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SABE QUANDO VOCÊ PRECISA IR A ALGUM LUGAR muito legal e não sabe o que vestir? Talvez isso seja um sinal de que você seja um semideus. Ou só é algo tão comum que acontece até com os vira-latas.

Como você deve ter se cansado de ler - e caso seja manauara: viver -, o calor em Manaus era insustentável. Se você tirasse a camisa de algum dos vira-latas e a torcesse, provavelmente encheria um balde inteiro só de suor.

Dadas as circunstâncias, os vira-latas tiveram que se revezar nos banheiros da Biblioteca de Sumé para trocar de roupa. O uniforme da Vila Curumim agora dava lugar a novas roupas com muito menos suor.

A maioria deles não utilizavam outra camisa há anos, tinham se habituado a sempre vestirem o uniforme da Vila Curumim, que sempre se mantinha limpo por causa do encanto do local. Bem, aparentemente aquilo só era válido nas terras da Vila.

― Essa 'tá legal? ― Victor saiu do banheiro com a mochila aberta em mãos e vestindo uma camisa preta com o logotipo da banda Sepultura abaixo da ilustração de uma coluna vertebral.

Sim, usar preto em meio a uma onda de calor excessivo é loucura, mas o calor do Sol parecia não afetar os filhos de Guaraci. E nem Clarisse, que naquele momento estava comendo biscoitos de polvilho com José e Kauê do outro lado da Biblioteca e vestida como se fosse para um show de rock pesado.

Sepultura? Não é coisa de funeral? ― Estela estava sentada em um sofá, vestindo um vestido rosa florido que com certeza era a última vestimenta que alguém esperaria que uma filha de Anhangá vestisse.

― Não, é uma banda. Acho que eles ainda tocam. ― Victor respondeu, ajeitando a camisa.

― Só tem coisa de banda? Você nem gosta tanto de música assim! ― ela perguntou.

― Foi o Anhum quem colocou essas roupas na minha mochila. Acho que teria sido melhor se a Caupé tivesse escolhido que nem fez com você, porque ele me deu até uma camisa do Vasco. ― ele tirou uma camisa do time da mochila e mostrou. ― O que é bem chato porque eu sou gremista.

Estela deu uma risadinha e sorriu para o irmão. E após isso, seu sorriso sumiu lentamente ao lembrar daquele garoto desconhecido abraçando o seu irmão na noite anterior.

― Hum, Vi... Quem que é aquele garotinho? Aquele que você chamou de irmão. ― ela cruzou os braços.

― Ah, o Caco? ― Victor olhou para ela. ― É um dos filhos de Guaraci, foi o primeiro dos meus irmãos com quem falei. Bom, não o primeiro, mas foi o único com quem eu conversei de verdade.

― Caco? ― ela arqueou a sobrancelha.

― Um apelido carinhoso para Caio, sabe? Tipo Teté. ― ele explicou e sorriu. ― Ele é simpático, e fofo, sendo sincero. É meu irmão há um dia mas já parece que eu conheço ele há anos!

Estela revirou os olhos.

― Achei feio.

Victor franziu a sobrancelha e riu ao ver como a sua irmã mais nova estava reagindo.

― 'Tá com ciúme, Estela? ― ele continuou a rir.

― Quê? Não! ― ela respondeu indignada e bateu o pé. ― Não tenho ciúmes! Só estou preocupada contigo! Tenho que te proteger, esqueceu? Quem garante que esse menino não é um assassino?

― Eu tenho certeza que um menino de nove anos com menos da metade da minha altura não vai me matar, Teté. ― Victor ainda estava rindo.

A conversa foi interrompida pela chegada de Isabella, que estava com as mochilas nas costas e um mapa em mãos. Como todos os outros, tinha trocado sua roupa da Vila por peças mais confortáveis e adaptadas para o tempo quente.

― 'Já estão prontos, gente? ― ela perguntou. ― Sumé conseguiu arranjar umas passagens de uma ônibus até Presidente Figueiredo, daí a gente segue andando pelo mato até a divisa com Roraima.

Os dois afirmaram positivamente com a cabeça.

― O Lipe te falou sobre tudo, alemão? ― Isabella lembrou-se das informações que o colega tinha lhe passado.

― É, ele falou. ― Victor afirmou com a cabeça novamente. ― Tau, sete monstros, empresa com nome alemão, símbolo de morcego e essas coisas.

― Beleza, beleza. ― Isabella suspirou. ― A cada minuto essa bandeira fica pior... Precisamos falar com o Anhum.

― Como? A gente liga pra ele?

― Não. É só mandar um correio elegante.

O SOL JÚNIOR E A LUA MIRIM caminhavam em direção ao escritório de Sumé, passando pelas seções de literatura francesa, literatura russa, literatura japonesa e cortando caminho pela seção de poemas gregos.

― Esse correio elegante é tipo aquelas cartinhas de escola? ― Victor relembrou os momentos escolares. ― Nunca recebi nenhum. ― abaixou a cabeça. ― Mas eu sempre ganhava doce dos professores porque eles ficavam com pena, então acho que saía no lucro!

― É mais ou menos isso. ― Isabella apontou para a seção de literatura romana, onde entraram. ― A gente pega um papel em formato de coração vermelho ou rosa, escreve o nome de quem queremos chamar, e aí pedimos para Rudá enviar a mensagem.

― Quem é Rudá? ― Victor perguntou. ― É tipo o carteiro Jaiminho do Chaves, só que mágico?

― Não é um carteiro, é um deus! ― ela o corrigiu. ― É o deus do amor e o mensageiro de Tupã. Ele quem envia o correio elegante. Quer dizer, quando não está ocupado apresentando o programa dele.

― Ele tem um programa? ― Victor perguntou confuso.

― Eu explico depois. ― Isabella parou em frente a duas portas. ― Chegamos.

Os dois pararam logo em frente a duas portas distintas. A primeira porta era feita de uma madeira escura e bem lustrada. Mas o que chamava atenção mesmo era a segunda porta. Ela era feita de uma madeira com as cores do arco-íris, era uma explosão e cores.

― Creio que isso não seja uma porta LGBT. ― Victor tocou na porta. ― Por que tanta cor numa porta só?

― Deve ser o escritório das sete filhas de Tupã. ― Isabella também tocou na porta. ― Elas são meio que a representação dos arco-íris, cada uma é uma cor.

― Legal! ― Victor se afastou da porta. ― E o que elas fazem aí dentro?

Isabella olhou para a porta novamente.

― Dizem que elas ficam fofocando sobre a vida dos semideuses. ― Isabella contou. ― Principalmente a deusa da história.

― Tem uma deusa da história? ― Victor sorriu entusiasmado.

― Sim, Guaipira. ― a garota respondeu. ― Dizem que ela é muito linda, divônica, babilônica, faraônica, guaranítica, inteligentíssima.

Ok. Talvez eu tenha alterado o que ela falou para me elogiar, você não faria o mesmo? Mas ok, ok. Não posso adulterar documentos e blá, blá, blá. Vou deixar lerem o original, embora eu ache que ela deveria ter dito isso!

― Sim, Guaipira. ― Isabella respondeu (de verdade desta vez). ― Dizem que ela costuma anotar a história de grandes semideuses em livros junto com a irmã dela, a deusa da escrita.

Victor ficou parado em frente à porta, concordando com a cabeça.

― Você acha que ela está anotando nossa missão? ― ele virou-se para a colega.

― Talvez. ― ela olhou para o garoto. ― Acha que somos grandes semideuses?

― Bom, você é meio baixinha, então grande já é uma palavra meio forte. ― Victor começou a rir.

Isabella o olhou brava e deu um pisão no pé do garoto, que soltou um sonoro "Au"!

― Pensando bem. ― Victor fez uma expressão de dor. ― Acho que você é uma grande semideusa sim.

― Obrigada. ― Isabella deu um sorriso orgulhoso e seguiu até a porta escura, batendo três vezes nela.

A porta abriu-se sozinha e os dois entraram. O escritório era surpreendentemente comum. Era como um escritório comum de um advogado, e foi realmente um choque para um semideus ver algo normal.

― Infantes! ― Sumé sorriu sentado em sua cadeira. ― De que modo posso ajudá-los? Já estão se ausentando do recinto?

Victor não entendeu uma palavra sequer do que Sumé disse, então apenas ficou calado e seguiu Isabella.

― Nós já sairemos daqui a pouco, senhor. ― ela respondeu. ― Mas gostaríamos de saber se o senhor tem algum papel de correio elegante aqui. Precisamos falar com Anhum.

― Ah, claro, claro! ― Sumé abriu uma de suas gavetas e tirou um coração de papel, entregando para a garota. ― Você tem pagamento?

― Sim, obrigada.

Isabella pegou uma caneta vermelha de Sumé e apoiou o papel na mesa dele. Quando foi escrever, acabou parando. Não conseguia lembrar a ordem das letras "n" e "m" em Anhum. O "m" vinha no início? Ou vinha no final?

A garota era tão acostumada a organizar as coisas na Vila e ajudar as crianças que muitas vezes esquecia-se de que ela mesma também era disléxica. Ainda estava parada com a caneta na mão, esforçando-se para pensar, mas a cada vez que pensava no nome Anhum, as letras pareciam se embaralhar mais, como em uma daquelas sopas de letrinhas de criança.

― Tudo bem, Isabella? ― Victor aproximou-se dela.

Ela respirou fundo e suspirou.

― Sim, eu 'tô bem. ― escreveu o nome de Anhum no papel, torcendo para que não tivesse cometido nenhum erro. ― Agora é só colocar uma moeda.

― Uh, já sei! É uma moeda mágica que só deuses e semideuses usam? ― Victor palpitou.

― Quase. Nem tudo é mágico no nosso mundo! ― Isabella tirou uma moeda do bolso.

Não parecia uma moeda de um real comum. Na verdade, nem redonda era. Era um quadrado de ouro mal cortado, tinha também algumas palavras inscritas:

DUCADO

PINDORAMA

2024

Do lado de trás, havia um símbolo de uma letra P decorada de forma elegante.

― Isso é um ducado. Foi o primeiro tipo de moeda a ser totalmente feito no Brasil. É coisa dos holandeses, se não me engano, então a gente modificou e trocou o "Brasil" por "Pindorama", já que os dois significam a mesma coisa. ― ela colocou a moeda em cima do coraçãozinho.

Os olhos de Victor brilharam em luz dourada ao ver a moeda, que também começou a ter um brilho diferenciado em sua visão. Ao ver aquilo, Sumé levantou-se e começou a encarar Victor, que desviou o olhar por se sentir intimidado.

― Eu lembro de ter estudado isso! Domínio holandês em Pernambuco. Na época de 1600... eu acho. ― Victor explicou. ― Eu sou péssimo com números.

― Olha. ― Isabella fingiu aplaudir. ― Quando eu te conheci, achei que tu serias mais um dos garotos adolescentes idiotas que chegam lá. Mas até que tu és inteligente, alemão.

― Entendo tudo de história. ― Victor falou. ― Quer dizer, não tudo. Mas bastante coisa. Meu patrão tinha um monte de livros de história do Brasil lá no trabalho, então eu lia para passar o tédio. Era um pouco difícil por causa da dislexia, mas eu gostava.

― Eu não curtia muito. Prefiro biologia, sabe? ― Isabella falou. ― Principalmente pássaros! ― os olhos de Isabella quase brilharam, o que possivelmente aconteceria se fosse noite. ― Eu amo pássaros, tenho até um caderninho onde eu anoto sobre eles e desenho. E talvez, só talvez eu tenha gostado dessa bandeira para poder ver mais deles. ― ela deu uma risadinha. ― Vou até mostrar o caderninho para o Anhum quando chegarmos na... Minha Jaci, o Anhum!

Isabella recuperou-se da rápida distração e pegou o coraçãozinho, segurando ele junto com o ducado. Ela aproximou-os da boca e deu um beijinho no papel.

― Rudá, senhor do amor, mensageiro dos deuses. ― ela falou em alto e bom som. ― Por favor, aceite a minha oferenda e envie minha mensagem.

A moeda sumiu em sua mão. Isabella então jogou o coração de papel para cima, e ele logo saiu voando para longe da Biblioteca.

― O beijinho no papel é tipo o quê? Um selo? ― Victor perguntou.

― É literalmente um selo. ― ela explicou. ― Rudá é do tipo romântico, então ele exige um beijinho no papel antes da mensagem ser enviada.

Uma televisão em formato de coração rosa apareceu logo em frente de Isabella, que cutucou Victor para que ele prestasse atenção. A imagem da televisão começou a carregar, revelando um Anhum extremamente próximo da tela e a tocando.

― Testando. ― Anhum cutucou novamente a tela. ― Testando.

― Anhum! Não precisa ficar tão perto da tela! ― Isabella alertou. ― E não fica batendo, pode quebrar!

Anhum se afastou da tela e abriu um enorme sorriso ao ver os dois adolescentes, começando a sorrir.

― Isabella! Vinícius! ― ele falou aos sorrisos.

― Victor, na verdade. ― Victor corrigiu.

― Foi isso mesmo que eu disse! ― Anhum continuou a sorrir. ― Vocês estão vivos!

― É claro que estamos vivos! ― Isabella franziu a sobrancelha. ― Ei! Achou que estávamos mortos?

Anhum ficou parado e falando "Ahn..." por um minuto.

― Nossa, está travando, nem ouvi o que vocês disseram! ― Anhum mentiu na cara dura. ― Mas, enfim, querem falar algo? Ou só ligaram porque me amam e sentiram falta do meu rosto bonito? Se foi isso, eu posso pegar um violão e fazer uma performance agora mesmo!

― Sentimos sua falta, sim. Mas não precisa de performance! ― Isabella disse. ― Estamos com Sumé. Ele nos deu atualizações sobre o caso.

― O Sumézinho 'tá aí? ― Anhum sorriu. ― Chama ele! Quero falar com ele!

Sumé foi felizmente até eles. E assim, os dois deuses passaram dez minutos conversando e se atualizando das novidades, assim como dois velhos humanos comuns conversam quando se encontram num bar. O lado bom é que o próprio Sumé explicou sobre os sete monstros e a Reichtum, poupando um pouco a voz dos dois semideuses.

― Reichtum? ― Anhum perguntou. ― Eu conheço esses miseráveis! Eles estavam derrubando algumas árvores perto da Vila! Fiz os funcionários deles irem dançando até Manaus... acho que estão vivos ainda. Acho.

― Achamos o primeiro símbolo da lista, Anhum. ― Isabella tirou o tucumã da mochila. ― Sabe, um tucumã colombiano não é uma fruta colhida na Colômbia. É literalmente uma fruta que fala espanhol.

Hola, hermosa niña. Sé que soy sólo una fruta y tú una semidiosa, pero sé que fuimos hechos el uno para el otro. ― o tucumã começou a falar. ― Mi amor por ti es surrealista y sé que, al final de los tiempos, estaremos juntos y nuestro amor superará todas las barreras.

Victor olhou horrorizado e em completo choque para o tucumã falante. Ao olhar para Isabella, viu que ela apenas suspirou e guardou o fruto.

― Eu vim ouvindo isso da padaria até aqui. ― ela confessou. ― Enfim. Anhum, nós sairemos para a rodoviária agora, o Sumé nos deu passagens para uma cidade mais próxima da divisa de estados.

― Excelente, excelente. ― Anhum aplaudiu. ― Agora eu preciso desligar. Uma das Casas está pegando fogo por causa do calor. Sem querer colocar pressão em vocês, claro. Tchau, amo vocês! ― Anhum pegou a televisão e a jogou no chão, a quebrando.

A televisão que estava no escritório desapareceu em pó rosa.

― Eu sempre falo que é só ele apertar o botão de desligar, mas ele insiste em quebrar! ― Isabella falou.

Ao ver que a conversa tinha finalizado, Sumé foi até Victor, segurando um ducado de ouro em sua mão. Ele segurou o garoto com uma mão e levantou o ducado com outro, colocando bem em frente dos olhos de Fischer.

Os olhos de Vitinho voltaram a brilhar em cor dourada.

― A minha teoria aparenta estar correta... ― Sumé disse, curioso. ― Garoto, qual a sua data de nascimento? Dia, mês e ano.

― Seis de abril de 2007. ― mesmo confuso, ele respondeu.

Sumé balançou a cabeça e pôs o dedo no queixo.

― Foi uma Sexta-Feira da Paixão. ― Sumé afirmou.

― É, era o que a minha mãe me dizia. ― Victor afirmou. ― Por quê? ― lembrou-se que precisava ser educado. ― Senhor.

― Você é um zaori, garoto. ― o sábio parecia preocupado.

A filha de Jaci demonstrou surpresa em suas expressões. Ela aproximou-se dos dois e olhou diretamente nos olhos dourados de Victor.

― Eles ainda existem? ― ela estava definitivamente surpresa. ― Eu acho que essa cor era coisa do teu pai.

― Não sou Maori, oras. Nem sou da Nova Zelândia. ― respondeu Victor, confuso.

― Zaori, não maori. ― Sumé o corrigiu. ― São pessoas abençoadas com o dom de enxergar objetos valiosos, como ouro, diamante ou qualquer outra coisa que tenha algum tipo de valor. ― explicou o deus. ― E todos eles nascem em uma Sexta-Feira da Paixão, assim como você.

Ao ouvir aquilo, Victor começou a ligar os pontos. Ok, realmente não era astigmatismo, como sua mãe dizia, e aquilo fazia bastante sentido. Ainda assim, ainda persistia uma pulga em sua orelha.

― Mas eu não só vejo. Eu às vezes consigo ouvir também. E cheirar. ― ele revelou.

Sumé pareceu estar raciocinando.

― Isso é no mínimo interessante. ― Sumé pôs a mão no queixo novamente. ― Vocês aparentam ser semideuses com algo especial... E mesmo que eu gostaria que ficassem aqui para que eu pudesse estudá-los, infelizmente vocês precisam se ausentar. O ônibus que consegui para vocês sai em trinta minutos.

O deus também entregou uma bolsa para os dois. Victor abriu e viu alguns pães e algumas garrafinhas de uma bebida que parecia refrigerante.

SUMÉ NÃO ERA NEM UM DEUS, ERA UM PAI! Bom, no caso de Felipe, literalmente. Mas no caso dos outros, é uma metáfora. O sábio tinha conseguido arranjar passagens para as crianças em um ônibus com ar-condicionado funcional e assentos muito confortáveis.

Os semideuses já estavam sentados naquelas poltronas deliciosas há uma hora, o que de acordo com o motorista, seria metade do caminho até Presidente Figueiredo. O ônibus estava lotado de pessoas fofocando sobre os mais diversos assuntos, desde política até música e briga familiar.

Clarisse tinha aproveitado que Victor estava dormindo novamente e pegou emprestado (sem avisar) o MP3 do garoto para ouvir música. Haruka tentava entender o seu grimório enquanto o folheava e Azrael estava procurando outro lugar para sentar após receber chutes acidentais do seu irmão dorminhoco (e espaçoso).

Após ir para a área da frente do ônibus, encontrou uma poltrona vazia ao lado de Tauane, que estava batendo com os dedos na janela.

― Oi? ― ele chamou a atenção da garota, que o olhou. ― Tem alguém aqui?

― Ah, oi. ― ela sorriu e parou de batucar. ― Não, não. Pode sentar.

O ônibus passou por um buraco e fez Azrael se desequilibrar, mas para sua sorte, caiu no próprio assento. Ele começou a rir do próprio acidente, já que não tinha se machucado, e Tauane riu também.

― Machucou? ― ela perguntou.

― É, eu não me machuquei, então 'tá de boa. ― ele respondeu.

Os dois ficaram em silêncio. Azrael observava a paisagem, que bom, era apenas floresta, mas ainda assim uma paisagem admirável. Já Tauane, continuava batucando a janela, sua respiração era tensa e parecia estar suando.

― Não quero ser invasivo, mas você não parece nada bem. ― Azrael quebrou o silêncio.

― Dá pra ver? ― ela suspirou. ― Eu 'tô com uma sensação estranha de que 'tô sendo observada.

― Como assim?

― Não sei... parece que tem algo lá fora. Mas quando eu olho, não vejo nada. ― ela revelou. ― Mas ao mesmo tempo, eu sinto. Olha lá fora.

O filho de Tupã e a Tauane puseram as cabeças na janela. Não viram nada além de mato e árvores. Bom, até que veio o assobio. Ao ouvirem aquele som, viram um estranho homem muito barbudo e usando um tapa-olho assobiando.

― Que cara estranho... ― Azrael murmurou.

Continuaram olhando. Viram o homem ir correndo para trás do ônibus, ainda assobiando. No mesmo momento, ouviram o som de um pneu furando e o ônibus parou. Os dois se olharam e perceberam o que estava acontecendo. Levantaram desesperados, pegando suas mochilas.

― A gente tem que sair agora! ― passaram pelo corredor do ônibus alertando todos os semideuses e acordando os dorminhocos.

― O que rolou? ― Clarisse tirou os fones de ouvido emprestados (roubados).

― Só levantem! ― Tauane gritou.

Todos levantaram com as mochilas e foram para a frente do ônibus. A porta dos fundos se abriu e o homem entrou ali. Os jovens aproveitaram que o veículo estava cheio e se disfarçaram em meio à multidão, dando o fora dali pela porta da frente.

Estando agora no meio de uma rodovia BR, eles se afastaram do ônibus, seguindo em frente.

― A gente faz o quê agora? Anda no meio da BR que nem um grupo de hippies? ― perguntou Binho. ― Não que eu odeio hippies, na verdade, acho eles legais!

― Minha tia Jennifer é hippie lá no Colorado. ― Ritchie acrescentou. ― Era, na verdade. Morreu de overdose, seja lá o que for isso.

Ainda era possível ver o ônibus, então os jovens conseguiram ver que o homem desceu do veículo e estava indo na direção deles. Mesmo com uma distância relativamente grande, eles conseguiam ouvir os assobios.

Victor ficou paralisado ao ouvir aquilo. O sorriso em seu rosto morreu no mesmo momento, sendo substituído por uma expressão tensa e punhos fechados.

― Vamos ter que entrar na mata. ― Isabella anunciou. ― Estamos com barracas e sacos de dormir, então vamos passar a noite na floresta.

― Mata? Mas e se vier uma... onça, sei lá. Tem onça aqui? ― Lucas estava preocupado. Não pelo fato de ter uma onça, e sim pelo fato de ter uma onça e ele não poder fotografá-la. ― Espero que tenha, onças são iradas!

― Se tiver, eu posso ficar com ela? ― Estela sorriu e puxou o braço do irmão, mas não obteve resposta.

Ela cutucou ele novamente.

― Vi?

Victor voltou ao foco e sua respiração voltou ao normal. Imediatamente olhou para a irmã ao sentir que estava sendo cutucado.

― Ah, sim, sim, claro. ― ele nem sabia do que se tratava. ― Vamos logo?

Com muita coragem, quantidade mediana de força de vontade, pouquíssimo dinheiro e com um Kauê com muita vontade de ir ao banheiro, os semideuses se embrenharam no meio da mata.

A NOITE TINHA CAÍDO. As crianças tinham armado duas grandes barracas de dormir, já que recebiam esse tipo de treinamento na Vila. Todos já estavam dormindo, exceto Victor e Isabella, que por serem os mais velhos, foram obrigados a ficarem de guarda.

A garota estava sentada no chão, admirando a Lua e refletindo sobre tudo que vinha acontecendo. Já Victor sentou numa cadeira retrátil que tinham levado e começou a ver o mapa de Sumé, tentando entender como funcionava.

Além de mostrar os pontos onde os sete monstros ficavam e os prédios da Reichtum, ele também apresentava o ponto exato onde os semideuses estavam naquele momento e a melhor rota para seguirem. Sim, era praticamente um GPS físico.

Cansado de ver os desenhos de florestas e mais florestas e a ilustração de um cachorro representando os vira-latas, Victor dobrou o mapa, foi até sua mochila e a guardou. Tinha dormido bem na van de Cara Parça e no ônibus, então estava praticamente sem sono. Por isso, sentou-se ao lado de Isabella e ficou olhando a Lua também.

― Você também acha estranho? ― perguntou o garoto.

― O quê?

― Saber que sua mãe está sempre te vendo lá do céu. ― ele olhou para o astro novamente. ― Mas que nunca 'tá realmente presente. É assim que eu me sinto com o meu pai, ao menos.

Isabella suspirou.

― É um pouco frustrante, sim. ― ela admitiu. ― Mas eu sei que ela, e o teu pai também, estão ocupados com todo o trabalho de um deus. Eu só... tento ignorar. ― ela segurou o seu amuleto.

Victor olhou para o colar dela, focando no sapinho verde.

― Que bonitinho o sapo. ― ele sorriu. ― Minha irmã ama sapos. Se ela não estivesse morrendo de sono, provavelmente estaria procurando uns sapinhos por aqui.

― É fofo mesmo. ― Isabella falou. ― Mas não é só um sapo. Foi a minha avó que fez, chama-se muiraquitã, é uma tradição antiga. Você só dá para alguém que você ama muito, do fundo do coração.

― Muriçocão?

― Mu-i-ra-qui-tã. ― Isabella separou em sílabas. ― É uma tradição de alguns povos, dizem que vem das antigas indígenas amazonas. Funciona como um amuleto de proteção.

Victor concordou com a cabeça em silêncio.

― E isso afasta os monstros?

― Mais ou menos. Só diminui o meu cheiro para eles, então fica mais difícil de me acharem. ― ela segurou o amuleto novamente.

Enquanto conversavam, os dois foram surpreendidos por um macaco-prego que desceu de uma árvore próxima até eles. Adoravelmente, ele começou a dançar e fazer graça.

― Que divertido! ― Victor aproximou a mão da cabeça do macaco lentamente e a acariciou. ― Acho que ele gostou de mim.

O macaquinho pulou no colo de Isabella, que começou a rir.

― Sei não, acho que gostou mais de mim, hein. ― ela continuou brincando com o macaco-prego.

Ele olhou para o colar de Isabella e abriu um sorriso travesso. Como se estivesse dominado por todas as forças malignas existentes no plano espiritual, ele rapidamente puxou o amuleto do pescoço de Isabella, rompendo a corrente e permitindo que ele corresse para longe com o muiraquitã.

― Não! ― Isabella rapidamente levantou-se e olhou para Victor. ― Fica aqui com as crianças, eu vou pegar aquele macaco! ― imediatamente começou a correr.

QUANTO MAIS ISABELLA CORRIA atrás do macaquinho, mais rápido aquele primata parecia ser. Para sorte dela, o primata não quis subir em nenhuma árvore, então permanecia no chão logo em sua frente.

Ela não sabia se a força que sentia para correr vinha do poder da Lua ou das memórias que pingavam em sua mente. Lembrava do dia que a sua avó lhe dera o muiraquitã, dos conselhos que a senhorinha lhe dava e dos petiscos saborosos que ela lhe fazia. E principalmente, do principal motivo pelo qual ela precisava da proteção do amuleto.

Sabia que não iria vencer em uma corrida contra o macaco-prego, então precisaria usar da vantagem que tinha contra ele: sua mãe brilhava no céu naquele mesmo momento.

Ainda precisava correr ou perderia o animal, mas ainda assim, tentou manter a calma. Fechou os olhos, torcendo para que não caísse e começou a respirar fundo. Tentou pensar nos momentos de treinamento com seus irmãos e irmãs mais velhos na Vila, dos ensinamentos de luta que lhe deram e das dicas com os poderes.

Sentiu-se mais leve e sentia também a Lua de uma forma diferente, como se estivessem mais conectadas do que o comum. Ao abrir os olhos, Isabella se viu flutuando no meio da floresta. Suas mãos brilhavam em um tom prateado, e a íris de seus olhos tinha se tornado cinzenta.

Você provavelmente já viu astronautas em uma câmara de gravidade zero em algum vídeo na internet, filme, ou até mesmo em um jogo, mas como dito, isso era sempre em uma câmara. Isabella tinha retirado a gravidade daquela parte da floresta, só não sabia como se locomover enquanto flutuava.

O macaco-prego também estava flutuando agora, extremamente confuso. Sua primeira reação foi largar o muiraquitã e ir nadando no ar até a árvore mais próxima.

Isabella sorriu e deu um impulso em direção ao muiraquitã, que apesar de estar um pouco distante, ainda era visível. Para sua infelicidade, a filha de Jaci notou que o brilho de suas mãos estava diminuindo e a própria estava lentamente indo mais para baixo.

― Não... agora não, por favor... ― ela continuou tentando chegar até o amuleto, ficando cada vez mais ansiosa.

Como se fosse proporcional à ansiedade da garota, a luz em seus dedos estava quase apagando-se e seus olhos voltaram à coloração castanha padrão.

― Só mais um pouco... ― ela sentia-se caindo, mas não desistia.

Os esforços não foram suficientes. Isabella sentiu a gravidade voltando a afetar o ambiente. A única coisa que viu antes de sua visão ficar turva por conta da queda, foi o seu amuleto começando a cair.

A próxima coisa que sentiu foi uma intensa dor na sua perna. Estava no chão novamente. Certamente a altura da queda machucou sua perna, mas ela não se importou, pois sabia que a luz da lua curaria aquilo até a manhã chegar.

Pouco ligando para a dor, ela levantou-se e foi até onde o amuleto tinha caído. Ao chegar lá, caiu no chão ao ver a cena. Viu apenas quatro pedaços verdes do que antes era um sapo. Pôs as quatro pedrinhas na mão e a levou até o coração, começando a chorar.

― Vovó... ― ela apertou mais os restos do muiraquitã. ― Desculpa... me desculpa, vovó...

Ela continuou chorando, ainda no chão, sentindo não só a dor física da perna, mas também a dor emocional pela perda.

― Meu único dever era proteger isso e... eu falhei. ― ela sentia as lágrimas irem das suas bochechas até o chão. ― Me desculpa, vovó...

Mesmo com dor e ainda aos prantos, ela precisou levantar-se e voltar ao acampamento que tinha elaborado com os amigos. Tentou tirar forças de algum lugar e começou a andar até o local.

Sabia que agora sem a proteção do muiraquitã, o perigo tinha aumentado não só para ela, mas para todos os outros, e se culparia por aquilo pelo resto da bandeira.

JÁ ERA MANHÃ DO OUTRO DIA. Os semideuses tinham desfeito o acampamento e agora andavam no sol da floresta seguindo Haruka, que segurava o mapa em mãos ao lado de Isabella, que não parecia nem um pouco disposta a nada.

― Beleza, se a gente andar mais um pouco, daqui a cinco minutos chegamos lá no cafundó de Judas. ― Haruka continuava a olhar o mapa. ― Não aguento mais andar!

― Ainda são sete e cinco, Ruka. ― Caio andava animadamente com a sua mochila nas costas. ― Temos muuuuuuito pé pela frente.

― Por que não roubamos um carro? ― Kauê sugeriu. ― Um Porsche, de preferência.

Tauane o fuzilou com o olhar.

― Já viu concessionária da Porsche no meio do nada?

― Sei lá, vai que tem! ― ele deu de ombros.

Em meio ao resto das crianças, Thales e Estela andavam brincando de adivinhar em quem o outro estava pensando. Em uma situação normal, estariam com papéis com os nomes na testa, mas não tinham nenhum papel e a caneta que Thales tinha levado estava falhando.

― É um homem? ― perguntou Thales.

― Não. ― respondeu Estela. ― E o seu é um homem?

― Também não. ― Thales balançou a cabeça. ― É uma super-heroína.

― É. ― Estela confirmou. ― É uma cantora?

― Certinho. Ela usa tiara?

― Usa.

― É a Mulher-Maravilha?

― Droga! ― Estela cruzou os braços e riu. ― Acertou de novo.

― Sabe como é. Todo mundo fala que o Santinho é o melhor nesse jogo! ― Thales sorriu, convencido.

― Ninguém fala isso, né?

― Não. ― ele abaixou a cabeça. ― Mas poderiam! ― Thales suspirou. ― Bem que o meu pai poderia achar isso um "ato glorioso". ― fez aspas com a mão.

Estela notou que um sorrisinho murcho surgiu no rosto do amigo, como se tivesse pensando em algo que o chateou. Ela com certeza achava o pai de Thales burro. Afinal, que pai no mundo não gostaria de ter um filho tão legal quanto seu amigo?

― Tenho certeza que dessa bandeira não passa, Thales. ― ela consolou o colega. ― A Caupé disse que encontraremos muitos monstros. Com certeza em algum momento seu pai te reclama!

― Espero. ― ele murmurou. ― É tão chato ter um vazio na minha vida. É tipo começar a ver uma novela no meio, sabe? O que aconteceu no início? Não sei, eu não vi!

― Eu entendo. ― ela olhou compassiva para ele. ― Só tenho pai há tipo... dois dias! Nunca nem falei com ele.

― Se você é tããão rara quanto o Anhum falou, em algum momento ele deve vir nos encontrar! ― Thales falou. ― Confia em mim, eu sou quase jornalista, entendo desse tipo de coisa.

Estela riu e concordou com a cabeça. Enquanto os dois tinham uma conversa levemente deprimida, mais para frente, Clarisse e José conversavam sobre um assunto sério: a novela Cúmplices de um Resgate.

― Eu era pequenininha quando passou, mas eu via mesmo assim. ― falou Clarisse. ― Nunca entendi como que o conselho tutelar nunca bateu na casa daquela velha rica lá.

― Exatamente! ― José concordou com ela. ― E por que tinha tanto sequestro numa novela infantil? Meu primo até hoje tem trauma de ser sequestrado!

― Ao menos aqui no meio do mato não tem como uma rica encomendar meu sequestro. ― Clarisse riu. ― Mas tem como aparecer coisa pior, não é?

― É... tem. ― José a olhou. ― Tipo... bicho-preguiça gigante.

Clarisse parou para pensar. Nunca tinha visto um bicho-preguiça pessoalmente, quem dirá um gigante. Parecia legal. E um bicho-preguiça gigante seria mais preguiçoso, ou teria o mesmo nível de preguiça? Eram tantas perguntas.

― Até que um bicho-preguiça gigante seria da hora. ― ela sorriu ao pensar no animal.

Um assobio ecoou pela floresta. Mas não parecia um assobio comum. Era uma assobio gutural, como se tivesse saído de um animal grotesco e com muita fome de carne.

― Vocês ouviram isso? ― José virou-se para trás. ― Ué. Cadê vocês?

Não tinha mais ninguém ali. Apenas ele e Clarisse. Todo o resto da turma tinha desaparecido. Para o azar deles, o assobio infelizmente não desapareceu junto com as crianças, ficando cada vez mais alto a cada segundo.

― Parece o assobio do ônibus... ― Clarisse pôs em frente a José. ― Uíua... ― ela sussurrou.

Como uma palavra mágica de um encanto, chamas formaram-se em suas mãos, transformando-se em um majestoso arco. Ela agarrou o arco e apontou para a direção do assobio, que se intensificava cada vez mais. Uma flecha de chamas formou-se ali.

Quando o som do assobio parecia ter chegado ao seu limite, ela soltou a flecha que voou graciosamente até o alvo, porém, foi interrompida por uma mão peluda que pouco pareceu ser afetada pelas chamas. Após pegá-la, quebrou a flecha.

Clarisse ficou em choque ao ver a criatura. Era um ser de três metros de altura, sendo grande também em largura. Tinha formato corporal humanóide, porém, era coberto de espessos pelos negros. Suas orelhas eram grotescas e em seu rosto existia apenas um enorme olho. Do seu peito até a sua barriga, repousava uma animalesca boca com dezenas de presas que pingavam sangue, assim como a comprida língua que ia da sua boca até o chão. Suas garras pareciam capazes de cortar até mesmo a mais dura carne.

― Tapa os ouvidos! ― José saiu de trás da garota, buscando apoio no chão.

― O quê? ― Clarisse olhou para frente e viu que o ser se aproximava velozmente. ― Por quê?

― Só tapa!

E assim Clarisse fez. José reuniu o ar e então, abriu a boca. No mesmo momento, um grito potente afetou todo o ambiente. Não era um grito comum, era um grito tão poderoso que era possível ver até mesmo as ondas de som. As folhas das árvores caíram, as pedras voaram para longe e alguns grãos de terra também.

O monstro foi jogado longe e caiu, atordoado pelo som.

― Isso... ― Clarisse tirou as mãos dos ouvidos. ― Isso foi incrível, Zézinho! Você tipo aquela loira bonitona da Liga da Justiça!

― Valeu... ― José sorriu e quase caiu, sendo ajudado pela garota. ― Agora eu vou só... ― ele sentou-se no chão. ― Dormir uns cinco minutinhos... ― ele deitou-se e desmaiou.

Clarisse viu José se transformar em um pequeno pássaro laranja e se assustou, pulando para trás. Olhou para frente e viu que o ser ainda estava atordoado, mas estava recuperando forças para levantar. Ela precisava sair dali rápido, e levar José, ou melhor, o pássaro-José.

Mas havia um problema. Um terrível problema. Clarisse tinha medo de animais. Qualquer animal. Só de ter que tocar em um, ela já sentia arrepios, como o porco-do-mato da Caipora na Vila.

Ela parou ao lado do passarinho, evitando olhar para ele. Começou a roer uma unha, sentia seu corpo quente. Ela respirava ofegante, não conseguia controlar a própria respiração e suas mãos estavam molhadas de suor.

― Você precisa sair daqui, Clarisse... ― Clarisse sentiu uma lágrima descer pela bochecha. ― Seu amigo precisa de você... Mas você 'tá com medo, que nem uma bebêzinha.

Olhou para o passarinho e imediatamente começou a ter lembranças da infância. A imagem do pitbull da sua família, Bruce, veio à sua cabeça. Se sentia novamente como aquela criança de nove anos sozinha em sua casa no Rio. Tentava não pensar no cachorro, mas a figura não saía da sua mente. E então, lembrou-se do cheiro de coisa queimando e desabou em lágrimas.

Tentou recuperar a respiração, mas o cheiro de fogo não a deixava embora. Olhou para as mãos e viu que agora os seus dedos estavam produzindo fogo.

― Agora não, por favor... ― ela continuou tentando respirar normalmente. ― Respira, Clarisse, respira.

Ela sentou-se ao lado de seu amigo passarinho. Fechou os olhos e começou a lembrar de coisas boas. Pensou nos shows que ia com o seu pai, no dia que ganhou a jaqueta que usava todo santo dia, quando o seu pai a ensinava violão.

Sua respiração começou a voltar ao normal, e o cheiro de fogo passava gradativamente. Abriu os olhos e viu que José ainda estava lá, em forma de pássaro. Continuou a visitar a sua memória, em busca de momentos bons. Começou a ouvir as notas de Tempo Perdido ecoarem em um piano, assim como José tinha tocado no dia anterior, e começou a sorrir.

Então me abraça forte... ― ela começou a cantar, ainda sorrindo. Abriu os olhos e olhou para trás, viu que o ser estava levantando e começando a ir em sua direção.

Já respirando normalmente, olhou novamente para o passarinho. As memórias ruins já não estavam mais lá. Pegou ele com as duas mãos e respirou fundo.

Me diz mais uma vez que estamos distantes de tudo... ― cantando baixinho, ela se embrenhou na mata, fugindo do ser.

Com seu amigo em mãos, Clarisse continuou a cantarolar e correr em meio à floresta, em busca dos outros colegas.

APÓS VINTE MINUTOS DE CAMINHADA, José tinha acordado novamente e andava com a sua amiga, apesar de ainda um pouco zonzo. E para sorte deles, Clarisse finalmente encontrou formas de vida que não fossem um animal ou uma criatura gigante querendo fazê-la de café da manhã.

― Graças a Deus... deusa! ― Clarisse abraçou Tauane e Haruka.

Tauane estava com o cabelo bagunçado e cheio de grama. Seus braços estavam arranhados e uma corte sangrando era presente em sua bochecha. Já Ruka, embora não estivesse com o cabelo bagunçado, sua face tinha sido coberta por pequenos cortes e arranhões, assim como as suas pernas.

― Vocês encontraram aquele bicho peludo de um olho, não foi? ― ela separou-se do abraço.

― O Mapinguari? É, tivemos um encontrinho com aquele negócio. ― Tauane respondeu.

― Mapinguari? ― perguntou José, cuja voz parecia a de alguém que usou anestesia no dentista.

― É, eu lembro das minhas irmãs terem falado dele uma vez. ― Tauane explicou. ― Um monstro ciclope que fica assobiando durante o dia em busca de, vocês sabem, almoço.

A garota abriu a mochila e tirou uma garrafa d'água. A abriu e jogou um pouco de água nos braços, passando o líquido pelos machucados e depois fazendo o mesmo com o corte na bochecha. Lentamente, as feridas começaram a cicatrizar.

― Uau... que maneiro! ― o José grogue falou. ― Será que eu me curo se passar cantores nas feridas?

Clarisse pôs a mão na boca para que ele não a visse rindo. Tauane e Haruka olharam confusas para o garoto.

― Ele usou os poderes e voltou assim. ― Clarisse explicou. ― Deve passar daqui a pouco, então dá um desconto.

Os outros semideuses começaram a aparecer gradativamente.

― A floresta... ― Isabella falou, ofegante. ― Ele consegue usar a energia de Nhanderú para mudar a floresta. Por isso nos perdemos.

Tauane ofereceu sua garrafa de água para Isabella, que aceitou de bom grado e a bebeu.

― Como que derrota esse bicho? ― Thales perguntou. ― Alguém tem alguma ideia? Eu e a Teté jogamos pedra, graveto, até uma lata de refrigerante que nem deveria estar no meio da floresta, e não adiantou nada. ― ele ficou pensativo. ― PREOCUPANTE! Jovens semideuses enfrentam monstro invencível!

Todos moveram os olhos para Estela.

― O que foi? ― ela perguntou.

― Seu pai é senhor das florestas... ― Felipe raciocinou. ― Nós estamos numa floresta... você pode derrotar ele com seus poderes! Ou ao menos deixar ele muito abatido.

Estela ficou reflexiva. Quais eram seus poderes? Seu irmão controlava luz, Azrael e Lucas conseguiam dar choque, Tauane era uma sereia e Ritchie incendiava tudo. Mas qual era o poder dela? Falar com animais? Ela nem ao menos conseguia controlar isso!

― Eu... eu posso tentar.

― Ótimo, maninha! ― Isabella sorriu para ela, tentando passar confiança. ― Quer uma dica? Quando ele estiver perto, respira fundo e tenta ficar serena, assim os poderes vêm mais fácil.

Como se tivesse sido invocado, o Mapinguari apareceu correndo do meio da mata, segurando Tauane com sua enorme mão e causando um corte em sua barriga. A garota deu um grito e moveu uma mão livre até uma poça de chuva que estava lá e direcionou a água até a boca do ser, que se engasgou e derrubou ela.

O monstro terminou de tossir e logo se recuperou, indo pegar Tauane de novo, mas sendo impedido por um raio de Azrael em direção a sua mão. O garoto correu até Tauane, que andava fragilmente por conta do grande corte da barriga, e a levou para mais longe.

― Valeu! ― ela respirava ofegante.

― Uh, o corte ficou feio... ― Azrael viu o sangue passando pela camisa da garota.

― Ficou. ― Tauane afirmou, ainda com dor. ― Oh, se ficou. Mas daqui a pouco eu passo água e alivia um pouco.

O monstro continuou atacando os jovens. Passou as garras no braço de Felipe, que o acertou com uma shuriken, deu um tapa em Isabella, a arremessando longe, e deu uma mordida na perna de Lucas, que correu mancando para longe enquanto lançava pequenos raios no monstro como vingança.

Estela viu tudo aquilo e notou que, se havia uma hora para agir, a hora era agora. Fechou o olho e respirou fundo, seguindo o conselho de Isa. Tentou manter-se serena e fechou os olhos. Sentiu uma força estranha a consumir, algo que nunca sentiu antes, e então, tudo resultou em...

Pirarucu.

Estela virou um pirarucu, o enorme peixe vermelho da Amazônia.

O pirarucu - vulgo Estela - começou a se debater no chão por falta de água.

― Alemão! ― Isabella acertou a criatura com o facão. ― Pega a tua irmã-peixe e a Ane e procura um rio! A gente acha vocês depois!

Victor pegou o peixe, era pesado, mas ele aguentava o peso, embora estivesse com vontade de rir por saber que aquele pirarucu era sua irmã.

― E como vocês vão nos achar? ― ele foi até Ane, a ajudando a levantar.

― A gente vê no mapa! ― ela respondeu, desviando de uma garra do Mapinguari. ― Agora vai!

O garoto correu para o mato com a sua irmã-pirarucu e a pequena sereia estropiada e manca.

A luta continuava intensa. Até mesmo Kauê, que era muito mais veloz que os outros vira-latas, foi atingido pelo Mapinguari, que surpreendentemente era tão rápido quanto o garoto. Mesmo com a perna sangrando, Lucas continuava de pé lutando junto com seu irmão, lançando ondas de choque que imobilizaram o monstro por alguns segundos.

Por não estarem nem em uma festa e nem no rio, Binho não tinha muito o que fazer, então apenas jogava pedras no ser e dava apoio moral aos colegas.

De longe, Thales usava sua zarabatana para acertar o monstro com dardos envenenados. Ele só sabia controlar um poder, e na verdade, nem sabia se tinha outros, e não sabia como usar sua única habilidade.

Clarisse e Ritchie utilizavam de seus poderes de chamas para criar círculos de fogo que prendessem o Mapinguari em um lugar só, facilitando o ataque. Mesmo assim, eles também sangravam, por terem recebido arranhões das garras do monstro.

Isabella mal se aguentava de pé. Já estava abalada pela perda do muiraquitã, então seu desempenho na batalha foi menor do que o esperado, tornando ela em um alvo fácil para o Mapinguari.

― Não... não vamos desistir, gente. ― ela sentia uma dor intensa na perna, onde havia um corte. ― Ele pode ser forte, mas somos mais.

Haruka ainda não tinha muito controle e nem conhecimento sobre feitiços, por isso, estava utilizando a sua arma mágica que alternava entre uma katana japonesa e um canivete.

Durante um momento de descuido, a bruxa foi pega pelo monstro, que a olhou com aquele único olho de forma que deixava evidente sua fome. Ele abriu um enorme sorriso em sua boca monstruosa e apertou ela com força em sua mão. Sua língua foi diretamente até a cabeça dela, molhando seu cabelo e rosto com saliva de monstro.

Os jovens atacavam com flechas, dardos, chamas, raios, mas nada adiantava. Thales viu aquela situação e teve uma ideia maluca. Podia ser uma boa ideia, ou não. Se fosse uma ideia ruim e ele estivesse errado, certamente morreria.

Mas ele com certeza preferia morrer do que ver uma de suas amigas ter um final tão trágico.

Guardou sua zarabatana e começou a correr em direção ao Mapinguari, resultando em olhares surpresos dos seus amigos.

Quando estava bem próximo do ser, gritou:

― Não mexe com meus amigos, trem feio!

E deu um pulo em direção à boca do ser. No momento, começou a diminuir, até ficar do tamanho de uma borboleta e ser engolido pelo ser, que no mesmo momento largou Haruka acidentalmente.

Todos se aproximaram dele correndo, alguns com a mão na boca de tamanho choque pelo sacrifício dele.

― Santinho! ― gritou Haruka e levantou-se rapidamente, acertando o monstro com a katana.

O monstro deu um sorriso para a garota, não sendo afetado pela lâmina. Porém, o sorriso dele lentamente começou a fechar-se e uma expressão de surpresa tomou o seu rosto... bom, o seu olho.

Mapinguari começou a tossir repetidamente, como se estivesse se engasgando com alguma coisa. A cada tosse, um assobio assustador saía junto.

― O quê...? ― Haruka olhou para o monstro, confusa.

E então, a tosse aumentou e o monstro começou a se curvar, como se fosse vomitar. Ao invés de vômito, o que ocorreu foi a total transformação do Mapinguari em pó quando um Thales de cinco metros apareceu em seu lugar. Ele tinha usado a habilidade de mudar de tamanho para explodir o monstro por dentro.

― Funcionou! ― ele começou a pular de alegria, causando tremores. ― Funcionou!

Ele retornou ao seu tamanho normal e bocejou. Estava cinza de tanto pó de monstro falecido que existia ao redor dele.

― Você conseguiu! ― Isabella ficou tão feliz que abraçou o garoto. ― Você matou o Mapinguari, Thales!

― Eu... eu fiz isso! ― ele começou a sorrir.

Todos começaram a olhar surpresos para Thales, e ao invés de terem choque em seus rostos, o que Thales viu foi um enorme sorriso e alguns aplausos enquanto se levantavam feridos.

― O que foi? ― ele sentiu algo pingar em sua cabeça. ― 'Tá chovendo?

Ao olhar para cima, viu um símbolo holográfico de uma folha de planta pingando água em sua cabeça. Não pôde evitar de abrir um enorme sorriso. Olhou para os lados e viu que asas semelhantes às de libélulas tinham surgido em suas costas.

Finalmente aconteceu. O maior sonho dele tinha se tornado realidade. E ele nem precisava de Anhum para fazer o anúncio, já tinha visto esse mesmo tipo de reclamação várias vezes e sabia que poderia fazer o seu próprio anúncio com seus dons jornalísticos.

Sentiu água percorrer pelo seu rosto. Não era só a água da folha, eram lágrimas. Lágrimas de alegria. Lágrimas de quem finalmente tinha sido reconhecido pelo seu pai.

GUERREIRO! ― gritou ele, com toda a alegria possível para um menino tão pequeno. ― Saúdam Thales dos Santos, filho de Apoiaueue, o espírito do bem!

Os semideuses, mesmo machucados e sujos, começaram a rir e aplaudir a conquista do amigo.

Tudo fazia sentido agora. Apoiaueue não queria um ato glorioso. Apoiaueue queria um ato bondoso. E bom, Thales era definitivamente um garoto bom.

Ele mal esperava para contar todas as novidades para Estela assim que ela deixasse de ser um pirarucu!

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