Um calafrio percorre meu corpo. Sento-me sobre a areia seca, encarando o mar agitado. Ondas altas e pequenas correm em minha direção, apenas para pararem ao encostarem sobre meus pés descalços. Apesar de estar em uma praia, o sol não brilha, coberto por nuvens densas e acinzentadas. Meus olhos procuram por alguém, mas estou sozinha.

Ou, pelo menos, acho que estou.

━━━━ Está sozinha outra vez. ━━ Diz uma voz severa, ecoando pelo espaço ao meu redor como um sibilo sinistro. ━━━━ Quanto tempo até Percy Jackson te abandonar também? Eles te enganam e te abandonam, de novo e de novo.

Achei que estava livre. Imaginei que a magia do Acampamento Meio Sangue me protegeria dos sonhos estranhos, dos pesadelos sombrios e, principalmente, do meu velho e antigo amigo que costuma voltar sempre que estou triste. Não para me consolar, mas para me convencer de que, de fato, eu tenho o direito de estar triste. Porém, A Voz costuma insistir na raiva também. Ódio. Vingança.

Apelidei-o de A Voz quando tinha seis anos. Sim, estou sonhando com essa mesma voz desde que era apenas uma criancinha. Nunca entendi por quê, ou como, mas ele sempre volta. Sempre que o escuto, sei dizer que estou sonhando, afinal, nunca ouvi essa voz se não durante meus sonhos, na minha cabeça.

━━━━ Percy é diferente. ━━ Defendo com certeza, apesar de sentir meu estômago revirar.

Não sei quem estou tentando convencer.

━━━━ Ele é metade de um deus e você sabe como os deuses são.

Cruéis. Eu sei. No fundo, sempre soube. Antes mesmo de descobrir que todas essas baboseiras são reais, antes de assistir à morte de Sally Jackson, antes de conhecer o Acampamento Meio Sangue. Eu sempre soube. A Voz sempre me alertou, me ensinou histórias que não estão nos livros, me contou detalhes que ainda me deixam doente de pensar.

Mesmo assim, não o respondo. Quero que Percy seja diferente do resto, mesmo sabendo que é improvável.

━━━━ Exatamente, minha pequena. ━━ A Voz concorda, apesar de eu não ter sequer aberto a boca. Mas eu não preciso, não é? A Voz sou eu. Quem mais ela seria? ━━━━ Cruéis e fracos. Está na hora de tomar o que é seu por direito.

De repente, as ondas se agitam, alcançando meus joelhos. Depois disso, se agitam ainda mais, crescendo e crescendo como um tsunami. Estou prestes a acordar, voltar ao mundo real e anotar meu sonho como sempre faço. A diferença é que, dessa vez, não estou em casa. Não tenho o conforto da minha cama e da minha solitude.

Fecho os olhos, esperando o impacto, o som alto se aproximando cada vez mais e as últimas palavras de A Voz se repetindo como um disco quebrado.

Seu por direito. Seu por direito. Seu por direito.

Acordo em um pulo assustado, sinto a água que me afogou em meus pulmões, mas tento ignorar. Vai embora eventualmente, isso sempre acontece. Nem sempre são ondas, mas são sempre dores torturantes que me atingem como um raio e somem como o vento. Ao meu lado, escuto Percy acordar em um susto, assim como eu. Seria ele um sonhador também? Costumava pensar que a tortura incessante era uma punição especial do universo para mim, porém, recentemente, venho descobrindo que não sou tão única quanto eu imaginava. Quem sabe, A Voz é uma companhia presente na vida de Percy também.

Ou talvez eu realmente seja maluca.

━━━━ Estão bem? ━━ Luke questiona, se aproximando de nós ao notar a tensão em nossos ombros.

━━━━ Nunca estive melhor.

━━━━ Estou acostumada.

Tento acalmar a correria do meu coração, mas de nada me serve. Respirar exige uma força maior, como se água ainda pesasse em meus pulmões. Essa sensação é diferente das outras vezes que acordei após um pesadelo, mas tento fingir que não, por vergonha dos olhares que caem sobre mim.

Além de Luke, o sorriso aconchegante de Morgana também entra no meu campo de visão. Ela carrega algo nas mãos, mas não tenho a chance de adivinhar, pois o mais velho volta a falar.

━━━━ Acontece com todos nós. ━━ Luke nos assegura, despreocupado. ━━━━ Os pesadelos repetidos e intensos são comuns por aqui. Além dos devaneios, TDAH e dislexia. ━━ Ótimo, nada melhor do que isso, certo? Pelo menos agora eu sei que não estou sozinha. Não vim com erro de produção, todos vieram. ━━━━ Os semideuses processam a realidade de forma diferente dos mortais. Pela primeira vez na vida, você é como todo mundo.

Não sei se gosto da ideia de ser todo mundo, mas fico calada. Estou sempre calada. Meus dedos brincam uns com os outros em uma forma ansiosa de se distrair.

━━━━ Vocês também... não...

━━━━ Não fui reclamado? ━━ Luke completa, lendo a mente do Jackson como se essa fosse top cinco perguntas mais perguntadas. ━━━━ Fomos, Hermes é meu pai.

━━━━ Hécate é minha mãe. ━━ Morgana adiciona, dando de ombros ao mencionar a mãe.

É engraçada a maneira como os dois funcionam, como se isso tudo fosse uma grande dança e ambos conhecessem muito bem a coreografia.

━━━━ Isso não importa, somos da mesma equipe aqui.

━━━━ Por que isso não importa? Por que eles nos trazem até aqui e depois nos ignoram? ━━ Percy questiona com raiva e decepção, trocando o peso de uma perna para a outra.

Consigo entender esses sentimentos. Viemos de longe para isso? Sermos ignorados pelas únicas pessoas que podem nos explicar quem somos e o que somos capazes de fazer? Mas, é como A Voz diz, deuses não são bons. Te abandonam de novo e de novo, alimentando um ciclo sem fim e muito doloroso.

O abandono não é algo descritível. Eu tentei colocar em palavras diversas vezes no meu diário de sonhos, ou quando conversava com A Voz, mas não consigo. Não há como. É uma dor tão sufocante que nem mesmo as mais complexas e grotescas palavras seriam incapazes de explicar. É o medo absurdo de perder os mais pequenos objetos, ou as mais importantes pessoas. É a agonia, o terror, o desespero. São tantas coisas ao mesmo tempo que fico tonta só de pensar.

Mas, é claro, que para os deuses não se passa de algo natural. Estão mais acostumados com o abandono do que com a própria existência.

━━━━ Se passar muito tempo tentando entender os motivos dos deuses, ficará louco. ━━ Explica o moreno, braços cruzando sobre o peito em um ato nervoso. Talvez ele, de fato, soubesse quão louco pudéssemos ficar. ━━━━ Quando parar de se preocupar com isso, poderá aproveitar o que esse lugar tem para oferecer.

Percy concorda baixinho, apesar de não soar confiante acerca do assunto.

━━━━ O que seria? ━━ Questiona, cerrando as sobrancelhas em certa confusão.

━━━━ Glória.

Um calafrio percorre minha nuca na menção da palavra. Me imaginei em uma posição onde eu seria glorificada, vista como alguém além e mais importante do que realmente sou. É divertido, mas longe da realidade. Quem sequer me admiraria?

Desajeitadamente, agarro katoptris e sigo os passos despreocupados de Luke e Morgana em direção à saída do chalé. Porém, antes que pudéssemos pisar para fora da enorme e confortável casa de madeira, sou impedida pela garota, que mantém seu sorriso característico no rosto e estende o objeto em mãos para mim.

━━━━ Vi que tem uma adaga. ━━ Murmura, direcionando para a reluzente arma que carrego. ━━━━ Achei que isso fosse útil.

Me oferece um cinto e uma bainha, ambos de couro, para guardar a adaga. Talvez minhas orelhas tenham tornado-se vermelhas, mas tentei fingir que não. É a primeira vez que recebo um presente — de alguém que não seja Ivy ou Henry — e me sinto especial. Mesmo que somente por alguns segundos.

Onde ela arranjou isso? Estava realmente pensando em mim? O que eu devo fazer?

A vontade de chorar é enorme, mas engulo e agradeço com um sorriso contente pelo ato. Em resposta, Morgana apenas sorri outra vez e indica para onde Luke e Percy nos esperam, pequenos sorrisos surpresos em seus lábios.

━━━━ Os semideuses sempre lutaram por glória. Eles chamavam isso de kleos. É algo que fica gravado ao seu nome, tornando-o maior, mais assustador e mais importante. ━━ Luke guia o caminho, lado a lado com o mais novo, enquanto eu e Morgana vamos por trás. O som de folhas secas se rompendo é um lembrete de que Chris, um adolescente latino de cabelos ondulados castanhos, também nos acompanha. ━━━━ As pessoas prestam mais atenção em você e se esforçam para serem suas amigas. Além de pensarem melhor antes de mexer contigo.

Como se combinado, assim que as palavras do mais alto finalizam, trombam em Percy. Ele se revolta, mas não é preciso de muito para sentir-se intimidado pela menina de longos e ondulados cabelos castanhos e olhos de avelã. A postura rígida, mas confiante, me faz sentir pequena e fraca, como se a desconhecida mantivesse o poder do mundo nos dedos calejados. Revoltada com a resposta de Jackson, a morena ergue o punho pronta para o arremessar e provavelmente destruir, mas me espremo entre Morgana e Luke e consigo chegar a tempo de agarrá-la.

Ainda mais veloz, a mais velha se vira com os olhos venenosos e as mãos fervem para acertar alguma parte fatal do meu corpo. Felizmente para mim, Luke a impede de cometer qualquer erro.

━━━━ Dá um tempo, Clarisse! É o primeiro dia deles.

Observo com o canto do olho Chris ajudar Percy a se levantar e, em um movimento brusco, a tal de Clarisse facilmente se livra das minhas mãos fracas. Tecnicamente, murmuro mentalmente, não sou fraca, ela que é gigante. E, não se engane, quando digo gigante, quero dizer que seus braços eram fortes o suficiente para me quebrar ao meio como um lápis. Todavia, Clarisse é gentil o suficiente para não me deixar descobrir.

━━━━ Então foi você que matou o Minotauro, certo? ━━ Questiona em um tom debochado, erguendo a sobrancelha para o Jackson.

━━━━ Sim?

━━━━ Você quer atenção por aqui, queridinho? Então, esteja pronto quando chegar a hora.

A morena finge que vai o empurrar outra vez e, como o coitado que é, o garoto esquiva para trás, cambaleando como um medroso. Não o julgo, se Clarisse estivesse me atacando, também teria medo de ser cortada em pedacinhos. Ao contrário de mim, o resto da trupe maravilha de Clarisse gargalham e vão embora, agindo como se fizessem parte do filme de Meninas Malvadas.

Resmungo palavrões para mim mesma, revirando os olhos dos adolescentes ridículos. Ao menos, Luke soube os controlar.

━━━━ Ela parece ser legal.

Apesar dos sentimentos borbulhando em mim, me permito sorrir ao sarcasmo de Percy. Estou ficando cada vez mais acostumada com o garoto — talvez, se ousasse, diria que não me importo em ter Percy Jackson como meu amigo. Um de poucos.

━━━━ Filhos de Ares. Fazem jus ao pai. ━━ Luke oferece o conforto brevemente com uma mão sobre o ombro do louro. Mas, de pouco lhe serve, pois a primeira pergunta de Percy é o motivo pelo qual Clarisse não implicou com o mais velho também. ━━━━ Porque me conhecem bem.

As intenções egocêntricas do filho de Hermes soam tão naturais e divertidas, que me vejo dando de ombros ao invés de revirar os olhos em vergonha. Acredito que a energia carinhosa o transforme nessa pessoa calorosa, o que, consequentemente, te torna mais propenso a concordar com tudo que ele diz. Mesmo que achasse absolutamente ridículo caso fosse outro alguém dizendo.

É a essência da vida, suponho. Não é sobre nossas morais e princípios, mas, sim, sobre as morais e princípios alheios que nos convém.

━━━━ Luke é o melhor espadachim daqui. ━━ Chris explica, sorriso ladino nos lábios de modo que parecesse ser um fato que lhe interessa.

━━━━ O segundo melhor. ━━ Morgana é rápida em corrigir, suspirando em ambos irritação e cansaço.

━━━━ O segundo melhor. ━━ Luke concorda, sorrindo ao envolver o braço sobre os ombros da filha de Hécate. ━━━━ Morgana é a primeira. Me ultrapassou ano passado.

━━━━ Eu sempre fui melhor, só estava esperando a oportunidade certa para te colocar no seu lugar.

Um pequeno sorriso toma conta dos meus lábios antes que possa impedir. A dinâmica da dupla alivia a tensão que vem me deixando maluca, um certo conforto que me assegura de que as coisas podem melhorar. Eu posso me tornar similar à Morgana e Luke, assim farei uma diferença.

━━━━ Eles te deixam em paz por ter glória? ━━ Percy murmura, encarando os novos amigos com curiosidade. Os olhos, já arregalados, aumentam ao ver que ambos concordaram. ━━━━ Então, se eu tiver glória, Clarisse não vai mexer comigo?

━━━━ Exatamente.

━━━━ E vão pensar que sou importante?

━━━━ Mais ou menos... ━━ Luke murmura, inclinando a cabeça para o lado com um sorriso bobo.

Consigo imaginá-lo dizendo "Nem é para tanto!" mas, graça aos deuses, ele não o faz. Nem tem tempo, pois Percy já está jogando outra pergunta ao mais velho.

━━━━ E meu pai vai ter que me reclamar?

Por um segundo, todo o ar some dos pulmões. Apesar de tudo que vem acontecendo, ele ainda quer ser reclamado. Ainda precisa da atenção do pai. De fato, é compreensível, o desejo de ser visto nunca some. Eu também gostaria de saber de onde vim e quem eu sou, mas eu não sou Percy Jackson, acho difícil que eu vá conseguir.

Se minha filha fosse eu, eu não a reclamaria. Uma mistura de esquisita com paranóia que não fará bem a ninguém. Nem mesmo a mim.

━━━━ Você não pode forçar os deuses a fazer nada. ━━ Luke nega, cruzando os braços, mas admirando a ideia do mais novo.

Ao seu lado, Morgana parece brincar com seus diversos anéis, franzindo as sobrancelhas e escutando atentamente.

━━━━ Ele não vai. ━━ Digo, ganhando coragem o suficiente para usar minha voz. Me posiciono ao lado do garoto, confiante em sua ideia. ━━━━ É apenas um empurrãozinho.

Percy sorri com minhas palavras, contente de que alguém o compreendia.

━━━━ Exatamente. Seria difícil me ignorar, certo? ━━ Insiste, alterando o olhar entre os adolescentes. Quando é respondido com hesitante concordância, seu sorriso apenas aumenta. ━━━━ Ótimo! Por onde começamos?

Os mais velhos trocam olhares divertidos, planejando o resto do dia. A decisão é tomada e somos redirecionados para uma área específica do acampamento, preparada com alvos e armas. Um campo de treinamento. Assim que nos aproximamos, Morgana acelera o passo e conversa com alguns dos campistas ali, dizendo seja-lá-o-que. O enorme grupo nos observa, alguns acenam e outros apenas sorriem, mas eu não sei bem o que fazer. Estou conhecendo muitas pessoas de uma vez, não está ajudando na minha ansiedade, mas, tudo bem. Eu consigo.

Sou praticamente arrastada por Jackson até o grupo, pois o garoto agarra meu pulso e caminha em passos velozes até o lado de Morgana. Tento acalmar minha mente, me distraindo com a tarefa em mãos: arco e flecha.

Diante de nós, uma garota de cabelos pretos presos em um coque e pele clara, em uma cadeira de rodas, ergue um arco com uma flecha em chamas. Me escondo por trás de Percy, apesar de não duvidar nada do talento da garota, prefiro não virar cinzas. Todavia, meu medo desaparece quando ela acerta bem ao meio do alvo em forma de monstro — seria isso um dinossauro? — como se não fosse uma das coisas mais difíceis do mundo.

━━━━ A glória vem de suas habilidades. Então precisamos descobrir no que vocês são bons. ━━ Luke empurra o loiro de leve, o encorajando a pegar o arco e flecha.

Funciona, pois Percy agarra a arma em mãos, visivelmente hesitante em fazer qualquer coisa.

━━━━ Quero deixar claro que nunca fiz isso antes, e parece ser muito perigoso.

━━━━ Você também nunca tinha matado um Minotauro antes.

━━━━ Bom, eu não matei nenhum Minotauro. Tenho mesmo que fazer isso? ━━ Interrompo, brincando com meu colar ao encarar o alvo na distância e o arco nas mãos do Jackson.

Por mais impressionante que saber arco e flecha seja, eu não tenho o talento para isso. Não acho que tenho o talento para nada, mas fui jogada nessa jornada pela curiosidade e insistência de Percy. Achei que o acampamento fosse um lugar bobo com canções na fogueira e brincadeiras o dia inteiro, não treinamento com armas reais e letais.

━━━━ Confie em mim, Helena. Às vezes nossas forças surgem dos mais imprevisíveis modos.

Suspiro derrotada, oferecendo um sorriso cansado a Morgana. Espero que ela esteja certa. Mas minhas inseguranças são aterradas por Percy, que ergue o arco e mira o melhor que pode, soltando a flecha com tanta força que cambaleia para trás, caindo no chão. O grito de diversas pessoas que treinavam ao nosso lado me chama atenção e percebo que a flecha do garoto quase acertou outros semideuses.

Não quero imaginar o que teria acontecido se tivesse conseguido.

━━━━ Devo tentar de novo?

━━━━ Não! ━━ Todos gritam urgentemente, ainda cobrindo as cabeças.

O garoto parece derrotado, se levantando com a ajuda de Morgana. Tirando que quase matou alguém, devo confessar que foi uma cena engraçada de assistir.

O arco é oferecido para mim e eu o agarro com força, todos me observam, temendo que eu fizesse o mesmo ou pior que Percy. Mantenho o foco no alvo, fechando um dos olhos para aumentar minha chance de sucesso, e atiro. Preferiria ter o mesmo destino do garoto, mas minha flecha nem sequer voa. Caindo a menos de um metro de distância de mim como um avião de papel malfeito. Sinto vergonha, mas esperava algo do tipo vindo de mim, mal sequer sei usar minha adaga, quem dirá um arco e flecha?

━━━━ Pelo menos ela não matou ninguém. ━━ Percy resmunga, me causando uma risada.

O mais velho sorri, cutucando meus ombros e entregando o arco de volta aos que sabem o manusear. Caminhamos pelo acampamento outra vez, a procura de outro lugar para testar nossas habilidades. Ao mesmo tempo que anseio para descobrir meus possíveis talentos, temo o que será da descoberta de quem é minha mãe. Serei capaz de falar com ela quando chegar esse dia? Ou continuarei aqui, largada nas sombras?

A voz de Luke me traz de volta a realidade, escutando atentamente enquanto ele explica o que estaríamos testando. Observo o local em que estamos, as paredes rochosas estão preenchidas de armas e equipamentos mecânicos, além da enorme fornalha não muito longe de mim. Me afasto para me certificar que não irei morrer queimada e coloco a proteção oferecida — óculos enormes e horríveis e luvas quentes — e me preparo para o trabalho.

Um garoto baixo de cabelos bagunçados entrega a mim e Percy metais diferentes e martelos, sinalizando para que martelássemos o metal fervente, e assim foi feito. Um erro, devo dizer. Bati o martelo com tanta força que ele se partiu no meio e Percy conseguiu arremessar o metal aquecido em uma pilha de materiais que começam a pegar fogo instantaneamente. Não tenho tempo de entrar em pânico, pois Luke já agarrou minha mão e me puxou para longe, murmurando desculpas aos semideuses ao nosso redor.

Somos arrastados para o Pavilhão de Jantar, localizado relativamente no centro de tudo, com colunas de mármore branco cercando a área circular. Não há paredes, mas degraus elevam o local do chão, o deixando cada vez mais chamativo. Luke, Morgana, Chris, Percy e eu sentamos em uma das mesas, comendo enquanto discutimos sobre o desastre a qual foi a tarde.

━━━━ Existe um deus grego da decepção? Alguém deveria perguntar a ele se perdeu um filho. ━━ Percy choraminga, apoiando os braços sobre a mesa de mármore.

━━━━ Oizus, mas ela é uma deusa. ━━ Chris explica, dando de ombros. Os olhos de todos na mesa se viram para ele, alguns mais horrorizados que outros. ━━━━ Mas o negócio dela não é a decepção, é o fracasso.

━━━━ Mamãe? ━━ Chamo, direcionando meu olhar dramático para o céu.

Não esperava uma resposta, obviamente, mas não ficaria surpresa se Oizus fosse minha mãe. A piada tira uma risada de Morgana, mas ela é repreendida por Luke com um empurrão de leve. Os dois são adoráveis, mas não faço ideia do que são. Namorados? Amigos? Tenho receio de perguntar e tornar o clima entre nós estranhos, mas, se fossem me perguntar o que eu acho, eu diria que Luke é definitivamente apaixonado por ela.

━━━━ Vamos encontrar suas habilidades. ━━ Falando no abençoado, é ele quem nos conforta. ━━━━ Tenho certeza disso.

━━━━ E se não tiver o que encontrar?

━━━━ É claro que tem.

Um pequeno sorriso cresce em meus lábios. As palavras de Luke e seu olhar aconchegante mata todas as minhas dúvidas, ao menos por agora.

De repente, o ecoar de um sino nos interrompe. As pessoas ao nosso redor se levantam, quase robotizadas, e me viro confusa para os outros na minha mesa. Eles já parecem saber o que está acontecendo, mas o badalar não é suficiente para me explicar que tipo de ritual estávamos fazendo.

━━━━ É a nossa vez. ━━ Luke resmunga, nada contente, ao revirar os olhos.

━━━━ Nossa vez de quê?

━━━━ Queimar oferendas. ━━ Dessa vez, Morgana quem nos responde, igualmente decepcionada. Não entendo sua frustração logo de cara, mas me sinto influenciada a não gostar das oferendas, assim como eles. ━━━━ Os deuses gostam do cheiro, então conseguimos sua atenção antes da oração.

━━━━ Eles gostam do cheiro de macarrão queimado? ━━ Confuso, Percy questiona.

Os três veteranos do acampamento se levantam, mas eu e o garoto continuamos imóveis e visivelmente perdidos. Ouvi falar sobre rituais para os deuses, mas não imaginava que teríamos que queimar nossa comida para eles. Nem sequer nos reclamam e querem exigir oferendas?

━━━━ Eles não gostam dos filhos, mas gostam disso? ━━ Incapaz de morder a língua, exponho meus pensamentos.

O casal, que não tenho certeza se é um, partilham olhares que apenas eles são capazes de entender. Fico encantada por alguns meros segundos, deve ser reconfortante conseguir se comunicar tão bem com alguém sem usar palavras. Amar tanto alguém que vocês se entendem como ninguém. Será que Luke desistiria de tudo por Morgana? Será que alguém um dia faria o mesmo por mim?

━━━━ Gostam do cheiro da súplica. ━━ Chris corrige em um tom irônico, tirando uma leve risada dos mais velhos, como uma piada interna.

━━━━ Queime algo que sentirá falta. Assim eles sabem que você está sendo honesto e escutam.

A sugestão me deixa pensativa. Não preciso questionar para saber que Percy partilha do mesmo sentimento. Afinal, o que mais queremos agora é um sinal divino. Uma mensagem dos deuses — nossos pais — para descobrir a verdade sobre quem somos e qual o nosso papel aqui, mas, mesmo assim, não sei se gosto da ideia de queimar o que mais me tem valor. Entregar minha alma aos deuses é uma coisa, mas entregar meu cordão? Meu diário? Talvez seja egoísmo, mas tenho muito valor por meus bens materiais.

O tempo passa tão rápido quanto a brisa de verão e a carruagem do sol se encontra no outro lado do mundo, nos deixando com a lua brilhante. Por obrigação, me encontro outra vez no saco de dormir no chalé de Hermes, lado a lado com um espaço vazio — Percy deveria preenchê-lo, mas foi dar uma volta para espairecer alguns minutos atrás e não o vi desde então.

Sinto olhares sobre mim, tão quentes quanto lasers que penetram minha pele e marcam minhas roupas. Já tentei localizar de onde vinha, mas o chalé está silencioso e a única luz presente é a do meu lampião. Seja quem for, não deve ser nada de mais, certo?

Escrevo sobre meu sonho com detalhes no meu diário, como sempre faço. Descrevo A Voz e suas palavras, até descrevo um pouco do acampamento e a relação entre semideuses e sonhos estranhos. De repente, o som de passos chama minha atenção e, assim que olho para cima, uma garota aparece em minha frente.

━━━━ Oi. ━━ A garota praticamente sussurra, mãos na cintura e postura ereta. Igualzinho à um super-herói.

Aparenta ter a minha idade, cabelos longos e pretos presos em uma única trança que lhe cobre os ombros. Ela me lembra uma versão mais sorridente de Morgana, seus shorts jeans também foram pintados à mão, mas com ondas do mar. Tenho vontade de comentar sobre as similaridades, porém, estou congelada, a encarando em choque. Nunca fiz isso antes.

━━━━ Oi? ━━ Acidentalmente, pergunto.

Meu coração bate rápido no peito, implorando por socorro divino para que eu não tenha que lidar com essa situação. Nada contra a mini Morgana, todavia, absolutamente tudo contra interações sociais.

Se Percy estivesse aqui, ele saberia o que dizer. Na verdade, qualquer um lidaria com essa situação melhor do que eu.

━━━━ Você é a Helena, certo? ━━ A menina murmura, se autoconvidando para sentar na cama improvisada de Percy. ━━━━ Ouvi sobre você.

━━━━ Ouviu?

━━━━ Morgie me contou.

━━━━ Morgie?

Me sinto uma idiota. Todas as palavras que saíram da minha boca foram perguntas, até mesmo o cumprimento. Apesar disso, o sorriso da morena faz parecer que está tudo sobre controle. Outra similaridade que tem com Morgana: fazer os problemas desaparecerem com apenas um sorriso reconfortante.

Contudo, estou confusa demais para me sentir acolhida. Não sei quem ela é ou o que quer comigo, ou como sequer descobriu quem eu sou. Achei que Percy Jackson tivesse ganhado toda a fama, afinal, foi ele quem matara o Minotauro. Faz sentido. Eu prefiro assim.

━━━━ Morgana. A menina que estava com você mais cedo.

Me sinto levemente aliviada por saber, mas minha ansiedade apenas aumenta ao considerar as possibilidades. Ela pode ter espalhado por aí que sou estranha ou chata, até mesmo feia. Não faço ideia de como adolescentes funcionam, e se ela for exatamente o que Percy temeu que fosse? Uma bully?

━━━━ Ah, sim. Sei. O que disse? ━━ Uso a oportunidade para questionar, abraçando meu diário sobre o peito.

A mini Morgana cruza as pernas, talvez se preparando para passar bastante tempo aqui. Que bom? Que terrível? Não sei. Eu nunca sei. Estou ficando cansada do meu não saber, quando é que vou começar a ter respostas no lugar de perguntas?

Outra coisa que eu não sei.

━━━━ Que você é quieta. Me costumo dar bem com pessoas quietas, porque falo e falo e, quando vou ver, falei por mim e por você. ━━ Ela explica, gesticulando de um lado para o outro como um esquilo energizado. Tento não demonstrar meu desconforto, agora que ela está perto o suficiente para notar, porém, bato meus dedos ansiosamente na minha coxa, olhos percorrendo por todo o chalé para evitar contato visual. ━━━━ Desculpa, eu tô falando demais?

Aparentemente, minhas tentativas foram em vão.

━━━━ Não. É que... ━━ Engulo em seco, deslizando meu diário para debaixo das minhas pernas. Devo aprender como conversar eventualmente, não é? ━━━━ Eu nunca tive amigos. Só minha babá e meu irmão.

Ainda me sinto ansiosa e assustada, mas tento afogar esses sentimentos como aconteceu comigo no sonho.

━━━━ Caramba, que triste. Eu posso ser sua amiga!

A desconhecida vai de uma emoção para a outra mais veloz do que a luz. De modo que me faz questionar se ela é uma pessoa real ou outro sonho.

━━━━ Pode?

Outra vez me encontro fazendo perguntas. Em minha defesa, isso nunca me aconteceu. Acredito que o mais próximo que tive de um amigo foi Percy Jackson, mas só viramos amigos por experienciarmos a quase morte juntos e eu prometer que o manteria seguro para Sally. Talvez, não seja considerada uma amiga para ele. É impossível ter certeza, pois sou covarde demais para o perguntar.

━━━━ Claro! O que acha? ━━ Ela se inclina para frente, apoiando-se sob os joelhos. Parece tão animada com a ideia que um pequeno, quase invisível, sorriso cresce em meu rosto. ━━━━ Sei que a Morgie já gostou de você, então eu também vou gostar.

━━━━ O que eu acho? É, bom...

Queria dizer que não acho nada, pois para achar alguma coisa eu primeiro deveria achar que sei o que acho. Que confusão! Já não sei o que estou pensando.

━━━━ Está decidido! Sou sua amiga daqui em diante, faremos coisas de amiga e tudo mais. ━━ Me interrompe, sorrindo como se a vida fosse um campo de morangos. Gesticula sem parar, descruzando as pernas e sentando sobre os joelhos. ━━━━ Ah! Eu vou pedir para Morgie trançar seu cabelo, poderíamos fazer penteados iguais, já que o seu cabelo também é liso. Ou, pelo menos, mais liso do que o da minha melhor amiga.

A garota fala tanto que me encontro tonta. Não me importaria de ter uma nova — e primeira — amiga, é claro que não, mas continuo presa tentando processar o primeiro oi. Na verdade, pensando sobre isso agora, percebi que nem sequer sei quem é a garota com quem converso agora.

━━━━ Me desculpe interromper, mas, eu não sei o seu nome. ━━ Murmuro confusa, correndo os dedos pelo meu colar.

Rapidamente, o rosto da asiática se torna vermelho vivo, provavelmente envergonhada por falar tanto e não mencionar o próprio nome. Não a culpo, nunca cheguei a perguntar. Por falta de tempo e de coragem, ainda tenho uma estranha sensação de que isso é um sonho.

Ela carrega consigo um ar misterioso, como se A Névoa a seguisse por aí, mas, no lugar de enganar os mortais e semideuses, ela apenas a protege. Seria essa uma consequência de ser semideus e eu apenas não percebi ainda? Ou a minha nova amiga é especial? Outra vez me encontro fazendo mais perguntas do que obtendo respostas.

━━━━ Aí, sim, me desculpa. ━━ Sorri amarelado, colocando uma mecha solta de cabelo para trás da orelha. ━━━━ Sou Pandora. Pandora Liu, filha de Hécate e irmã mais nova da Morgana.

Agora as semelhanças fazem mais sentido.

━━━━ Prazer. Eu acho. ━━ Reajusto minha posição na cama, exalando o nervosismo. ━━━━ Sou Helena, não sei de quem sou filha e sou irmã mais velha do Henry.

Percebo minha burrice assim que paro de falar. Ninguém conhece Henry, de que adianta introduzi-lo? Apenas copiei o que Pandora disse, mas de nada me serve. Até porque ela já sabe meu nome.

Aí, penso enquanto mordo minha língua, Oizus, se eres minha mãe, mande-me um sinal.

━━━━ Henry? Não era Percy? ━━ Suas sobrancelhas cerram de modo confuso, inclinando a cabeça para o lado.

━━━━ Percy é só um conhecido, Henry não veio.

Descrever o garoto como "só um conhecido" me parece errado, mas não há outra palavra. Não somos amigos, na verdade, não sei o que somos. Me sinto conectada ao Jackson, mas não sei dizer o motivo ou se ele sente o mesmo.

Longe de mim perguntar, prefiro passar o resto da vida sem saber do que começar um assunto como esse.

━━━━ Não é semideus? ━━ Pandora questiona e eu nego. Suspira, como se levemente triste com o fato, mas um pequeno sorriso otimista cresce em suas feições. ━━ Bom, eu adoraria um dia conhecê-lo. Mas, por enquanto, seremos eu e você. O que acha?

━━━━ Acho... ━━ Penso sobre, os nervos acalmando com o acostumar da presença da filha de Hécate. ━━━━ Ótimo.

━━━━ Maravilha!

Sem perceber, sorrio alegremente com a conclusão da conversa. O chalé volta ao seu estado silencioso, ocupado apenas pelo som da respiração agitada de Pandora, o do tapear dos meus dedos sobre minha coxa e o chão. Pela primeira vez em muito tempo, o silêncio não me tortura. O medo não me consome. A solidão não é mais minha única amiga. Agora, tenho Pandora Liu. Vir para o acampamento não foi tão ruim, no fim das contas.

Minha tosse forçada quebra o silêncio, reajustando minha posição sobre o saco de dormir. Por mais que eu goste da nova sensação fervendo no peito, não sei mais o que fazer e o sono está começando a me consumir.

━━━━ Acho que vou dormir. ━━ Sorrio sem graça, cobrindo minhas pernas com a coberta. ━━━━ Até amanhã, Pandora.

━━━━ Até amanhã, Helena!

E pela primeira vez em muitos anos, eu não sonhei com nada.