sei que está de luto, mas Richard não gostava de tristeza. — Sorriu levemente. Amara encarou a aliança no dedo. — Se quiser, podemos sair para tomar algo ou talvez seja cedo demais.
— Caso ainda não tenha percebido, eu não estou em clima de festa. — Amara se afastou de Andrea.
— Tudo bem. — Andrea acenou. — Eu entendo você. Vamos continuar os negócios do Richard.
Continuar os negócios do Richard. Amara sentiu o estômago revirar com toda a responsabilidade que viria depois daquelas palavras. Felizmente, ela estava preparada. Fora bem treinada para isso.
Oie gente, acho que alguns podem estranhar os saltos temporais, mas eles são necessários, aliás, por qual motivo eu ficaria enrolando capítulos quando posso partir para os momentos mais importantes? Então é isso, a fic vai ter saltos temporais quando necessário. Espero que estejam gostando do rumo que ela ta tomando.
Contemple o jornal da Amara ❤️
Capitulo postado dia (20/09/2021), não revisado.
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