viii. era melhor quando eu ficava calada.
Não me achem ingrata, mas eu preferia quando não tinha de narrar porcaria nenhuma. Eu adoro escrever, desde sempre me encontrei nas palavras delicadas e poéticas, mas se eu pudesse não contar a minha história, talvez a vida fosse melhor.
Meus braços estão doloridos e consigo sentir o gosto amargo de sangue na minha boca e escorrendo pela testa. O impacto não foi suficiente para me matar ou desacordar, mas definitivamente doeu.
━━━━ Por aqui! ━━ Grover diz em um tom animado demais levando em consideração nossa situação.
Ele quebra o vidro traseiro com as patas, espremendo-se para passar sem nenhum ferimento a mais. Eu e Percy imitamos a ação e juntos vamos até a porta do motorista, abrindo para que a Jackson pudesse descer do carro. Ela se certifica de que estamos bem e tira uma lanterna do carro, iluminando o matagal a qual nos encontramos. A chuva ainda caí sobre nossos corpos, ensopando minhas roupas e causando um frio terrível.
Apesar dos empecilhos, conseguimos deixar a vala em que estávamos e voltar para uma superfície mais plana. Grover manca o caminho todo, usando o outro garoto como apoio. Ele para, observando algo na distância.
━━━━ Chegamos, está é a fronteira. Nenhum monstro pode cruzá-la.
A fronteira que ele menciona é um único pinheiro, brilhando no topo da subida, como se iluminada pelo próprio Zeus. É uma bela árvore, mas não sei como essa coisa será suficiente para nos poupar da ira dos monstros. Contudo, como sempre, mantenho a boca fechada.
Se tem algo que aprendi como irmã mais velha é que, às vezes, é melhor ficar quieta enquanto o caos se instala.
━━━━ Helena e Percy estarão seguros do outro lado. ━━ O moreno confirma, ofegante, ao virar-se para Sally.
Cada gota escorre pelo corpo, deslizando por minha pele como um lembrete agonizante do tempo passando. Nunca me senti tão conectada a natureza antes, como se a água fizesse parte do meu ser. Ou talvez, fosse o tempo. Pensar demais pode levar alguns a loucura, mas cá estou eu, mesmo assim, dançando com as linhas da sanidade e tentando criar uma imagem para mim mesma. Quem estou querendo enganar? Estão no lugar errado se procuram uma heroína digna. Não sou nada disso. Água e tempo não são parte de mim, muito menos o sol quente ou a lua fria. Eu não deveria ser uma semideusa. Por mais vasta que seja a Terra, não pertenço.
Se sou filha de alguém, é da deusa do erro.
━━━━ "Percy e Helena..." ━━ Jackson murmura confuso, alheio aos pensamentos pessimistas em minha mente perturbada. ━━━━ Não estaremos todos seguros?
O louro volta o olhar para a mãe, mas ela não diz nada. Com passos pesados, se aproxima de Grover, um suspiro profundo escapando os lábios.
━━━━ Grover, confio em você para proteger meu filho. Meu... único filho. ━━ A mais velha diz, engolindo o choro.
Consigo notar a maneira a qual, por apenas meros milissegundos, os olhos claros percorrem minha figura, mas não sei o que significa. Sally Jackson aparentar carregar muitos segredos, mas é inegável seu coração de ouro. Pode haver uma mensagem escondida por debaixo dos olhares que ela direciona, ou das palavras as quais nunca terminou de dizer na estrada. Todavia, também pode ser apenas um truque da minha mente solitária, uma maneira tola de me sentir especial.
Existe modo de desligar a mente? Estou sempre martelando uma nova ideia, outrora surge uma teoria e, no silêncio da noite, palavras cruéis dominam meu ser. Não acho jeito de desligar nunca. Estou sempre, o tempo todo, pensando.
Descartes, um filósofo velho, diria que meu pensamento é apenas a comprovação da minha existência, e eu o responderia com algum xingamento mundano. Não quero existir. Contrariamente, adoraria ser um vasto nada no gigantesco universo! Uma estrela, quem sabe. Melhor ainda, um mar de estrelas. Ou uma estrela-do-mar, também serve.
━━━━ Não se preocupe, Sra. Jackson, ele estará a salvo no acampamento. ━━ Grover confirma, engolindo em seco.
━━━━ Prometa.
Meus olhos os observam como um jogo de ping-pong, indo de um lado para o outro. Sally falou com tanta ferocidade que tive medo, não dela, mas da promessa.
━━━━ O que está acontecendo? ━━ Percy murmura, se aproximando com um passo confuso. Como se ele, assim como eu, temesse o que está por vir.
━━━━ Prometa, Grover! ━━ A Jackson demanda, lágrimas brilhando nos olhos já molhados pela chuva. ━━━━ Mantenha-o seguro de qualquer um que venha atrás dele, que queira machucá-lo ou que sequer olhe torto para ele. Você entende?
Por um segundo, senti o mundo parar. A batida do meu coração é alta em meus ouvidos, acelerando com a possibilidade da minha morte e medo do que está acontecendo. Sabe quando sente que tem algo errado? A qualquer momento alguma coisa vai quebrar, e temo que essa "alguma coisa" seja eu. Ou Percy. Ou ambos.
Consigo ver Grover voltar seu olhar para o melhor amigo, engolindo em seco todos os medos.
Como deve ser, ter uma promessa como essa em mãos? Cuidar de uma pessoa já é difícil, mas um semideus? Deve ser um inferno.
━━━━ Eu prometo! ━━ Ele diz mesmo assim, gritando por cima do som de trovões.
Em um movimento súbito, Sally se vira para mim. A mulher hesita, analisando minha figura com tanta delicadeza que quase esqueço da situação que estamos.
━━━━ Você também.
Queria voltar ao início desse capítulo e questionar, quem teve a ideia idiota de contar a minha história? Certamente não fui eu, nem sequer desejei ter essa vida, quem dirá contar meus erros e acertos por aí.
Se controla, Helena. Ninguém quer ouvir seus resmungos sobre o que não quer ou quer fazer, as pessoas querem histórias. Tudo bem, lhe darei histórias. Uma grande e controversa, se é isso que gostam.
Neste momento, eu sabia exatamente o que estava fazendo: me condenando. Se o peso de cuidar de alguém já é pesado para um sátiro como Grover, o que será disso para mim? Devo relembrar que sou apenas uma criança, não faço ideia de nada. Sequer sei quem eu sou.
━━━━ Do que está falando?
━━━━ Prometa que não vai deixá-lo, Helena. ━━ Sally praticamente implora, me observando com aqueles olhos tristes.
━━━━ Mas... ━━ Abro a boca para discordar, dizer que mal os conheço e que não faço ideia de nada, mas engulo as palavras. Sally prometeu a Ivy que me protegeria, seria injusto abandoná-la. ━━━━ Eu prometo.
Um espécime de rugido ecoa pela floresta, nos relembrando do monstro que está cada vez mais próximo. Cambaleio para perto de Grover, e Sally caminha até o filho. Eu queria dizer mais coisas, perguntar porque eu? mas deixei quieto. O que quer que Jackson viu em mim, vou fazer o melhor para a provar correta.
Vou proteger Percy Jackson e não o deixarei sozinho.
━━━━ Preciso ir agora, querido.
━━━━ Ir para onde? ━━ Percy pergunta, confuso e visivelmente chateado.
A chuva parece pesar mais agora, como se a fúria de Zeus aos poucos se tornasse dor. Talvez o deus dos céus também sentisse pena, ou, quem sabe, sou apenas muito criativa.
━━━━ Não posso ir com vocês. ━━ Sally revela, alternando o olhar entre mim e Percy.
De novo com esses malditos olhares. O que ela sabe que eu não sei? Na cabana, ela não parecia saber de nada, mas quanto mais tempo ficávamos juntas, mais ela me olhava estranho. Pensei que tivesse algo haver com eu ser filha de algum deus, mas lembrei-me que Percy Jackson também é, logo, ela não realmente se importa com isso.
Somente se, e digo se, ela souber quem é a divindade por trás da minha criação. Ou pior, ela sabe quem eu sou.
Será que eu e Sally Jackson já nos conhecemos antes?
━━━━ Por quê?
━━━━ Ela é humana. ━━ Grover diz, tentando explicar a situação e recebendo olhares feios em resposta.
O sátiro entende a mensagem e os deixa conversar em paz, voltando para o meu lado com um sorriso sem graça.
━━━━ Você precisa ser corajoso. Lembre-se do que te ensinei e das histórias que te contei, principalmente das histórias, elas explicam tudo.
━━━━ Não! Mãe, eu não vou te deixar. ━━ O mais novo interrompe, lágrimas nos olhos.
Meus olhos também lacrimejam ao assistir à cena, apesar de que tento não encarar. Minha mente volta para Ivy e Henry, imaginando nos milhares de modos a qual eles podem ter se machucado na estrada. Achei que estaria fazendo a decisão certa os deixando para trás, mas não parei para pensar que isso também significaria que Sally iria embora eventualmente.
Mortais não podem entrar no acampamento.
━━━━ Perseus, me escute! ━━ Com os dedos trêmulos, ela segura o rosto do loiro nas mãos. ━━ Não há nada de errado com você. Você é único. Você é um milagre. E você é meu filho. Aguente firme, enfrente a tempestade. Eu te amo.
O monstro quebra árvores na distância, acelerando meu coração. Está se aproximando aos poucos, logo seremos comida de Minotauro, se não conseguirmos escapar.
━━━━ Precisamos ir. ━━ Grover insiste assustado, outra vez se intrometendo na conversa.
━━━━ Entregue seu casaco. ━━ A mulher exige, estendendo a mão ao filho. Percy questiona, mas ele o interrompe. ━━━━ Ele sente o cheiro dos semideuses, certo?
Ainda assustado, Underwood concorda com a cabeça. Um plano começa a bolar em minha mente e sei que é o mesmo na mente da Jackson, e pela maneira que os olhos do loiro arregalaram, ele também pensou.
━━━━ Se sentir seu cheiro em duas direções, podemos confundi-lo para que tenha tempo de fugir.
━━━━ Mãe, não...
━━━━ Ei. Vai ficar tudo bem.
Um som arrepiante interrompe o momento, trazendo a atenção de todos ao Minotauro que reaparece derrubando árvores e rugindo raivoso. Agarro o sátiro com força e sigo as ordens de Sally, caminhando para longe. Mal percebo Percy ao outro lado do garoto, sem casaco, e ajudando o amigo a caminhar junto de mim. Olho por cima dos ombros e vejo a mais velha correr para longe, se aproximando do monstro sem medo.
Deixo de prestar atenção e Grover acaba tropeçando, me levando consigo. Tento o ajudar, pedindo desculpas e procurando Percy com os olhos, mas congelo quando o vejo correndo de volta a mãe. Merda.
━━━━ Helena, segura ele!
Engulo em seco, mas faço o que o sátiro manda. Vou correndo até Jackson, mas é tarde demais. Apenas a alguns passos de distância do loiro, vejo a mãe do mesmo se tornar pó nas mãos do Minotauro. Pó. Sally Jackson evaporou diante dos olhos do próprio filho.
━━━━ Não... ━━ Percy murmura baixo, tirando uma caneta do bolso.
De repente, a caneta se torna uma espada brilhante em suas mãos. Não me pergunte como, pois eu não faço a menor ideia, mas sei que provavelmente deveria o impedir. Lutar com esse monstro é suicídio.
━━━━ Percy, não! ━━ Grover berra da distância, ainda deitado no chão.
━━━━ Percy! Espera! ━━ Tento o interromper também, acelerando os passos.
Minha tentativa é inútil, pois o garoto corre de encontro com o Minotauro, usando da espada para o ferir. Os dois deslizam pelo chão, o bichano parando perto até demais de mim.
Eu nunca fui religiosa, muito menos por deuses gregos — que eu costumava ver como mitos — mas comecei a rezar. Eu implorei por todos os nomes que eu me lembrava, todos os doze olimpianos e outros deuses menores. Talvez eu reclamasse até demais da vida que levo, mas não quero morrer agora e muito menos desse jeito. Preciso manter minha promessa a Sally, preciso voltar para Ivy, preciso cuidar do meu irmão.
━━━━ Saí daí! ━━ Grover pede, mas eu ignoro.
Agarro minha adaga com força, correndo até o monstro, que agora se ergue em minha direção, e o esfaqueando na pata. Percy surge não muito depois, batalhando com o monstro também. Sou arremessada contra uma árvore, choramingando de dor, mas me ergo outra vez e marcho até a besta.
A dedicação de Jackson se estendeu até mim, e sei que não vou parar. Minha mente ainda implora por uma ajuda divina, rezando e chorando para que alguém tenha piedade de nós. Zeus, Poseidon — até Ares seria uma grande ajuda. Qualquer um.
Eu só não quero morrer.
Minha adaga reluz com o brilho da espada do Percy, manchada por uma espécie de sangue nada comum, e eu a finco no Minotauro outra vez. Outra vez. E mais uma outra vez. Perdi a contagem de quantas vezes o esfaqueei, e de quantas vezes fui arremessada para longe no processo. Me sinto como um saco de pancadas. Não vejo o que está acontecendo com Jackson, focada demais na minha própria batalha, mas quando olho para cima, após bater contra um tronco pela milésima vez, o vejo no topo do monstro.
O gosto de vitória surge cedo demais na minha boca, pois antes que eu pudesse comemorar, sou agarrada pelo pescoço pelo Minotauro. Ele grita, ruge e aperta meu pescoço com tanta força que borrões surgem na minha visão. Não consigo gritar, ou chorar. Eu só fico ali. Morrendo.
De repente, as garras que me prendiam se tornam pó e eu caio no chão, desmaiando com a pancada.
━━━━ Eu acho que ele é o escolhido. Ou ela. ━━ Diz uma voz feminina, sua voz soando infeliz com a segunda opção. Não estou entendendo absolutamente nada.
Mais sussurros seguem após isso, mas eu não faço ideia do que está acontecendo. Uma voz masculina e severa ordena que todos se aquietem, porém, não sei dizer quem é. Minha visão continua borrada, cabeça borbulhando e corpo dolorido de tantas pancadas.
Se eu morri, espero estar nos campos de Elísio — não que eu mereça.
━━━ Bem-vindos ao acampamento, Percy Jackson e Helena Vega. Estávamos a espera.
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