Amor
☼ Além do Sol | Capítulo 2
Sábado:
O supermercado é um dos lugares que eu mais gosto, sem brincadeira. Fazer compras é uma divertida experiência quando ainda não é você quem está pagando, aliás.
Eu andava pelos corredores explorando cada produto, bisbilhotando os carrinhos alheios e tentando convencer minha mãe a levar o que eu queria. Sempre fui louco por chocolate belga, mas o preço era de cortar o coração... por isso, não lembro a última vez que senti o gosto.
Para o meu azar, naquele dia ela estava com menos paciência do que o habitual. Ao contrário de mim, ela odiava sair de casa com todas as forças.
Não dei a mínima para suas queixas, minha cabeça andava viajando em outro lugar, mais especificamente num pedacinho de papel anônimo. As palavras daquele bilhete não saíram do meu pensamento desde que o encontrei.
Todos em casa perceberam que eu agia estranho e inquieto, mas tentei disfarçar ao máximo para que não notassem o meu desespero. Maria Lúcia tentou bater um papo, mas fingi que tinha pego no sono antes dela começar. E ela fingiu que acreditou.
Joice Alves tinha mesmo me mandado um recadinho? Mas como? Quando? Por que a garota mais linda do colégio queria se aproximar de um banana? Eram muitas perguntas cruzando minha humilde cabecinha.
Acontece que não estava assinado, podia ser de qualquer pessoa... mas eu queria TANTO que fosse dela. A letra era horrorosa, mas algum defeito ela tinha que ter, pelo menos.
- Daniel!
- O quê? - retirei um fone do ouvido.
- Cuidado com o meu pé!
- Ah... desculpa, mãe - forcei um sorriso. - Eu tô meio distraído hoje.
- Então me devolve essa porcaria de carrinho e presta atenção no que está fazendo! - exaltou-se, tomando o carrinho das minhas mãos. - Droga.
Não era nada fácil lidar com ela, mesmo sem o meu pai por perto. Acho que a gravidez e uma união indesejada contribuiu muito para que ambos se tornassem amargurados.
Já pensei muito se os dois chegaram a se amar de verdade algum dia. O amor é uma das maiores loucuras que um ser humano pode sentir, sem sombra de dúvidas.
De qualquer forma, estava com problemas suficientes para me preocupar do que as relações ruins da minha família. Não ligo se alguém acharia fútil, mas minhas preocupações de jovem estavam me torturando. Ao passar em frente à prateleira de biscoitos, vi um casal de idosos dando um selinho carinhoso.
Muito fofos, mas que me lembraram de algo terrível, preocupante e vergonhoso: eu nunca havia beijado ninguém em toda a minha vida.
Sinceramente, eu ainda tinha doze anos, então não devia dar tanta importância para isso. Ou será que devia? Não, pois assim como eu, imagino que meus amigos sequer haviam encostado nos lábios de alguém. Vitor dizia que sim, mas como levar a sério?
Às vezes era engraçado imaginar qual seria a sensação de um doce beijo apaixonado. Engraçado e amedrontador, já que se tratando de mim, as chances de dar errado eram imensas.
Os outros garotos tinha a sorte de falar desses assuntos com o pai, uma liberdade que nunca experimentei sem rolar um clima constrangedor. O meu nunca me ensinou nada relevante sobre o mundo masculino, apenas como se embebedar no sofá, assistindo a novela das nove.
Meu Deus, eu não queria ficar pensando naquelas coisas.
- Mãe, cadê o meu cereal? - questionei, vasculhando no carrinho.
- Não vou poder comprar essa semana.
- Como assim!? Mas eu gosto tanto de comer cereal de manhã...
- Então quando você tiver um emprego e ganhar um salário, aí você decide o que deve comprar - suspirou.
- Você sabe que ainda não tenho idade para ajudar em casa - cruzei os braços.
- Eu sei, Daniel. Mas sua irmã e eu não vamos te sustentar para sempre.
- Então por quê sustentam o meu pai? - nos encaramos. - Não lembro a última vez que ele ajudou em alguma coisa.
- Não quero ter essa conversa aqui - rapidamente empurrou o carrinho até um caixa mais próximo.
- Que novidade...
Minha irmã trabalhava naquele mesmo mercado durante a semana. Há tempos não a vi pegando um livro ou caderno para estudar em casa, o que era estranho, já que ela queria muito prestar um vestibular.
Enquanto isso, minha mãe bufava o tempo todo. Só sei que estava cansado de ouvir grosserias, como se eu fosse o motivo do fracasso que era a vida deles. Resolvi confrontá-la.
- Sabia que eu não pedi pra nascer? Eu nem sequer queria ter essa família! Não pedi essa vida, não pedi nada disso e também não tenho culpa do que vocês...
- Daniel!
- E não acho justo você descontar as suas frustrações em mim. EU TÔ CANSADO.
- VÁ PRO CARRO! - apontou para a saída.
Um silêncio súbito cercou as pessoas ao redor, que me encaravam com desprezo, enquanto apenas se ouvia o som dos caixas eletrônicos. Revirei os olhos e saí pelos fundos.
Fiquei esperando ela voltar para o carro uns dez minutos, tempo suficiente para eu ouvir muita música alta... sem ninguém mandando eu diminuir o som para não danificar os tímpanos.
Assim que voltou, voltamos para a casa sem dizer uma só palavra. Somente me mandou prender o cinto.
Que palhaçada, nem a minha caixinha de chicletes ela havia pego. Antes de deixar o mercado, coloquei os fones de volta e simplesmente furtei uma embalagem para guardar no bolso. Os meus favoritos eram de melancia ou canela.
Em casa, enquanto eu guardava as compras, minha mãe foi separando o que ia utilizar para preparar a janta. Eu adorava peixe. Assim que terminei, fui subindo direto para o quarto desfrutar aquele fabuloso sabor de canela aromático.
- Daniel? - chamou antes que eu subisse as escadas.
- Oi.
- Quase esqueci o seu negócio - disse retirando do bolso uma caixinha de chicletes. - Toma.
- Ah... obrigado, mãe.
No quarto, Maria Lúcia separava sua coleção de CDs espalhados pelo tapete. Estava toda orgulhosa por ter grudado na parede um pôster do Dinho, vocalista dos Mamonas. Segundo ela, um dos caras mais populares que já surgiram na história da música nacional.
Meu sonho era que um dia a Joice me admirasse igual a Lúcia admirava aquele cara. Já que minha irmã parecia entender tão bem de certos tópicos, resolvi que minha conversa de pai e filho seria com ela mesmo.
- Chicletes? - ofereci.
- Não, maninho. Valeu. Não gosto de canela.
- Tem de melancia também... o que você tá fazendo? - abri um espaço e me sentei no tapete, ficando ambos frente a frente.
- Organizando minhas coisas, algo que o senhor também devia fazer - riu-se.
- Muito engraçada... - olhei para os lados até ela entender que eu precisava falar alguma coisa, mas não sabia começar. - Você namoraria o Dinho?
- Eu me casaria com esse homem.
- Beijaria também?
- Demais! - Afirmou em êxtase.
- Como você beijaria ele?
- Que tipo de pergunta é essa? - me encarou. - Com a boca.
- Eu sei, mas é que... como!? Tipo assim... - minha dicção era de dar pena.
- Aonde está querendo chegar? - respondeu contendo o riso.
- Nada demais, eu só quero saber como é beijar. Pronto, falei.
- Dani, pelo amor de Deus.
Lúcia caiu na gargalhada enquanto eu suspirava profundamente. Precisava ser mais direto, já que conversar sem clareza não ia me ajudar em nada.
- Já terminou?
- Por quê quer saber sobre isso? - sorriu.
- Acho que é normal eu ter certas curiosidades com o passar dos anos. Diz aí, como foi seu primeiro beijo?
- Ai, Dani... eu nem lembro direito.
- Que mentira. Quantos anos você tinha?
- Uns treze, por aí.
- Exatamente a idade que vou fazer logo, logo - engoli seco e me aproximei um pouco. - Continua.
- Foi com um menino da minha escola. O primeiro beijo geralmente é horrível, principalmente se for muito pressionado.
- Como assim?
- Minhas amigas literalmente me jogaram pra cima dele, eu nem queria beijar aquele esquisitinho. Nos beijamos atrás da escola com TODOS os alunos em volta gritando "BEIJA, BEIJA" - detalhou arregalando os olhos. - Foi horrível.
- Falando assim parece mesmo - até senti um calafrio. - Mas a sensação, como é?
- Bom, eu não sabia o que precisava fazer. Só fiquei imóvel enquanto ele enfiava a língua na minha boca e mexia igual o Yoda bebendo água.
- Caralho, que nojo - Cobri o rosto com as mãos.
- Um conselho: sempre certifique-se de que não está com bafo - riu expelindo seu hálito na minha direção. - Por isso, troque a canela por menta, pelo amor de Deus. Mas e ai, quem você vai beijar?
- Ninguém, Maria Lúcia - senti minhas bochechas corando, sinal de que a conversa precisava acabar.
Certo, se antes eu tinha medo de dar meu primeiro beijo, agora sentia pavor. Ainda estava refletindo sobre aquele bilhete e que decisões eu podia tomar.
Ela concluiu, dizendo que precisava ser com a pessoa certa e deixar fluir naturalmente, sem pressa ou qualquer tipo de nervosismo. Autoconfiança era uma coisa muito preciosa.
Por último, aconselhou a ter o primeiro beijo com uma garota que também nunca tivesse feito isso. Caso fosse ruim, ambos podiam se sentir menos culpados.
Para me deixar mais tranquilo, resolveu amenizar o clima e levantou-se, colocando um de seus cds para tocar no radinho.
- Dança comigo, maninho?
- Agora?
- Sim, faz tempo que não te vejo dançando - riu-se.
- Não sei não.
- Dança ou conta quem é a garota - me encarou. - Acha que ninguém percebeu essa cara de besta, ultimamente? E agora essas perguntas?
- Tá bom, só um pouco - sorri.
Lúcia notando minha aflição, tentava a todo custo retirar o meu foco. Ela dançava atrás de mim como se estivesse em uma festa, me chamando para participar.
Andei sentindo falta daquela Lúcia divertida e irreverente, pois já fazia um bom tempo que ela andava calada e até grossa em alguns momentos. Uma pena que a personalidade extravagante ia embora rápido, então eu tinha que aproveitar.
Ela abriu as janelas, aumentou o volume e fechou a porta do quarto. Me convidou para sua pista de dança imaginária, coisa que não fazíamos juntos há muito tempo.
E de repente estávamos nós dois de novo dançando "Pelados em Santos", fazendo backing vocal e deixando o tapete desarrumado. Yoda não podia ficar de fora, é claro. Era bom ter minha irmã de volta nem que fosse só por uns minutinhos.
Não sei o que acontecia comigo aos domingos, mas eu passava o dia todo sentindo uma forte melancolia. Principalmente ao fim da tarde.
Lúcia geralmente saía com Yoda para passear, ele adorava. Minha mãe chamava a tia Clarice e ambas trabalhavam no crochê e tricô a tarde inteira. Já o meu pai, ficava na dele, fumando e dormindo na poltrona.
Sendo sincero; domingos são monótonos pra caramba, mas por alguma razão isso não me incomodava, apenas trazia conforto e uma falsa sensação de paz. Tomar café vendo os desenhos animados da manhã era bom, me sentia até melhor.
De vez em quando eu saía com a antiga bicicleta amarela do meu pai e pedalava pela cidade toda, sempre ao pôr do sol. Era um dos únicos tesouros que dava valor, pois ganhou do meu avô há muitos anos.
Eu queria muito saber o quão longe eu poderia ir, saber como era viver em algum lugar distante e bonito, onde eu não precisasse me preocupar com nada. Já sonhei com uma casa na colina, rodeada de árvores e flores, com uma linda vista para o horizonte.
O sonho chegava ao fim quando via a primeira placa de aviso sobre estar chegando próximo à saída da cidade. Então eu dava meia volta e pedalava para casa.
Entretanto, nunca deixei de sonhar.
Durante a noite, os roncos da Maria Lúcia e o Yoda lambendo o saco atrapalhavam minha linha de raciocínio. Seguia pensando no bilhete anônimo, incessantemente.
No dia seguinte, levantei cedinho e tomei um copo de leite (sem cereal) e fui correndo apreensivo para a escola. Dona Telma, nossa vizinha, acabou me molhando enquanto regava seu canteiro. Ainda bem que não foi muito, mas não tinha tempo para brigar por isso.
Chegando lá, tentei evitar a Joice no portão e passei discretamente entre os alunos. Antes mesmo de dar bom dia para o Vitor, respirei fundo e retirei o bilhete todo amassado da minha mochila.
- Cara, você tá horrível.
- Presta atenção nisso aqui, ó - apontei.
- Isso é o que eu tô pensando, Daniel?
- Depende. O que você tá pensando?
- Que você recebeu um bilhetinho anônimo.
- Sim, ué. É isso mesmo - olhei em volta, checando caso alguém se aproximasse.
- Então é o que eu tô pensando - Vitor lia o papel diversas vezes.
- Ah, bom. Pode me devolver?
- Que estranho, parece que eu já vi essa letra antes.
- Impossível - pisquei retirando o papel de suas mãos. - Só se você bisbilhotou no caderno da Joice Alves.
- O quê? - soltou um riso. - Você tá acreditando mesmo que foi a Joice!? Foi mal, mas não parece algo que ela faria.
- Quem mais podia ser!?
- Sei lá. QUALQUER PESSOA. Não sei quantas admiradoras malucas você pode ter por aí, por incrível que pareça.
- Então o que eu faço!? - lhe dei um soco no ombro.
- Só tem um jeito de descobrir - me encarou dando um sorriso malicioso.
Igor chegou meio atrasado, mas ainda assim, consegui lhe passar todas as informações. Ele me pareceu um tanto quanto surpreso e desconfiado.
Nos sentamos atrás de um banquinho, escondidos, para observar o que acontecia à nossa volta. Quando a Joice chegou, parecia estar procurando por alguém.
Olhava discretamente de um lado para o outro, até ser puxada para outro banco com suas amigas.
- Vocês viram?
- Acho que ela tava procurando o Dani - comentou Igor.
- Não perde tempo, garoto. Vai pra cima, chama ela num canto e só vai!
- Vitor, as coisas não funcionam assim não, sabia? - suspirei.
- Ah, eu já estava me esquecendo. Prefiro que me chamem de Vitinho agora.
- O quê?
- É mais legal, sabe? Dá um charme, as meninas adoram.
- Não vou te chamar assim.
- A gente te chama de Dani, por que você não pode me chamar de Vitinho!?
- Silêncio os dois! - interrompeu Igor. - Olhem ali.
Pedro aproximou-se, balançando aqueles longos cabelos... e Joice foi correndo para abraçá-lo. Ela havia encontrado quem estava procurando, afinal. Ambos deixaram o pátio.
Eu fiquei ainda mais confuso, é difícil pra caralho entender as mulheres. Antes da aula começar, nós três seguimos em direção ao banheiro.
Fiquei andando em círculos enquanto os dois de braços cruzados, tentavam amenizar aquela situação. Igor parecia preocupado.
- Enfim, amigo... seria melhor se você parasse de se torturar e perguntasse logo se foi ela quem colou isso em você - disse ajeitando o óculos no rosto.
- Ficou louco? Ela vai rir da minha cara.
- Essa é a única garota que conversa com você, gênio - Vitor retrucou. - Se não foi ela, quem foi então? O Gugu?
Gugu era o apelido do Adriano, um menino baixinho da nossa sala, meio cabeçudo e de cabelo loiro bem ralinho.
- Não foi você quem disse que podia ser qualquer um!?
- Me pegou agora, vou ficar quieto.
- Eu não consigo, pessoal. Não posso simplesmente sair daqui e falar com ela. O que eu digo? Oi? Olá? Eai, foi você quem me mandou isso? - levantei a bilhete.
- Já que você tem tanta dificuldade de chegar em mulher, posso demonstrar como se faz quando eu encontrar a sua irmã.
- Vai tomar no seu cu.
- Nossa, eu só tô zoando - Vitor fazia tantas piadinhas com a Maria Lúcia, que me faziam refletir sobre ele realmente gostar dela. - Mas ela é tão linda, tem franjinha...
- Dani, faz o que você achar melhor. Nós vamos te apoiar independente de qualquer coisa - Igor me deu um tapinha nas costas e encarou Vitor. - Não é!?
- Eu não prometo nada.
Sempre fui covarde, eu admito.
Tenho muita dificuldade em enfrentar meus problemas de frente, por menor que eles sejam. Minha melhor alternativa para tudo sempre foi fugir.
Ou então, criar cenários falsos na minha cabeça e passar horas interagindo como se fosse o meu mundo de verdade. Naquele momento, tudo o que eu mais queria era ir embora, mas não para a casa.
Mas sim para qualquer lugar, qualquer canto que me fizesse esquecer dos problemas da minha família, os da escola e os da adolescência que estavam por vir.
Eu não queria de jeito nenhum sair dos doze anos e entrar naquela atmosfera sombria que é "estar crescendo". Acho que eu não queria evoluir, descobrir as dores da vida e me tornar igual as pessoas que eu convivia.
De repente, o tal Adriano abriu a porta do banheiro e foi usar o mictório, enquanto nós três permanecemos em silêncio. Assim que terminou, ele lavou as mãos e foi embora. Nunca gostei de usar mictório, acho nojento demais.
Foi estranho o quanto nos sentimos intimidados por um minuto inteiro.
- Sinto que qualquer dia o Gugu vai cometer alguma atrocidade - Vitor arrumou sua mochila e saiu - Vejo vocês na sala.
- Você tá legal, Dani?
- Eu tô bem, relaxa - me sentei encostado na porta. Igor fez o mesmo ao meu lado.
- Sabe, a minha avó diz umas coisas que servem pra você, eu acho.
- Para mim? Tem certeza?
- Sabe quando o céu fica nublado e você fica em dúvida se vai chover ou não?
- O que tem? - o encarei.
- Assim que você sai de casa, leva um guarda-chuva, mesmo sem ter certeza do que vai acontecer - sorriu. - Se chover, você estará seguro.
- Mas se não chover, eu levei o guarda-chuva atoa?
- Não, Dani. Pelo menos você tentou se proteger - me encarou de volta. - Se tivesse saído de casa com as mãos vazias, podia ter pego uma tempestade.
- Mas podia não ter pego também.
- Exatamente. Mas em qual dos dois casos você tinha menos chance de se molhar?
- O primeiro - suspirei. - Aonde isso se encaixa no meu problema?
- A Joice é o tempo nublado e você o carinha do guarda-chuva, pensa um pouco.
- Mas o que...
- Se você NÃO sair com o guarda-chuva; ou seja, não falar com ela, pode ser que você não se molhe... mas talvez saia encharcado de lágrimas se ela se interessar por outro - deu uma ajeitada nos óculos. - Mas caso você sair prevenido, ou seja, ir falar com ela...
- Posso me molhar.
- Pode. Mas pelo menos você tentou alguma coisa, o que é melhor do que a culpa de se molhar sem ao menos ter tentado nada. Entende?
- Caralho, isso foi muito profundo, Igor. Valeu.
- Vai em frente, tigrão - estalou os dedos, se levantando em seguida.
- Tudo bem, mas antes eu preciso mijar.
- Não precisava ter me dito, mas ok.
Eu diria que essa avó é uma grande filósofa contemporânea, pois aquelas metáforas ocuparam um espaço gigantesco na minha cabeça. Entrei na cabine com o vaso para não ter que o usar o mictório, Igor disse que me esperaria do lado de fora. Durante a aula, Joice finalmente conseguiu me dar um oi.
Ela sentava atrás de mim, literalmente. Se esticasse o braço, poderia colar um papel na minha mochila com facilidade, já que eu a pendurava na cadeira. Imaginar isso me deixou ainda mais inquieto.
Do outro lado, Pedro mal prestava atenção na aula. Só queria ficar rabiscando naquele gesso idiota do braço dele, que por sinal, tinha um "Joice" assinado.
- °Dani?° - sussurrou em meu ouvido.
- °J-Joice?° - respondi sem virar para trás. A professora Renata enfiaria um giz na minha garganta, caso me pegasse batendo papo.
- °Me empresta uma caneta vermelha?°
- °Claro, lin... que sim!° - rapidamente me virei e lhe entreguei a caneta.
- °Valeu, você é um fofo.° - sorriu.
Eu era um fofo? Me senti nas nuvens por alguns segundos, mas rapidamente caí de volta no chão ao ver o Vitor dando risadinhas do meu lado.
Igor parecia feliz por mim e deu uma piscadinha. Na hora do intervalo, comi meu sanduíche com tanta pressa que mal pude aproveitar direito. Se minha mãe visse, daria um sermão sobre desvalorizar comida, nada com muito sentido.
Disse aos dois que estava decidido a conversar com ela, eu finalmente seria o cara que saía com o guarda-chuva em mãos. O que era estranho DEMAIS, acho que poucas vezes na vida tomei alguma atitude importante.
- Beleza, você já sabe o que vai dizer?
- Não faço a mínima ideia, Vitor. Calma.
- É Vitinho, cara.
- Por favor não riam de mim, muito menos você.
- Não tava rindo de você na sala, bobão. Alguém não parava de jogar bolinhas de papel na cabeça do Gugu.
- Eu vi - Igor conteve o riso.
- Ok, eu vou chegar nela sem perguntar de bilhete nenhum. Apenas bater um papo e ver no que dá.
- Tô confiando em você, irmão.
- Vai nessa - Disse Igor.
Joice estava no refeitório, sentada e comendo uma tangerina, igual a um anjo, enquanto suas amigas esperavam na fila da cantina. Era o momento perfeito, eu precisava agir de uma vez por todas.
Fui me aproximando lentamente, sentindo o corpo todo suar frio e com as mãos trêmulas feito gelatina. Como eu disse, ter coragem e tomar atitudes drásticas nunca foi o meu forte.
Assim que fizemos contato visual, senti minha boca secar e ela permaneceu me olhando assustada, em silêncio... tentando entender o que eu estava fazendo. Nem eu sabia, na verdade.
Olhei de longe os meninos me encarando discretamente, mas antes que ela dissesse alguma coisa eu fiz o que costumo fazer diante de situações complicadas: fugi.
Simplesmente saí correndo de lá sem explicação alguma, o que a deixou muito confusa. Passei correndo em frente aos meus amigos e notei todos aqueles outros jovens me olhando.
- DANIEL, VOLTA AQUI! - gritou Igor antes de correr atrás de mim.
- Que filho da puta.
E então, cheguei até o banheiro, me joguei no chão e tranquei a porta. Como eu queria poder abrir um portal mágico ou cavar um buraco enorme para escapar dali.
O tempo nublado se transformou numa tormenta com raios, relâmpagos e muito caos. Me escondi feito uma tartaruga dentro do casco, isso dizia muito sobre mim e como eu era.
Um verdadeiro banana.
- Dani!? - Igor batia na porta. - Cara, o que foi isso? Você tá bem!?
- Que porra foi essa? - Vitor apareceu.
- Acho que ele surtou.
- Você acha, é?
- Ele não responde. Daniel! - continuou batendo na porta.
- Galera... eu tô bem. Só preciso de uns cinco minutinhos, ok? - respondi ainda deitado e com o corpo retraído. - Talvez dez... ou quinze, beleza?
- Você falou com a Joice?
- Não!
- Passou a maior vergonha. Você sabe disso, né? - Vitor parecia irritado.
- É, eu tô ciente... podem me deixar sozinho?
Igor sinalizou para Vitor ir embora e fez o mesmo em seguida. Deitado naquele chão imundo, entendi que o amor era uma das maiores loucuras que eu já havia sentido.
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