Zero O'Clock
Ela estava parada na varanda tomando chá de maçã com o pensamento longe. Em outro país. Já não usava o cabelo longo e chamativo do tempo de sua memória. Usava-o num corte mais sóbrio, reto e rente à nuca, como a mulher de negócios que agora era. Voltar à Rússia não tinha sido exatamente como Andrey havia imaginado.
Anja olhou para a própria mão e se lembrou da cerimônia preparada às pressas quando chegaram, três anos antes desse dia. Não tinha a presença de ninguém que ela achava importante, mesmo assim a festa tinha sido cheia de convidados. O "novo patrocinador" estava lá, o corpo de bailarinos da companhia, amigos do noivo, todos ansiosos pelos anúncios que viriam depois daquele casamento, e ela, perdida dentro de um vestido branco simples e discreto.
Sua memória trouxe o som distorcido do microfone de longe, de quando ela o pegou para o discurso. Sorriu e deu um gole no chá. Essa era uma memória que valia a pena ser relembrada, por mais que odiasse ter se casado com Andrey.
– Boa noite, queridos colegas de dança. – começou timidamente. Alguns a olhavam surpresos, porque nunca Anja se colocava em destaque, independente dela ser ou não. – Espero que estejam aproveitando o champanhe e o caviar. O senhor Zima fez questão de nos presentear com o banquete de hoje. – ouviu os aplausos.
Olhou em direção a Andrey e levantou a própria taça, cheia da mais pura vodka que conseguiu. Já tinha perdido a conta de quantas taças como aquela havia bebido fingindo que fosse água. Apesar disso, estranhamente, tinha a mente limpa e clara, como a própria bebida. Andrey sorria satisfeito, feliz por ela finalmente entrar no jogo e desempenhar seu papel como propriedade dele. Com o casamento, ela nunca mais poderia voltar a fazer contratos e acordos com nenhum grupo, envolvendo dança ou não, sem antes falar com ele.
– Quero aproveitar que estamos todos reunidos para anunciar, em primeira mão... – começou sorrindo enigmática. O sorriso do noivo congelou no rosto, mas ele continuou com a própria taça levantada para ela. – Estou me aposentando do balé. – completou. Virou a taça de vodka num único gole e jogou o microfone antes de sair do palco e ir para o próprio quarto. Lembrar-se disso fez com que ela sorrisse. Yoongi ficaria orgulhoso se tivesse visto. Provavelmente todos os meninos ficariam.
A reação de Andrey levou mais tempo do que ela esperava. E ela esperava uma tempestade. Estava no quarto em pé quando ele entrou furioso, batendo a porta atrás de si e a trancando.
– QUE PORRA FOI AQUELA, ANJA?
– Você me ouviu bem. Não vou mais dançar. Pelo menos não enquanto estivermos casados, mas essa parte eles não precisavam saber. Acha que eu deveria ter contado? – perguntou ainda com aquele sorriso enigmático no rosto. – O que? Achou que eu ia dançar para você de novo? Achei que tivesse sido bem clara quando você se enfiou no meu contrato com a Big Hit.
Ela andou devagar até onde ele estava e aproximou o rosto do dele, inclinando a cabeça levemente. Havia um brilho estranho em seu olhar, quase como se tivesse desistido de tudo. Ela realmente não tinha mais nada a perder.
– Vai ameaçar matar um dos meus de novo? Bem, você fez questão de deixar explícito que não tentaria contato com a minha família desde que eu nunca mais fizesse nenhum acordo relacionado à dança, fez questão de garantir que eu não faria nenhuma parceria com eles nunca mais... – murmurou. – E veja bem, era a mim que eles queriam quando fizeram o contrato... duvido que vão querer outro em que eu não esteja envolvida. Isso significa...? – continuou, seguindo o ritmo das engrenagens bêbadas da mente dele. Como Andrey não dizia nada, apenas a encarava com ódio, ela sorriu. – Que nunca mais vai conseguir chegar perto de nenhum deles... Nunca. Mais. – pontuou se afastando e tirando as jóias que havia usado durante a cerimônia.
Andrey avançou com violência para ela, mas as horas ensaiando e treinando com Jimin a deixaram mais rápida. Com a mesma facilidade que fazia isso em palco, Anja esticou a perna e acertou o rosto de Andrey em cheio.
– Não se atreva. – sibilou.
– O que? Vai fingir que sabe lutar e vai me bater. – desdenhou ele, sem sentir o impacto do pé dela em seu rosto, tamanha era a quantidade de álcool que já corria em suas veias por conta da festa.
– Tente. – ela respondeu ainda com a perna esticada.
Andrey avançou e, tirando força e sobriedade de onde ela nem sabia, Anja repetiu o passo que tanto pedia para Jimin ensinar-lhe. Girou o corpo no ar, jogando uma perna e depois a outra em direção a Andrey. A primeira acertou bem no meio do peito e a segunda foi diretamente no rosto, derrubando o diretor imediatamente. Ela também caiu, despreparada para o impacto que executar aquele golpe seria, mas se levantou imediatamente, pronta para repetir. Andrey continuou caído, chocado com o que tinha acabado de acontecer.
– Da porta para fora estamos casados, mas dela para dentro você nem pense em chegar perto de mim, entendeu? Se tocar um dedo em mim, eu te mato. – falou Anja com raiva. – Eu fico com o quarto de hóspedes. – completou saindo.
Deu um gole no chá de maçã, sorrindo pela lembrança. Depois daquele dia, Andrey nunca mais tentou se aproximar, seja por chantagem, seja porque queria, e ela pôde finalmente respirar. Infelizmente era o máximo que tinha conseguido. Ainda pensava em Jimin, na dança e nos breves meses que tivera de felicidade pura e genuína enquanto estava na Coreia.
Pensou em Alyona, na carreira dela deslanchando depois de montar uma agência para novos bailarinos e aspirantes a idol em Seul. A agência dela focava em estrangeiros vivendo no país e sonhando com uma carreira como dançarinos profissionais. Continuava fazendo parceria com a Big Hit, mesmo que indiretamente, ajudando a escolher o corpo de dançarinos que acompanharia o grupo novo que eles haviam lançado no ano anterior. Três anos não foram o suficiente para que Anja parasse de acompanhar tudo, mesmo que de longe. E mesmo se tentasse, Alex nunca a deixaria por fora do que estava acontecendo por lá. Era o primeiro e principal cliente de Alyona e o único cliente dela a ter um contrato com o BTS.
– Quando vem nos visitar? – a pergunta dele também veio do passado, um mais recente, mas ainda assim do passado.
– Não sei, meu amor.
– Ele não está aqui. Pode vir sem medo...
– Quem?
– Você sabe... Eles se alistaram e vão ficar quase dois anos no exército. Pode vir nos visitar sem ter uma recaída... – explicou Alex. Anja prendeu a respiração alguns segundos a mais com aquela notícia.
– Prefiro não me arriscar. – explicou soltando o ar pela boca lentamente e se referindo a Andrey e seu contrato de casamento.
– Até quando vai ficar casada com esse nojento? – perguntou Alex, entendendo exatamente o que ela quis dizer.
– Até que ele se esqueça de que um dia eu tive alguma coisa fora de Moscou. – respondeu ali, na varanda, ao mesmo tempo em que a Anja do passado respondia em sua memória.
– Senhora? – voltou à realidade quando sua assistente apareceu na varanda e parecia preocupada de ver Anja falando sozinha enquanto bebia seu chá.
– Não foi nada, querida. – entrou com ela e deixou a xícara na primeira superfície livre que viu. – Alguma notícia?
– Não, senhora. – tentamos contato com o senhor Zima também, mas ele está nos Estados Unidos desde a semana passada.
Anja franziu o cenho. Por mais que amasse ter o apartamento todo para si e aqueles breves momentos de paz longe de Andrey, era estranho ele não dar noticias há mais de cinco dias. A cada dia que passava, ela se sentia mais confortável e tentada a usar sua posição para decisões importantes dentro da Companhia.
A bailarina agora estava a frente de uma escola comunitária de dança. Assim como Alyona ajudava minorias em Seul, ela ensinava minorias em Moscou. Sentia falta de dançar ela mesma, sozinha, sentindo a música pulsando em seu corpo, mas tinha cumprido a promessa de se aposentar dos palcos. Enquanto Andrey tentava a todo custo manter a Companhia de Dança entre as mais importantes da Rússia, ela aproveitava aqueles momentos na escolinha para fingir que, de alguma forma, era feliz com a vida que havia escolhido.
* * *
– Próxima. – chamou.
Estava sentada entre outros dois bailarinos para avaliar suas alunas. Iam dançar uma peça baseada em Shrek no final do ano e aquela seria a primeira audição oficial para o papel de Fiona. Anja estava animada em organizar aquele espetáculo entre as crianças. Era quase como se ela se visse nas garotinhas ali. Enquanto a próxima aluna entrava no palco improvisado e se posicionava, a assistente de Anja se aproximou também e a chamou ao canto.
– Não pode esperar?
– Ele disse que era urgente.
Quando ela entrou no escritório que ocupava na escola, deu de cara com um senhor idoso muito parecido com um Papai Noel de terno. Tentou não rir da imagem que se formou em sua cabeça quando o homem se levantou e se apresentou como Nicolau. De alguma forma esperava que ele dissesse ho ho ho ao invés de boa tarde.
– Desculpe atrapalhar sua audição, senhora Wang. – começou ele. – Vim falar sobre um assunto delicado. Relacionado ao senhor Orlov.
– Ele está viajando, talvez seja melhor espe...
– Eu sei, senhora. É sobre essa viagem.
O olhar sério dele a fez se sentar. O que aquele cretino tinha aprontado agora? Fez sinal para a assistente deixá-los a sós.
– Quer beber alguma coisa? Um chá? – "vodka?", completou em pensamento.
– Estou bem, obrigado.
– O que houve?
Ao invés de responder, o homem tirou uma pasta gorda de dentro da maleta que carregava e a colocou entre os dois. Colocou um par de óculos redondos na ponta do nariz, enfatizando mais ainda sua semelhança a um Papai Noel e pigarreou. Involuntariamente Anja se inclinou para a frente, curiosa.
– A senhora é Anja Wang?
– Sim, eu...
– É casada com o senhor Andrey Orlov.
– Sim, eu...
– Por favor, assine aqui. – falou colocando um dos documentos virado para ela. De relance ela viu a palavra "testamento".
– Espera. O que é isso? O que está acontecendo?
– Senhora, sou advogado do senhor Orlov. Consegue reconhecê-lo aqui? – perguntou mostrando uma foto de um homem visivelmente morto.
Havia marca de um tiro entre as sobrancelhas. O rosto exibia um último esgar de choque, como se não esperasse passar pelo que estava passando. Anja cobriu a boca com as mãos, em choque, mas não conseguiu segurar muito tempo. Pegou o balde de lixo e vomitou tudo o que tinha no estômago. Era Andrey.
– O... – apontou para a foto e sentiu seu estômago voltar a embrulhar, mas conseguiu segurar.
O advogado educadamente esperou que ela se recompusesse. Enquanto o corpo de Anja reagia com nojo pela foto vista, sua mente ia longe e alcançava a Coreia e, sem que percebesse, estava alimentando esperanças de um futuro com uma perspectiva melhor do que a que tinha com Andrey.
– A senhora está bem?
– Sim. O que é isso? O que houve? – perguntou apontando para a foto virada ao contrário para que ela não precisasse mais recorrer ao cesto de lixo.
– Ao que tudo indica o senhor Orlov estava endividado há muito tempo.
– Mas a Companhia...
– Não estava no nome dele. Quando se casaram, ele passou a Companhia para o nome da senhora, provavelmente prevendo uma cobrança futura. – ponderou o homem. – Segundo o contrato que tinham, ele cuidaria de todos os bens em seu nome enquanto estivessem casados.
Lentamente o cérebro de Anja começou a processar todas aquelas informações. Andrey e ela haviam se casado e assinado um contrato onde tudo o que envolvesse dança – ou mais exatamente a dela – deveria passar pela aprovação dele. Pelo que ela estava entendendo agora, isso incluía a Companhia de Dança. Podia ouvir a voz de Alyona vindo da Coreia e a censurando por ter assinado mais um contrato, com Andrey, sem ler, mesmo que fosse um contrato que, agora, a favorecia de alguma forma.
– Então... – começou. "A companhia é minha. Estou livre", completou em pensamento.
– Então estou aqui para falar sobre o que o senhor Orlov deixou. – explicou o advogado.
Depois de duas horas explicando que agora a Companhia, o apartamento e todos os prêmios que havia acumulado ao longo de todos aqueles anos como bailarina eram dela, Anja ainda estava processando tudo. Andrey havia se endividado sabendo que conseguiria encerrar o contrato dela com a empresa coreana. Não podia dar a companhia de dança como garantia, então ofereceu o trabalho dela em troca do dinheiro da rescisão do contrato. Uma jogada arriscada que ela caiu completamente.
Se ela tivesse se imposto e teimado um pouquinho mais, os credores teriam cobrado aquela divida bem antes. Pensou em como havia ficado cega de tristeza, ignorando todas as tentativas frustradas e desesperadas do diretor de manter o nome no topo, apenas para conseguir aquele dinheiro de volta. Nunca se importou com a Companhia depois de casarem, a única coisa que a fazia manter o vinculo era o contrato e a escolinha de dança. Nunca imaginou que ia herdar aquele elefante depois de tudo o que havia passado.
Sentou-se no sofá caro combinando com toda a decoração sofisticada do apartamento que agora era seu, em choque. Ia poder voltar a dançar. Ia poder rever Alex, Alyona e... Só de pensar na possibilidade seu coração pulou uma batida. Estava livre. Finalmente livre. Começou a rir.
Aquele era realmente um dia de memorias. Rindo ela se lembrou do empresário apresentado por Andrey. Lembrou-se dele fazendo questão de mostrar que estava indo aos Estados Unidos. Lembrou-se de como ele havia ido embora sem maiores explicações depois do anúncio dela no casamento. Riu de como era ingênua e egocêntrica a ponto de não enxergar nenhum sinal ao longo daqueles três anos, concentrada demais na própria dor.
Havia se enfiado num casulo duro e impenetrável e graças a isso, não precisaria assumir nenhuma das dividas de Andrey. Ele havia sido assassinado fora do país, enquanto tentava negociar sua dívida e, de alguma forma bizarra, salvá-la. Riu da ironia daquilo tudo, no fim Andrey a amava mesmo, de um jeito torto, mas amava. Não se importou de não ter direito a nenhum centavo das contas bancárias, estava livre. O riso aos poucos foi virando pranto. Ia poder ver Jimin, mas só depois que ele terminasse seu serviço militar.
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Nota da autora: Desculpem a demora!! Tecnicamente já é sábado, mas eu precisava revisar esse capítulo muito bem antes de postar. Ainda tem um epílogo! Posto amanhã a noite antes de postar o capítulo novo de Persona. Obrigada por lerem até aqui.
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