XXIX: O Prisioneiro de Animália
CADA PASSO ERA COMO SE APROXIMAR mais perto de sua morte. Cada movimento era como tomar cuidado e saber que a qualquer momento eu entraria em um campo minado.
Eu sentia a força da magia ali dentro. Airam estava certa, pois Atena protegia aqueles que ali estavam. Meus ombros relaxaram e minha espada era apenas um pedaço de metal.
As paredes de rocha escuras foram tomando cor quando o pontinho de luz criou tamanho. Elas se alargaram e logo percebi a luz ainda mais forte.
O sol estava ali, entrando pelo buraco circular que havia no teto. Em sua volta, pequenos e grandes estalactites me fizeram proteger a cabeça com medo que caísse.
Então, reparei a minha volta. Areia sob meus pés em uma tonalidade dourada, como se toda a superfície fosse ouro em pó e sol o tivesse tingido ainda mais.
No centro a maior quantidade de luz dava a um pedaço de rocha fincado no sol. Não era como as paredes, mas era polido como o gesso de uma coluna da arquitetura grega.
Me aproximei da rocha e o anel na minha mão direita pesou em minha mão como chumbo. O símbolo Ω marcado com bronze brilhou quando me aproximei da rocha. Então em cima da rocha, percebi o formato de encaixe para a letra grega do meu anel.
Era uma tentação não arriscar colocá-lo lá, mas algo me incomodou ainda mais quando cheguei ao centro da Gruta.
Na parede de trás a luz não atingia. Pude ver uma sombra na forma de uma silhueta no chão. Me aproximei mais e então identifiquei quem estava ali.
Mattheo Luka realmente era de se invejar. Os cabelos negros mais lisos que os meus. Braços mais largos e musculosos demonstravam que segurar espadas e exercitar o corpo quando matar monstros era seu principal passatempo para conservar a bela anatomia.
Mas ele não estava tão bem assim. Os braços fortes estavam presos por correntes, o pulso roxo pela força e gotas de sangue escorriam por seu braço.
Na barriga um corte profundo quase me fazia desmaiar só de agonia. Luka gemeu de dor quando inchou os pulmões e respirou profundamente.
As pálpebras se abriram pesadamente. Com tristeza e sofrimento, vi pela primeira vez as íris azuis-celestes do garoto que me causou tantas desavenças.
Estava em frente ao garoto que fizera uma droga de missão me trazer de volta ao Acampamento Meio-Sangue e partir num oceano cheio de monstros. Estava em frente ao garoto que me enciumava simplesmente pelo fato de ser filho do maior dos Três Grandes, sem dúvidas era mais forte que eu e com certeza seria o próximo rei dos holofotes.
Mas Mattheo Luka não tinha culpa de ser perfeito. Não tinha culpa de estar ali e era minha missão salvá-lo, a minha profecia.
- Você... - O olhar se fixou em mim e com muito esforço o indicador direito sob a corrente apontou na minha direção. - Você é o...
- Sim! - Respondi tentando aliviar suas palavras, embora soubesse que naquele momento quaisquer palavras eram alucinações. - Vou tirar você daqui. Vamos para casa!
- Minhas mãos - disse com agonia. - Não estou sentindo minhas mãos...
As correntes de seus pulsos estavam presas em dois ganchos de metal e eu não tinha ideia se conseguia tirá-los.
Aquela foi uma das poucas vezes que fiquei angustiado e nervoso de uma vez só. Eu nem sequer conseguia pensar quando via o sangue escorrer pelos seus pulsos e pingar na areia.
Meu tempo se passava. A cada segundo o ponteiro se movia com vigor. A morte é uma sensação lenta e astuta, porque a cada minuto um pedaço de minha essência se corria sem vida por dentro de mim.
Meus dedos agarraram o gancho esquerdo que prendia a corrente de seu braço. Nem mesmo a minha total força tinha a capacidade de arrancá-los dali. Sentia o metal contra minha pele, o ardor da pressão quando o gancho tirou sangue dos meus dedos.
Ploc! A gota do meu sangue no chão chão era como os grãos de areia que escorriam em uma ampulheta.
O tempo e o destino estavam me pressionando ali, no lugar onde devia me sentir seguro e protegido. Eu sentia o peso de uma vida nas minhas costas; talvez fosse mais pesado do que Atlas carregando o céu ou talvez o arrependimento e a culpa que carregava me fizessem sentir ainda mais o peso da minha vida.
Eu pude sentir o líquido vermelho escorrer entre minha mão e o gancho. Senti a dor de meus dedos estarem sendo destroçados pela minha força inútil contra o ferro.
Não seja inútil como aos doze anos, seu estúpido! Puxei ainda mais o gancho que se prendia na rocha. Você precisa fazer isso..
- AHHHHH! - Gritei com todos os sentimentos que haviam dentro de mim. O ódio de mim mesmo por ser estúpido e medíocre por muito tempo, o rancor aos deuses por nos fazerem fantoches insignificantes no seu "panorama divino" e ainda mais, com desgoto e desprezo do ser que fui durante muitos anos.
Minha mente trilhou muitos anos. As humilhações e críticas ao "balofo e quatro-olhos". Eu vendo meus amigos indo aos seus lares enquanto ainda me lembrava que seria órfão para sempre. E por último, a minha lembrança mais amarga, o dia em que ouvi dos deuses que meu passado não seria dito, que minha mãe e minha família mortal não eram importantes para mim.
Uma lágrima escorreu do meu olho de medo enquanto o sangue escorria da minha mão depois de conseguir arrancar o gancho de ferro. Senti cada gota avermelhada e quente escorrer que me dei conta que ainda faltava um.
Luka estava desmaiado e nem se incomodou quando o braço direito caiu sobre seu peito pelo peso da corrente pendurada nele.
Fui ao outro gancho e rezei que meus dedos destroncados funcionassem de novo, porque eu não me importava em perdê-los pois logo seria apenas mais uma parte do meu corpo em decomposição.
Ou meu corpo tinha adrenalina demais para não sentir dor ou o gancho estava mais leve que o outro. Em minutos segurei Luka que caiu de joelhos e o deitei no chão para tirar as correntes de seus braços.
Ele deu um suspiro árduo depois de abrir os olhos azuis no rosto sujo e com olheiras. Mal tinham força de ficarem abertos e as olheiras pareciam a maquiagem gótica de Alice malfeita.
E em tanto tempo vi um sorriso sincero se formar no rosto de uma pessoa. Mesmo sentindo dores por todo o seu corpo ou ter sentido o gosto da morte em seu paladar, Mattheo Luka ainda assim tirou um sorriso de seu rosto.
Num segundo um grande alívio me fez vitorioso, mas então o filho de Zeus fechou os olhos e tudo mudou. Seu corpo começou a se remexer, Mattheo Luka estava tendo uma convulsão e eu não tinha ideia do que fazer.
Sua boca começou a espumar e seus pés e braços remexiam em movimentos desordenados e acelerados. Se não fizesse algo, a situação do garoto com crise iria piorar.
- Luka. Luka! - Eu gritei desesperado sem tocá-lo.
Graças aos deuses me lembrei de um dos noticiários de primeiros-socorros quando ainda estava no orfanato. Virei Mattheo Luka de lado sem atrapalhar os espasmos musculares involuntários de seu corpo, dessa forma ele não se engasgaria com o excesso de vômito que havia em sua boca.
Depois disso me afastei dali e sentei no chão com a cabeça entre os joelhos. Definitivamente, eu era um fracasso e ver o garoto daquele jeito, fazia me sentir um inútil por não ter levado a sério essa missão desde o início.
Desespero e ansiedade súbita subiram a mim quando forçava minha testa nos joelhos. Logo eu, o garoto que mais aparentava ser forte e habilitado emocionalmente, estava prestes a dar uma crise de pânico dentro da caverna de uma ilha no meio do oceano.
Um destino cruel enfrentará, aquele que em cárcere estiver. A voz horripilante do Oráculo de Delfos surgiu em meu pensamento quando pensei na situação do filho de Zeus.
Abri os olhos depois de ouvir o som de uma respiração sufocante. Mattheo Luka estava sentado com a mão no peito e uma expressão confusa.
Eu me aproximei do garoto e logo percebeu minha presença.
- Você é...
- Yushami Thunder, filho de Poseidon e líder da Guarda-Herói. - Estendi minha mão e ele a apertou confusa.
- Thunder... - ele disse meu sobrenome com devaneio. - A propósito, por que um filho de Poseidon teria o sobrenome de um fenômeno dos céus?!
Para um garoto que há poucos minutos estava preso em uma parede e que acabara de sair de uma crise, ele era um tanto impertinente.
- Por quê um filho de Zeus está preso sendo que é um meio-sangue muito poderoso?! - Eu arqueei uma sobrancelha com desdém e um sorriso sarcástico.
Ele uniu as sobrancelhas furioso, mas depois soltou uma gargalhada. Segurou sua barriga de dor depois de gastar tanto fôlego rindo.
- Eu... - ele disse com esforço. - Eu gostei de você!
- Vamos - indaguei pegando em sua mão e o levantando. Coloquei seu braço por cima do meu pescoço e o segurei para não cair. - Vou tirar você daqui!
Mattheo Luka era mais pesado do que eu pensava, aliás, o "magricelo alto" tinha mais músculos e um abdômen melhor do que Yushami Thunder. Uma ideia estúpida de deixá-lo ali e continuar sendo o melhor passou pela minha cabeça.
Um grande alívio me tomou quando percebi que estava saindo daquela caverna com o filho de Zeus vivo. O que me preocupava era a situação de meus amigos com Ladão do lado de fora.
- Os deuses vão ficar muitos orgulhosos depois de verem você vivo! - Eu exclamei desdenhoso quando caminhamos para a saída, afinal, não me importava nem um pouco com a situação ou reação dos deuses.
- Z-Zeus! - Luka disse inclinando sua cabeça para o teto aberto com os olhos preocupados e amedrontados. O céu se fechou e ele se voltou para mim com receio. - Vamos sair daqui rápido, Yushami!
Tarde demais. Um trovão ribombou como o estrondo de dois carros em alta velocidade. Um raio atingiu a rocha no centro da Gruta e pedaços de pedra nos atingiram fortemente.
Bati minhas costas nas pedras e gritei de dor. Minha visão se embaralhou, mas antes consegui ver Luka caído com a cara no chão.
Com muito esforço, me levantei desesperado e corri em sua direção. Virei-o para cima e seu corpo se moveu facilmente como um boneco de silicone. A parte de trás da sua cabeça sangrava por uma pedra que a atingira.
- Luka. - Disse balançando seu corpo. - Luka, acorda!
Sem nenhuma reação, ele não podia estar morto. Não podia fracassar em minha missão, não podia perdê-lo.
- ZEUS! - Gritei tão alto que ouvi minha própria voz brincar de uma parede a outra e voltar a mim em um eco estrondoso. - Você jogou esse raio e atingiu seu raio. ZEUS!
Então vi faíscas eléctricas a percorrer pelos braços e pernas de Mattheo Luka. Seu corpo parecia um fio desencapado com alta voltagem.
Uni minhas mãos em um só punho e levantei os braços.
- Que isso funcione! - Gritei antes de bater minhas mãos no centro do peitoral do garoto.
Senti o choque de seu corpo correr por meus braços. Eu não conseguia me afastar e então o garoto segurou meu pulso direito.
- Yushami Thunder! - A sua voz tinha a mesma intensidade do ribombo de um trovão. - Como ousa desafiar a vontade de Zeus?!
Os olhos de Mattheo Luka estavam totalmente azuis e quase vi um relâmpago pular fora deles. Não me atrevi a continuar os olhando, pois poderia me mostrar todo o poder de um deus.
- Zeus! - Disse antes de chegar para trás ainda de joelhos. - Você tomou o corpo de seu filho?!
- Precisamos dessa conversa a sós, garoto! - Se levantou e pude ver Mattheo Luka resplandecer com o poder de um deus em seu corpo. Mesmo com a anatomia de um adolescente, o poder em seus olhos o dava a forma de um ser divino. - Você salvou meu filho e agora...
- Minha missão está concluída! - O interrompi sem medo e educação. - Posso voltar para casa com meus amigos e completar essa profecia maldita. Satisfeito?!
Quase me fuzilou com seu olhar relampejante, mas tirou um sorriso quase gentil e divertido dos dentes brancos e perfeitos.
- Pelos céus, você é ainda mais irritante do que Ares na sua adolescência! - Se aquela foi uma pegadinha, eu não gostei nem um pouco. - Mas mesmo assim dá muito trabalho a nós...
- Ops! Nunca foi minha intenção desrespeitá-los e nem ferir seus sentimentos. - Pus a mão no peito falsamente ofendido e conformado.
- Não, não mesmo! - sem se importar com minha ironia. Tive a impressão de que sabia muito bem como ser mais prepotente e irônico do que eu. - Por isso está morrendo com sangue de górgona correndo dentro de seu sangue metade-deus.
Zeus apontou para o corte profundo em minha mão direita e vi o machucado roxo e se putrificando.
- Um porrete de ciclope não mata um meio-sangue a não ser que o sangue do lado esquerdo de uma górgona escorresse ao seu machucado pela arma do monstro - Zeus tinha o tom adolescente de quem se achava superior ou daquele que te achava burro demais para entrar em seu clube.
Engoli em seco, afinal, o Rei dos Deuses Olimpianos e governante dos céus estava certo. Naquele instante uma parte de meu corpo morria, uma célula em contato com o sangue de uma mulher com cabeça de serpente morria.
- Existe sangue do lado direito de uma górgona! - Exclamei fingindo não me preocupar. - É só eu achar uma daquelas três mulheres monstruosas e tudo se resolve...
Zeus riu e eu odiava quando as risadas sádicas me faziam ingênuo demais para concretizar os fatos.
- Você não está morrendo somente por isso, Yushami. - Seu tom ficou mais sério e fora o mesmo de que eu lembrava no meu sonho com ele: prepotente, furioso e frio como a neblina de uma tempestade. - Desafiar a lei da criação quando blasfema contra todos os deuses e critica nossos deveres, fez você perder tudo aquilo que lhe foi dado graças à nós...
- Por culpa de vocês eu nunca soube o meu sobrenome de verdade! - Naquele momento apontei-lhe o dedo e gritei sem medo de ser reduzido a pó, pois a mágoa que carreguei em meu peito por muitos anos me corroía a cada dia que abria os olhos. Naquele momento, eu não tive medo de confrontar o poderoso chefão e governante de tudo, precisava de respostas. - Eu não sei o nome de minha mão e muito menos o estado em que eu nasci. Não sei se tenho parentes vivos ou se todos já morreram pela casualidade do destino. POR CULPA DE VOCÊS!
- CHEGA! - Exclamou e um trovão soou pelos céus em uníssono a sua voz. - As coisas devem ser mantidas como estão. Você deve aceitar o que você é. Você precisa ser o guerreiro que nasceu para ser.
- Não fale como meu pai... - disse fechando meus olhos e engolindo todos os xingamentos que se prendiam em minha língua. - Porque você não é meu pai. Aliás, que tipo de pai deixa seu filho ser capturado por monstros e levado a uma ilha em vez de protegê-lo como um pai de verdade deve fazer?!
Mais furioso do que nunca, Zeus apenas suspirou fundo e a tempestade que fedia ozônio parou de se formar às suas costas.
- Yushami Thunder brinca com o destino, mas não consegue entendê-lo. - Zeus soltou um sorriso divertido. - Por que acha que escolhemos você para vir buscar meu filho? Por que acha que escolhemos o garoto que mais nos causa dores de cabeça ao invés de escolher um herói mais educado e forte?
Se Zeus morresse asfixiado - e eu tivesse forças para isso - , naquele momento eu teria o estrangulado.
- Espera... Esse tempo todo vocês planejaram o que eu deveria fazer para compensar toda a ira que eu causei?!
- Eu adoro como as crianças sempre estão erradas - caçoou de mim no tom adolescente antes de se voltar à expressão febril e séria. - Apolo estava certo quando disse que a profecia lhe confundiria e fiquei muito grato com isso. Agora, aqui estamos para a grande revelação...
- Luka era uma isca! - Eu agora tinha maior desprezo por Zeus ser um pai tão medíocre e desonesto assim.
- Não! - Negou com raiva por minha interrupção. - Yushami Thunder é aquele que está em cárcere. Preso dentro do próprio ceticismo e negando toda a sua vida de glória e batalhas. O garoto que um dia foi tão frágil, desafiou os deuses e fez o universo lhe tirar tudo apenas por sua má-vontade em ser um semideus.
- Então você está dizendo que eu...
- Sim, Yushami Thunder! - Mesmo sem levantar suas mãos, pude sentir um choque percorrer a minha espinha depois de me deixar surpreso. - Você é o Prisioneiro de Animália. É aquele que negou o seu destino, mas que hoje está aqui para que saiba tudo o que lhe espera...
- Desculpe - ainda usei o pouco de cinismo que havia em mim naquele dia - , mas estou prestes a morrer.
- Existem muitos caminhos antes da morte, garoto - Zeus disse misterioso. - Para você, a morte seria algo menos doloroso do que lhe espera...
Antes que eu pudesse questionar suas palavras, um grande clarão saiu do corpo de Luka e fechei meus olhos. Eu os abri e ali estava ele no chão, o garoto que fora preso por minha causa e pior, o garoto que carregava o meu título de prisioneiro.
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