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❝ É o juízo final
A história do bem e do mal
Quero ter olhos pra ver
A maldade desaparecer ❞
Juízo Final
Nelson Cavaquinho
O SER HUMANO É ENSINADO DESDE TENRA IDADE SOBRE os perigos do mundo e a importância de respeitar e preservar a natureza através de histórias folclóricas passadas de geração para geração, essas histórias são repletas de criaturas lendárias que até hoje habitam o imaginário popular. Não se sabe ao certo como essas lendas deram início, mas como toda boa narrativa ela possui um fundo verdadeiro.
Criaturas folclóricas são reais e estão entre nós, elas não habitam somente os confins da imaginação humana ou os livros de fantasia, mas também o mundo real. Vivem em sigilo entre os seres humanos considerados "normais", mantendo a harmonia e interferindo apenas quando necessário. Elas aparecem onde menos se espera, podendo ser uma dona de bar atraente, um charmoso boêmio boa pinta, um mendigo mal humorado e, até mesmo, uma doce estudante de engenharia ambiental que aos fins de semana é figurinha carimbada nas gafieiras. Como é o caso da jovem e bela Maria Flor.
Anteriormente, a muitos e muitos anos atrás, quando as florestas ainda tomavam conta da maior parte do país e as grandes capitais nem sonhavam em ter ruas asfaltadas, Maria Flor estava no auge de seu poder e transformação. Sendo conhecida por muitos como Comadre Fulozinha, uma entidade protetora das florestas, ela corria pelas matas assustando aqueles que não lhe deixavam uma oferenda, trançava rabos e crinas de animais nas fazendas de forma que ninguém era capaz de desamarrar e açoitava com galhos de urtiga aqueles que a confundiam com outra entidade protetora das matas ou desrespeitavam seu lar e os animais que ali habitavam.
Entretanto com o passar dos anos houve o aumento acelerado da urbanização, diminuindo as florestas e causando o êxodo, não apenas de indígenas e fazendeiros, como de várias entidades que antes habitavam aquelas matas, incluindo Maria Flor. Nesse tempo acabou por ser acolhida de braços abertos pela Inês, criando forte laço com a feiticeira e estando sob sua proteção desde então. Agora o seu antigo codinome, Comadre Fulozinha, não passa de um mito, tornando sua forma de entidade apenas uma lenda narrada verbalmente de geração para geração.
Como ocorreu com muitos dos seus amigos, os quais ela considera como membros de sua família, Maria Flor vive despercebida pelas ruas movimentadas da cidade do Rio de Janeiro, dividindo seu tempo entre os livros da faculdade, o trabalho no bar e as gafieiras da vida. Dona de uma personalidade forte, vocábulo desbocado e cabeça quente, a jovem mulher que parou em seus vinte e dois anos costuma deixar Inês preocupada com seu paradeiro, assim como toda 'boa' filha boêmia.
Por causa de seu comportamento rebelde e estourado, a jovem raramente é vista sem a companhia do ruivo mal-encarado Tutu. O grandão a protege como um irmão mais velho ciumento, assustando qualquer rapaz que ouse aproximar-se de Maria Flor enquanto entrega todos os passos da mesma para Inês. Para não ter o "irmão" em seu pé durante seus passeios noturnos, é comum as fugas sorrateiras quase que na mesma intensidade que as broncas e os castigos que recebe da mãe adotiva.
— Bom dia, Isac! — Agraciou Maria Flor segurando os saltos nas mãos quando vislumbrou o melhor amigo nas ruas. — Você não vai acreditar em como foi a minha noite.
— Oxé! Não estava de castigo, Florzinha? — Perguntou o rapaz aproximando da garota. Ele era um belo homem negro, utilizava perna mecânica e um lenço vermelho amarado ao redor da cabeça. Sendo um dos amigos mais velhos dela, estava acostumado com o seu modo de ser e agir, incluindo os esporos que ela recebia da Inês e até recebia alguns por tabela por proteger Maria.
— Castigo é uma palavra muito forte, prefiro "convidada a ficar em casa" — Ela sorriu de escárnio e apontou com o queixo para a padaria localizada do outro lado da rua. — Vamos tomar um café, duvido que a mãe vai me deixar comer antes do almoço quando ver o estado que estou. — Maria parou na calçada após atravessar a rua e apontou para o próprio corpo. Os cabelos negros estavam desarrumados, a maquiagem havia borrado devido o suor de tanto dançar e os pés descalços estavam sujos e latejavam — Melhor roda de samba desse Rio de Janeiro, na próxima vez você vem comigo, Isa.
— Eu? Eu ainda vou ser morto pela Inês por sua culpa, Florzinha! — Reclamou Isac ingressando na padaria com a amiga, ele aproveitou o momento para surrupiar metade um misto quente que havia sido deixado sobre o balcão. — Isso se o Tutu não me matar antes.
— Como se eu fosse deixar uma coisa dessas — Maria revirou os olhos e balançou a cabeça negativamente enquanto ria fraco — Sabe que quando está comigo não precisa surrupiar comida, não sabe?
— Ia ser jogado fora — Isac moveu os ombros e guardou o pão no bolso das bermudas — Esse não é para mim.
— É para o nosso amigo? — Perguntou Maria Flor após pedir e pagar dois salgados — Acho que irei dar uma passadinha no seu bairro mais tarde, isso se dona Inês não me matar. Aproveito para falar um oi para o Iberê, faz tempo que não falo com ele, e alimentar os cachorros de rua. Aposto como ele sente minha falta.
— Olhe! Acho que ele não está não — Zombou Isac acompanhando Maria no café da manhã — Ele reclamou bastante, o que houve entre vocês na última vez que se viram?
— Ah! O de sempre — Maria revirou os olhos e bufou — Eu fui na sua casa, né? Encontrei Iberê no caminho, 'tava chapado discutindo com uns caras, fui ajudar ele, apaziguar a briga.
— Apaziguar a briga? Você?
— Deixa eu terminar, faz o favor! — Reclamou Maria ao ser interrompida. — Fui apaziguar do meu jeito. Acredita que o mal agradecido ficou puto comigo? Me caguetou para a minha mãe, ligou pra ela do orelhão, cara! Disse que conseguia se virar sozinho, como se tivesse no ápice de sua forma. Os caras podiam acabar com ele, Isac.
— É meio improvável. Mas você não estava errada não, Florzinha. — Falou Isac concordando em partes com a melhor amiga — Quantas vezes já levantei ele nas vielas, tanto que esses dias atrás...
Infelizmente Maria Flor não estava mais prestando atenção na narrativa do Isac sobre suas desventuras com Iberê, toda a sua concentração estava focada na excêntrica matéria que passava na televisão da padaria no exato momento. Naquela manhã um boto cor-de-rosa, animal tipicamente de águas fluviais encontrado somente na região Norte do país, havia aparecido morto na praia.
— Não! — Urrou Maria levantando do banco abruptamente e derrubando o prato de vidro onde estavam os salgados antes de devorá-los com Isac, espatifando o objeto no chão em vários pedaços. — Droga!
— Deixe que eu limpo — Disse o atendente da padaria ao ver as expressões assustadiças da menina e perceber o problema.
— Oxé, Florzinha! — Isac deu um sobressalto, interrompendo sua história e olhando confuso para a jovem. — O que houve?
— É o Manaus! — Sussurrou Maria com a voz fraca e embargada pelo choro, apontando diretamente para a televisão — Ele morreu, Isac! Eu... Eu preciso ir...
— Vou te acompanhar. — Falou Isac correndo para acompanhar Maria Flor para fora da padaria.
— Não! Preciso desse tempinho sozinha. — Ela balançou a cabeça negativamente — Me viro com o Tutu e com a minha mãe. Você avise o Iberê sobre o Manaus, ele é um dos nossos.
— Tem certeza que não quer companhia? Você está abalada — Disse Isac segurando uma das mãos de Maria Flor. — Sei que ele era seu amigo.
— Tenho — Maria sorriu sem humor e assentiu positivamente de maneira discreta — A gente se vê, Isa.
— Cuidado! — Sussurrou Isac quando Maria deu um beijo rápido de despedida em sua bochecha e sorriu sem humor, acompanhando com o olhar a menina se afastar apressadamente pelas ruas.
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