Keilah Montgomery
Era difícil eu não fazer algo que eu queria, não havia motivo para não irmos aquela hora. Apenas andar ou até correr um pouco, aliviaria o turbilhão de pensamentos que tive após a longa conversa com meu irmão.
Desci as escadas terminando de comer uma maçã, Junior logo atrás. Papai estava assistindo a TV, tinha um programa músical passando.
- Não sei como a mamãe não destruiu isso. - Disse Junior parando para olhar o aparelho.
- Ela destruiu. - Disse meu pai, sorrindo. - Eu consegui consertar.
- Podemos ir ao centro? - Pedi ao papai.
- Já moramos no centro. - Disse mamãe desanimada, ao aparatar na sala olhando torto pra televisão.
Papai olhou para a mamãe chateado, mas nada disse. Papai era extremamente submisso a ela, e comecei a entender o lado dele, ou melhor, o dela. Não me lembro de nenhum cara não ter sido um pouco submisso a mim, principalmente os que ficaram comigo, era fato que tínhamos o poder de dominar a situação e comecei a notar que aquele comportamento não era nada sadio para um relacionamento.
- Ah... - Fiquei sem graça quando olhei para ela, não sabia se me desculpava ou voltava para meu quarto.
- Eu quero roupas pra correr. - Justificou Junior.
- Hum, está bem. Sumam da minha frente. - Respondeu mamãe conjurando uma carteira, onde provavelmente tinha dinheiro de trouxa.
Ela não olhou pra mim e foi pra cozinha pisando pesado. Provavelmente estava chateada comigo, eu já estava acostumada.
Fui me vestir mais animada. Coloquei um dos vestidos cafona da minha mãe que eu nunca tive coragem de usar em Hogwarts. Pensei em comprar vestidos de trouxas mesmo, os mais semelhantes ao nosso estilo, não era tão difícil achar uma loja estranha no centro comercial.
Combinei com Sophia de irmos juntas até ao Beco Diagonal no primeiro dia que eu iria ficar em sua casa. Planejei comprar um vestido novo para ir na inauguração da loja dos Gêmeos, eles mereciam, mas eu não iria querer gastar nada dos meus pais para ir ao noivado da Patrícia, eu iria com o vestido do Bar Mitzvah do meu irmão.
- Porque quer ir com um vestido diferente na loja dos gêmeos? - Perguntou meu irmão no caminho, ele tinha ouvido a conversa que tive com nossos pais no primeiro dia das férias.
- Ah... eu só quero me sentir melhor.
- Quer chamar atenção.
- Mais do que sou capaz? - Perguntei com sarcasmo.
- Com certeza.
- Ah... Então descobriram o conteúdo da profecia que mamãe vivia falando? - Queria jogar papo fora.
- Pois é, eu não sei quem faria uma coisa dessas.
- Eu chutaria Dumbledore.
- E porque ele?
- Ele parece alguém interessado em dar distaque ao Potter, quanto mais a sociedade bruxa se apegar numa crença de paz e libertação, melhor.
- Em partes, faz sentido.
O dia estava lindo e quente no simpático bairro de Soho. A caminhada para o centro e a loja de artigos esportivos era longa, mas muito relaxante mesmo com o excesso de carros aquela manhã.
- Ouvi mamãe dizendo que não acha que a profecia era uma arma, porque para Voldemort era.
- Você-sabe-quem já tinha conhecimento sobre uma parte da profecia e ele só queria saber o conteúdo completo. "Um tem que morrer pela mão do outro". Era essa a maior informação...
- Concordo com a mamãe sobre não ser uma arma.
- E como não é?
- Gustav, a partir do momento que você segue as palavras de uma profecia você fecha suas opções. É só Voldemort mandar qualquer um matar o Potter e acabou a conversa.
- Você tem noção do absurdo que acabou de dizer?
- Ah... Desculpa, não quero que ele morra, foi só uma reflexão.
- Sei.
- E como sabe dela? Como sabe essas coisas?
- Sou da AD, Jenna, esqueceu? Voltei no trem com a Gina, Neville e a Luna, eles me contaram. Tive que deixar meus amigos de lado na volta, era importante essa conversa.
- A tal Armada, entendi. - Uma cena no meio do caminho me chamou atenção. Uma moça descontraída olhando um pequeno aparelho de mão passeando com um cachorro na coleira me fez ter uma dúvida. - Você conseguiu conjurar um patrono?
- Sim, não demorou muito. Meu patrono é um corvo.
- Ah. - Entendo Fobos, agora. - O meu...
- Um tigre. Ouvi os gêmeos falando.
- Ah! - Crusei os braços. Me incomodava meu irmão saber mais de mim do que eu dele.
- Neville contou do dia que foram na Sala Precisa. Você tem muita sorte.
- Tenho?
- Aqueles caras gostam de você, assim como você deles. Provavelmente você tem sentimentos pelos dois, mas ainda me causa asco você se aproximar do Snape, além de ser ilegal...
- Eu não tinha pensado sobre essa questão dos gêmeos, talvez eu goste dos dois do mesmo jeito e não quero magoar ninguém nessa história.
- Acho que já estão magoados... Não consigo ver uma resolução pra isso.
- Se eu, que já vi várias cenas do futuro ainda não vi uma resolução, talvez não haja, Gustav. A questão é simples, eu me afastar.
- Como diz a vó Eileen: o que não tem remédio, remediado está.
- Odeio essas frases. Os trouxas são cheio desses conformismo.
- Humm. Isso foi inteligente da sua parte.
- É, as vezes eu sou. - Falei com sarcasmo descruzando os braços. Paramos no cruzamento da Jermyn St. para observarmos algumas lojas e aguardar o farol. - Você realmente quer roupas para correr?
- Ah sim, não foi uma desculpa.
- Só porque eu disse que o Phillip ficava bonito com aquela roupa?
- É claro que não.- Retrucou ele dando de ombros, olhando um grupo de trouxas adolescentes passando falando alto. Eu duvidei dele. - Eu quero roupas confortáveis, Phillip me deu muitas dicas.
- Sei.
- E a gente pode tomar um café depois. - Falou ele olhando para as lojas.
- Não sei se já tomamos café inglês.
- Verdade. Acho que só na Alemanha, mesmo. Sei que existe variações.
- Variações daquele suco preto!? Eles são criativos.
- Podemos procurar um menu degustação.- Observou ele atravessando a rua, para chegarmos na Lillywhits.
- Degustação de café!? Caramba.
- Viu como a gente não conhece nada desse mundo? Eles são incríveis.
- Sei. - Não, não sei.
Nós no máximo tínhamos andado em um parque em Kiel quando pequenos e algumas vezes no Beco Diagonal, sempre em ambientes bruxos. Comecei a entender o ponto de vista da Sophia e o medo e encantamento dela sobre o mundo dos não bruxos. Eu ignorava muito eles, desprezava a maior parte da sua existência, mas realmente, eles eram interessantes.
Quando entramos na loja um vento incomum nos atingiu na cabeça, talvez eles tivessem criado alguma coisa para deixar a loja mais fria no calor. Fiquei um tempo debaixo da coisa tentando entender e achar o mecanismo.
- Provavelmente é ar condicionado. - Respondeu meu irmão olhando para mim.
- Ar condicionado? Condicionado a quê?
- A um local só, ou a um ambiente fechado.
- Humm... - De fato tinha algo sendo "condicionado" ali.
Acho que minha avó tinha algo parecido em Kiel. A tecnologia trouxa era muito útil.
- A gente poderia ver mais repartições. - Disse Gustav, quando me juntei a ele a um ponto da loja. - Parece ter muito mais opções no verão.
Decidi procurar pelo vendedor da última visita, não que eu quisesse paquerar mas aquele comportamento me ajudava a desenfadar o meu dia.
Duas vendedoras estavam discutindo mais ao longe, e uma moça de cabelos volumosos crespo, me chamou atenção, ela apontava para onde estávamos e tive a impressão de estarem falando da gente. A outra vendedora loira de cabelos lisos, parecia entediada e acabara de perder a discussão bufando. Junior estava olhando um manequim masculino com roupas justas.
- Isso é ridículo. - Disse ele olhando para a vestimenta estranha.
- É. Se você achava que eu com roupas justas ficava estranha, imagina um cara vestindo isso aí.
- É para ciclismo. - Respondeu a garota da discussão , ao se aproximar.
Ela parecia empolgada. Tinha os olhos caramelos bem arregalados e uma gentileza refletidas nas enormes bochechas. Eu a colocaria no pedestal de uma criança impressionada com algo novo, mas talvez fosse só um charme.
- Para andar de bicicleta? - Disse Gustav olhando para ela descontraído.
- Exatamente. Notei que são diferentes, então não deixei a Barbara vir atendê-los. Ela é muito racista e preconceituosa, fica sempre denegrindo o corpo dos clientes, não sei como ainda trabalha aqui.
- Diferentes? Racista? - Perguntei.
- Sim. Sabe como é o racismo estrutural, para a maioria é inevitável o uso de vocabulários preconceituosos. Você são diferentes, eu chutaria que são amish, mas pode ser deselegante da minha parte pré determinar.
- Amish? - Perguntei mais um vez confusa.
- Não somos amish. - Respondeu Junior. - Eu sou judeus. Minha irmã não é nada.
- Nada? - Indaguei para ele com irritação.
- Não diga isso.- Prosseguiu a moça com um ar explicativo, como se tivesse corrigindo uma criança. - Ela deve ter sim suas convicções, ainda mais se viver com você, o que é incrível, já que é um negro e judeus, a minoria das minorias, só falta ser gay. - Concluiu ela com um saltinho.
- Eu não sou gay! - Disse meu irmão bufando. - Minha irmã é quase.
- Ah, você é bi? - Perguntou a moça com grande olhar de curiosidade.
- Bi o quê? - Perguntei bufando.
- Bissexual. Você se interessa por ambos os sexos, talvez seja até mais que isso já que gênero é algo questionável. Pode levar anos para uma pessoa se conhecer.
- Eu prefiro me chamar de versátil.
- Versátil!? AH! - E riu gostosamente, a vendedora com as mãos na boca olhando para os lados. - Me perdoa. Desculpa. É que é uma ótima palavra para se descrever! Vou até anotar... Versátil. Adorei!
- Minoria... - Resmunguei desviando o olhar, tentando entender do que ela estava falando.
- Bom, imagino que a comunidade em que vivem não tenham tantas pautas sociais vigente e divergentes a serem discutidas, o que pode ser benéfico, a ignorância alivia muitas dores mas o conhecimento ainda salva mais vidas, a nossa sociedade precisa se unir para...
- É o que, garota?! - Indaguei impaciente. - Comunidade!? A gente é ignorante ou algo do tipo pra você?
- Minha irmã não está a par dessas paltas.
- Gustav, a gente só quer a merda de uma calça.
- Ah, pelo menos, o seu vocabulário de baixo calão está bem atualizado.
- Como é que é!?
- Moça, eu quero uma calça para correr. - Disse meu irmão suspirando de tédio.
- Ah, me perdoa, me perdoa mesmo. - Disse ela com as mãos no rosto. - Não reclamem de mim para o gerente, por favor, é minha primeira semana, preciso desse emprego. É que é mais forte do que eu, consegui entrar na Universidade de Londres esse ano, e eu preciso me estabilizar nessa cidade.
- Tudo bem, tudo bem.- Disse ele com um sorriso gentil. Meu irmão parecia estar analisando cada parte do rosto moça.
- Venham comigo. - Chamou a moça suspirando, se dirigindo ao outro lado da loja. - Essa parte está as roupas mais apropriadas para uso profissional. Os esportistas que participam de maratona sabe, preferem shorts mas temos vários tipos de tecidos...
- Tem um chamado Tactel? - Perguntei logo atrás dela.
- Tem sim.- Respondeu se virando com empolgação.- Esse é mais usado no inverno, mas também pode ser um auxiliar para quem quer perder peso suando.
- Faz total sentindo. - Me lembrando do emagrecimento do Phillip.
A vendedora passou a mão em um dos cabideiros expostos, como se estivesse apresentando algo incrível.
- Essas são unissex, mas temos também um corte mais masculino. Seu irmão é alto. - Disse a moça olhando para o Gustav mais a diante. - Temos uma ala só para pessoas mais altas.
- Minha amiga é mais alta do que ele.
- Então, somos minúsculas mesmo! - Disse ela soltando um riso contido. - Nossa, eu não me apresentei! - E se aproximou do meu irmão. - Eu sou Keila. Sabe como é, aqui eles nos dão um roteiro para seguirmos mas não acho nada orgânico, eu gosto de ser natural, o que me rendeu muitas demissões esse ano. - Murmurou pensativa coçando a testa com uma das mãos e olhando para o chão.- Mas ainda tenho esperança de dar certo agora, é que eu sou do interior. Vocês são da onde?
- Moramos a um quilômetro daqui.
- Que interessante. - Disse ela olhando para um ponto teto, pensativa. - Ainda acho que parecem amish ou mórmons, mas sinceramente, sem medo, me contem, porque esse estilo tão arrojado? - Não éramos arrojados. - Judeus ortodoxos não se vestem assim.
- Não sou ortodoxo, sou progressista.
- Aí meu Deus, eu não estou entendendo nada! - Exaclamei má vontade me chateando novamente. - Voltamos novamente nesse assunto?
- Bom, se você disse "aí meu Deus" provavelmente é cristã, expressão mais comum entre os cidadãos cristão nessa região . Existe Deus no seu coração. - Ela parecia me consolar, o que não fazia sentido.
- Jenna gosta do Natal, mas estamos indo mais para o Hanukka da vovó, no final do ano.
- Vai falar nosso endereço também, Gustav? - Indaguei levantando uma das sobrancelhas.
- Perdão, estou estudando Ciências Sociais, e pretendo partir para estudos em campo, meu foco é sempre nas minorias. Vocês são muito intrigantes, talvez os mais que já vi por aqui. Se vê que são irmãos pelos olhos, que perdão pela empolgação. - Disse ela parecendo se abanar com as mãos. - São os pares de olhos verdes mais lindos que já vi na vida.
- Obrigado. - Disse meu irmão com timidez.
- Você são filhos do mesmo pai e mãe?
- Como é que é!? - Indaguei surpresa.
- É que ele é negro, tem um nariz muito fofo que eu chutaria descender de culturas mais ao centro da África, mas você não. - Gustav começou a sorrir de uma maneira contemplativa, mas tinha o olhar de quem estava se encantando, eu conhecia aquele olhar. - Você tem traços mais para o norte do continente, talvez o nariz mais otomano.
- Tá me chamando de nariguda?
Gustav começou a rir.
- Não! De jeito nenhum, você é muito linda. - Keilah começou a ficar corada e começou a sacolejar as mãos. - Já pensou em ser modelo? Talvez não de passarela, seus quadris de parideira não são tão convidativos nos dias atuais, mas fariam sucesso no século XVIII. Mas me refiro a modelo de revistas e catálogos, isso com certeza, suas panturrilhas são fofas.
- Agora me chamou de gorda e parideira?
- Não! - Disse ela começando a coçar as mãos. - Não veja de forma pejorativa, eu sei que o patriarcado e a indústria da moda distorcem nosso vocabulário, mas você tem um corpo mais pin up, sabe? É muito mais atraente que aquela moças que optam por passar fome. É muito triste a selvageria do capitalismo.
- Jenna, ela está te elogiando. - Disse Gustav tentando conter o riso.
- Não parece. Você disse que a tal Barbara era quem julgava os corpos dos clientes.
- Sim, mas de maneira negativa, eu enalteço. Vocês são lindos, quartos anos têm?
- Eu tenho 17, minha irmã 18.
- Aí que lindinhos! Eu tenho 19.
- E já tem toda essa bagagem de conhecimento? - Perguntou meu irmão que pareceu se esquecer do que veio fazer na loja.
Keilah ficou mais corada. Apesar do tom de pele pardo mais escuro em do que o meu, sua matriz brilhosa demostrava carinhosamente os diferentes rubores que existiam. Ela olhou um ponto da sala e ficou mais séria. O tal Wilian estava se aproximando.
- Ela está incomodando vocês? - Disse Wilian com um tom de voz mais grave.
- Não. - Disse meu irmão o medindo com indiferença.
- Olha só, o rapaz que me chamou de trapo velho da última vez.
- Não foi isso que eu quis dizer.
- E você. - Disse ele ignorando meu irmãos e me fitando com arrogância. - Continua esquisita e mal vestida.
- Isso foi inadequado. - Disse a vendedora esmorecendo.
- Você faz os clientes de objeto de estudo, isso é perda de tempo, você distrai a clientela com esses assuntos idiotas.
- HEY! - Disse para o tal Wilian com severidade. Ele sim estava sendo grosseiro. Me perguntei onde estava a simpatia do outro dia, deduzi que deve ter ficado chateado por eu não ter ligado. - Não fala assim com ela, não! Quem você pensa que é para agir desse jeito...?
- Agora eu sou o supervisor, e você com certeza não é o público dessa loja.
- Então você não é o gerente?
- Você não sabe o que é um supervisor? Tanto faz, isso é irrelevante. Eu vou contacta-lo sobre o comportamento dessa aí...
- Vai merda nenhuma! - Eu estava precisando dar o meu chilique. - Eu que vou reclamar de você, agora! Keilah, me leve ao seu gerente, vamos comprar metade da loja e reclamar da falta de respeito desse ridículo!
Keilah parecia não saber o que fazer. Tive que puxar ela pelo braço para longe do tal supervisor. Gustav não ficou tão chocado como era de costume quando eu ficava nervosa, nos acompanhou com cara de deboche.
- Você sempre anda na defensiva? - Disse ela assustada. - Não precisa fazer nada.
- Se eu quiser, eu faço até chover!
Não que a gente tenha comprado metade da loja, mas com certeza mamãe ficaria chateada novamente por ter gastado todo dinheiro que ela deu.
- Estou ainda chocada. - Disse Keilah, tomando um milkshake na frente da Lillywhits. Após uma hora comprando qualquer coisa que eu via, ela ganhou uma pausa e fomos tomar sorvete. - Ninguém nunca me defendeu assim.
- Não fique impressionada. - Disse Gustav o lhando irritando para as sacolas em cima de uma cadeira na frente da sorveteria. Estávamos sentados nas cadeiras a frente da calçada. - Minha irmã é exagerada. Ela ficou furiosa
por ser chamada de esquisita.
- Não é minha culpa que minha mãe não me dá roupas melhores.
- Olha, sem querer ser intrometida. - Disse Keilah olhando para as sacolas. - Parece que vocês tinham bastante dinheiro.
- Nossa, é mesmo. Ahhh.- Disse me entristecendo mesmo saboreando um ótimo sorvete. - Mamãe vai ficar chateada de novo comigo.
- Eu te ajudo dessa vez.
- Não, Gustav, eu preciso conversar com ela sozinha.
- Eu sinto muito. - Disse Keilah pensativa. - Eu devo ter te irritado com meus assuntos, me perdoa mesmo.
- Nem é sua culpa, hoje o dia não começou bem.
- Me desculpa novamente. Você não precisava ter gastado tudo isso... Apesar de que isso fez eu bater a meta do mês.
- Merecido.
- Obrigada. Eu lamento pelo Wilian, parece que o cargo fez ele ficar arrogante, essa fofoca que rola, mas não me importo, ele é jovem, acredito que todos nós perdemos o freio em algum momento...
- Você não deveria ser tão benevolente. - Disse com seriedade.
- Bom... espero que gostem do sorvete. É o mínino que posso fazer por vocês terem gastado tudo.
- Não precisava nos convidar.
- Ah, vale a pena, vocês são interessantes.
- É. Esse sorvete é melhor do que os que comecemos na nossa avó, em Kiel.
- Kiel?
- Norte da Alemanha.
- Aí meu Deus, vocês tem uma avó judia?
- Sim.
- Ah... não. Ela passou por aquele lugar... Auschwitz? - Disse ela baixinho, como se tivesse falando um palavrão.
- Não. - Disse Gustav pensativo. - Nem em Belzec, Chelmno, Majdanek, Sobibor ou Treblinka.
- Aí que bom... - E colocou a mão no peito.
- Mas a mãe dela sim.
- Ah... - Disse ela murchando. - Sinto muito.
- Nossa bisavó tentou conseguir comida mas foi pega. Foi morta em Belzec. Vovó achou a lista quando voltou para Alemanha...
- Papo triste, Gustav. - Tentei interromper. - Não precisa...
- Mas ela ficou bem quando o nosso vovô Gibbon achou ela nos Estados Unidos.
- Espera! Vocês são netos da Eileen Gibbon?
Eu e meu irmão nos encaramos intrigados.
- Sim.- Disse Gustav.
- Que incrível! - Disse ela batendo os pés no chão. - Li o artigo dela semanas atrás. Muito interessante a analogia que ela fez entre um possível mundo fantasioso com o nosso mundo. Uma historiadora um tanto diferente.
- Ela escreveu o que!?- Perguntei chocada.
- Bom, ela criou um mundo hipotético em que seres místicos, mitológicos, fantasiosos etc, tem preconceitos entre si assim como nossa sociedade real.
Encarei Gustav que sorria sutilmente impressionado olhando para a moça.
- Você sabia disso, Junior? - Perguntei a ele.
- Talvez. - Disse ele sorrindo e evitando o olhar.
Suspirei de preocupação.
- Afinal, o que significa patriarcado? - Tentei mudar de assunto.
- Infelizmente é como nossa estrutura social evoluiu com as regras dos homens brancos, héteros e parentemente " cidadão de bem", em que determina a forma que as mulheres em geral devem se comporta.
- Tipo misóginos? Sophia fala muito sobre isso. Diz que a Sonserina só tem misógino.
- Não sei o que é Sonserina, mas concordo que misóginos é um dos braços doentiu do machismo estrutural.
- Tem muito "estrutural" na sua sociedade.
- Na nossa. - Corrigiu ela com carinho. - Essa sua amiga Sophia está certa. - Mais uma vez. - Mas afinal, onde vocês estudam?
- Colégio interno. - Disse eu antes do Gustav abrir a boca.
- Tipo o St. Brutus? - Perguntou ela preocupada.
- Não sei o que é isso, mas é melhor você não saber onde é.
- Entendo. Acho que colégio interno algo depreciativo. Parece coisa de pais que não gostam dos filhos.
- É. Minha mãe eu sei que não gosta muito de mim.
- Sinto muito.
- Parece o Neville, se desculpa o tempo todo. É coisa de religioso? - Perguntei.
- Bom, a avó do Neville é anglicana.- Respondeu Junior.
- Não sabia. - E não faço ideia do que seja, imagino que outra religião.
- Você poderia conversar mais com ele, ele fala bem de você.
- Hum. - Resmunguei. Mesmo Neville sendo gentil comigo eu não tinha muito interesse nele.
- Já pensou em ser advogada? Você tem espírito de quem sabe se impor e com certeza seria uma ótima militante na sua escola contra esses tais misóginos.
- Tentei dizer isso a ela hoje cedo.
- É mesmo? - Disse Keilah sorrindo para meu irmão.
- Papai é promotor. - Disse eu de má vontade.
- Olha, aí! Tem espírito de quem sabe julgar o certo e o errado.
- Olha aí, Gustav, o que ela disse.
- As meninas tem medo de você.
- Ah, mas é um ponto a ser trabalhado. Ninguém é perfeito aos 16 anos, somos um processo construtivo. Acredito que seja capaz que equilibrar os seus ânimos com auto reflexão, é um trabalho diário mas ajuda muito, eu mudei bastante, pra melhor.
Tinha que admitir. A trouxa era adorável.
- Obrigada. - Nesse momento notei que a sorveteria tocava a música que Jorge me apresentou no sonho daquela noite. - Ah, não... - Disse triste, olhando para trás, buscando a origem daquele som. - É a nossa música, a música do Tylenol.
- Você namora?
- Não. Ele não me quer.
- Mentira. - Disse Gustav terminando seu sorvete.
- É complicado, eu namorei o irmão dele. - Aquela altura eu não me preocupava mais com quem ela era, eu só queria jogar pavo fora, desabafar.
- Essa problemática me lembra os exercícios de ética. - Disse Keilah colando seu copo vazio de milkshake em cima da mesa. - Você prefere causar um desentendimento entre irmãos ou sacrificar um sentimento?
- Pois é.
- De qualquer forma, acho você muito nova para estar passando por isso.
- Ela gosta de problemas mais velhos.
- Gustav, não. Não vamos brigar.
- Ah, desculpa.
- Melhor a gente ir embora. - Disse depois de terminar o sorvete.
- Eu tenho que voltar ao meu turno. Foi uma conversa muito enriquecedora. Vocês têm telefone?
- Não. - Disse Gustav. - Mas temos televisão.
- Já é alguma coisa. - Disse ela rindo. Seu sorriso tinha algo inocente, nunca parecia debochar. - Bom, muito obrigada. Se quiserem um dia bater papo novamente, sabem onde me encontrar Jenna e Gustav Gibbon, muito prazer, eu sou Keilah Montgomery.
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