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Senhor Demagogias, um shinigami não listado no Ranking Mundial de Shinigamis. Um deus da morte sem registro, desconhecido até para os maiores especialistas e também uma incógnita para a Mythpool. Era como alguém sem certidão de nascimento, RG, ou qualquer outro tipo de documento com foto. Sinceramente, um indigente. Um bastardo do mundo dos mortos.
Esse mesmo bastardo foi a chave para o "melhor final possível" dos eventos que ocorreram nas férias de inverno, no mesmo ano que acabei perdendo a visão de um olho. Quatro meses e três semanas depois, para ser mais preciso.
Quatro meses de paz e sossego... e talvez um pouco de culpa. Mas uma culpa passiva e sossegada.
A questão é que o Senhor Demagogias não foi nem um "jogador titular" no decorrer desses eventos. Ele foi como o cara que entra no final da prorrogação, já pensando na disputa de pênaltis. Ou até mesmo como um goleiro especialista em pegar pênaltis. Por ele ser um deus da morte, posso dizer que ele foi o Deus Ex Machina do que o destino nos incumbiu.
Bem, se iniciou com uma frase comum e cotidiana para meus ouvidos...
— Eu, Hideki Takashi, aceito com prazer esse serviço!
Tomado pela emoção de uma colegial saudável estar lhe pedindo para fazer algo, meu mestre respondeu batendo a folha de preços em sua mesa, e a deslizando para frente, para que a garota pudesse avaliar.
Os olhos dela correram pelas linhas com destreza.
— Como você é mais nova, pode pagar os valores pela metade — disse meu mestre, enquanto verificava a expressão da jovem em sua leitura.
— É? — Ela ergueu o olhar. — Sério isso?
— Sim, sim, sim. Claro, também terá de deixar seu número de celular conosco, para o caso de precisar de contato rápido, entende?
— Ah — ela sorriu. — Você é muito gentil, senhor Takashi.
— Ora, nem tanto, nem tanto. — Ele penteou o canto do cabelo ao dizer isso.
Não que eu desconfiasse de meu mestre, mas, por que algo me dizia que ter o número do celular da cliente não era realmente necessário? Hmm. Realmente é um mistério da ACAP, a Agência de Combate Anti-Psicopompos.
— Agora — continuou meu mestre —, fale mais sobre esse shinigami.
A garota assentiu.
— Ele apareceu no meu apartamento à procura de uma joia. Ele é forte e mal-encarado, igual aquele cara do Exterminador do Futuro...
— É... — eu a interrompi. — Por acaso esse shinigami era roxo e tinha uma manopla dourada em uma das mãos?
— Manopla...? — A garota apontou seu olhar perdido para mim. — Bem, não, não. Ele era branco, muito branco. Mas seus antebraços e canelas eram negros como carvão. E ele estava nu, só que... — ela abriu e fechou dois dedos, imitando uma tesoura.
Uma tesoura? O que aquilo queria dizer...? Ah... entendi.
— Deve ser difícil para ele — comentei.
— Imagino que sim — disse ela.
— Que seja — falou meu mestre. — É um shinigami, e meu aluno, Daigo, dará um fim nele. Claro, considerando que você escolheu o pacote que lhe dá maior segurança, onde você fica aqui comigo, tranquila e protegida, durante toda noite.
— Realmente, é um pacote muito... espera, o quê?! — Enfim, me dei conta. Como meu mestre pôde ser tão sujo a ponto de me mandar sozinho em uma missão. Não fosse sua generosidade em abrigar a garota, eu teria ficado mais bravo.
— Isso mesmo, Daigo. Essa missão é sua. Não deve ser nada demais, afinal... — meu mestre se voltou para a colegial. — Qual era mesmo o nome dele?
— Ele disse que era Senhor Demagogias.
— Obrigado — ele retornou o olhar para mim. — Afinal, o Senhor Demagogias nem está listado no ranking. Deve ser um deus iniciante.
— É, só que o ranking está listando todos os shinigamis na Terra, e ele não está na lista. Significa que ele pode ser como um deus maior, ou até um híbrido. Talvez até um super shinigami.
— Existem todos esses tipos lá fora? — A garota encolheu os ombros. — Que assustador, é muito perigoso lá fora.
Também não é como se fosse a Yakuza ou terroristas. Desde que a AAA vem atuando ativamente no país, o número de shinigamis, youkais e outros, caiu consideravelmente. Até por conta do incidente em Saitama, com Yoko Subarashi, a híbrida que se tornou uma super shinigami e transformou a cidade em ruínas. Um incidente quase tão grande quanto um ataque nuclear, que atraiu olhares de todos os cantos do mundo.
Um incidente que eu poderia ter impedido, mas não consegui.
— Daigo, está assustando nossa cliente.
— Hmph... — ainda não concordava com aquela decisão. — E onde vou encontrar esse Senhor Demagogias? Não vou ficar perambulando por aí, atrás de um cara forte que quer uma joia. Não sou um super-herói...
— Bem... — a colegial mexeu em seus bolsos e retirou um cartão de um deles. — Ele deixou isso em casa, parece. Disse para encontrá-lo lá durante a noite, caso eu descobrisse algo.
— Viu? O shinigami é um amor de pessoa, não preciso ir atrás dele...
— Daigo, sem desculpas! — Meu mestre apanhou o cartão da mão da garota. — Vejamos... ah, ele não está distante. Está no campo de golfe próximo à Ponte Dinossauro. Você sabe o caminho.
— Parece que não tenho escolha, não é?
— Exato, Daigo. Está fadado a isso.
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Dizer que não tive escolha é um erro. Todo ser humano tem o direito de escolha. Temos a capacidade de raciocinarmos e tomarmos decisões com base em nossas observações e cálculos. E perdoe-me se isso está começando a parecer o início de uma palestra sobre biologia. O que quero dizer aqui é que o destino é quem dá as cartas, mas somos nós que fazemos as jogadas.
O caso que aquela colegial apresentou para nós naquele final de tarde, para mim, não valia o esforço. Por mim, teríamos ignorado. Eu poderia ter ignorado, e eu queria isso. Contudo, o que escolhi foi respeitar meu mestre e seguir sua ordem.
Isso foi o bater das asas da borboleta.
Falando em borboleta, a aparência do Senhor Demagogias lembrava muito a do Silêncio Faz Bem, só que sem o majestoso par de gigantes asas de borboletas. Os cabelos negros e os olhos verdes se destacavam facilmente naquela pele mais que albina e, realmente, seus antebraços e canelas eram totalmente escuros.
O shinigami me olhou serenamente quando apareci por entre as árvores no campo de golfe. Ele era forte. Seus músculos criavam contornos por todo seu corpo, quase como um deserto cheio de dunas de areia.
Não que eu tenha reparado muito nisso. E também não é como se eu estivesse com inveja daquele corpo escultural.
Só achei que era um detalhe que não poderia deixar de lado.
— E aí? — Eu comecei com um aceno tímido. — Beleza?
O deus da morte estava sentado no gramado. Considerando que estava nu, acho que não deveria estar muito confortável para ele. Mas ele não esboçou nenhuma reação de desconforto, então decidi me abster de comentários sobre o que poderia ser um gosto pessoal.
— Quem é você? — Uma pergunta lógica para a situação em questão.
— Eu sou Daigo, Daigo Kazuo. E você deve ser o...
— Demagogias.
— Isso, lembrei. Bonito nome. Embora eu não saiba o significado dessa palavra...
Inabalável, a expressão do shinigami continuou serena. Dava a entender que ele não estava ligando muito para mim ou para o que eu estava dizendo.
Então, sem mais delongas, eu puxei meu celular do bolso, e abri a foto da colegial que devia estar muito bem protegida com meu mestre naquele momento. Eu apontei a tela na direção do deus da morte.
— Conhece essa garota? — Indaguei.
— Conheço. — Respondeu ele, sem rodeios.
— Pois é, ela te conhece também. Ela disse que você invadiu o apartamento dela perguntando sobre uma joia. É verdade?
— Sim.
— Ok, então, a partir de hoje, fique longe dela e deixe-a em paz. Eu sei que deve ser difícil ser castrado, mas ficar molestando garotas não vai fazer de você uma pessoa melhor, tudo bem?
Ao meu pequeno discurso intimidador, o shinigami se levantou, como alguém que acabara de acordar de um cochilo. Ele continuou me olhando serenamente e disse:
— Sim, tudo bem. Ela ficará em paz.
Ué, que fácil. Meu mestre havia aderido a esse negócio de resolver tudo com um bom diálogo, mas não estava sendo muito efetivo com os shinigamis anteriores.
— Bem — falei —, nesse caso, termina...
De súbito, o deus da morte sumiu. Não com um teletransporte. Foi com sua velocidade absurdamente grande. Percorreu os quase vinte metros entre mim e ele, em um piscar de olhos, e surgiu à minha frente, com um punho armado para um soco.
Ossos do ofício. Já estava acostumado.
Eu movi meus braços à frente de meu corpo, imitando a mordida de um dragão, e um escudo de chi se formou entre minhas mãos. Porém, calculei mal a quantidade de energia para bloquear o soco do Demagogias por completo. O escudo aparou o golpe, mas se desfez, me fazendo deslizar para trás no gramado.
Ao segundo soco, não consegui reagir dentro do tempo. O punho do shinigami, que deu um passo longo após desfazer meu escudo, me acertou em cheio no rosto e a pressão do golpe me jogou longe no campo de golpe.
Eu capotei no gramado, parando de barriga para cima.
Eu estava só o pó, com um único soco.
Minha visão estava turva, mas consegui ver o deus da morte vagando em minha direção, com toda sua serenidade.
Até que, um pouco antes de perder a consciência, eu vi uma chuva de lanças de gelo cair contra o Senhor Demagogias.
+++
Se alguma vez eu disse que nunca mais encontrei com Yuna Nate, confesso que menti. Caso você nunca tenha escutado isso de mim, somente ignore e pule para o próximo parágrafo. Talvez, quando disse o que disse, minha mente estava separando a antiga Yuna da atual. Não que tenha mudado muita coisa. Além do mais, Yuna Nate é Yuna Nate. Seja como Assassina de Youkais ou Cavaleira de Cristal, no final, ela é Yuna Nate.
Bem, esta é a parte em que o destino joga sua carta coringa. É o momento em que ele me mostra que sou apenas uma peça nesse jogo chamado Yuna Nate. Sim, acho que posso chamá-la de jogo. Um jogo de sobrevivência, talvez. Mas não como se fosse algum episódio da franquia Resident Evil. Ela não é um monstro assustador, mas pode agir como um, se quiser.
Minha história com Yuna deveria ter acabado há quatro meses antes daquele dia. Para ser sincero, de fato, acabou durante as férias de verão, quando Saitama se tornou uma cidade em ruínas após Yoko Subarashi se tornar uma super shinigami.
O que aconteceu foi um combate entre mim e ela. Por quê? Em resumo, ela precisava me matar para se desprender de uma corrente chamada amor. E eu precisava matá-la para continuar vivo. Acabei pensando em uma maneira de empatar o duelo e de nos deixar vivos, e os deuses da fortuna sorriram para mim.
Ela acabou perdendo a memória, graças a um golpe que cegou seu olho direito. E não pense que isso saiu barato, pois meu olho direito também foi cegado por ela.
Olho por olho, foi o que ela disse.
Algumas pessoas... ou melhor, meu mestre, diz que isso poderia ter sido evitado se tivéssemos ficados juntos. Só que, tanto eu quanto ela, não queríamos ficar juntos.
Agora, Yuna Nate, nasceu de novo. Foi formatada e perdeu parte dos poderes. Ah, esta última parte não faz muita diferença, ela continuava absurdamente forte...
— E macio... — eu murmurei, enquanto minha consciência despertava vagarosamente. — Que travesseiro... gostoso... — eu virei minha cabeça, apontando meus olhos para cima. — Onde estou? — Então, devagar e sempre, eles se abriram... e viram um rosto.
Um rostinho bonito com um olho esquerdo azul-escuro e um tapa-olho cobrindo o direito. Na cabeça, um gorro cinza...
— Yuna...?
— Boa noite, seu pamonha.
Deus está do lado dela, só pode. Mesmo depois de tudo, ela sempre acaba me encontrando. Não pode...
— Ei, não está me imaginando nua, está?
— Hã? Não! Não, não, não. Eu só estava... sei lá.
— Hmm. Você pareceu gostar bastante das minhas coxas, então...
— Coxas...?
Eis que me dei conta, leitor. Um travesseiro de colo. Uma iguaria que só pode ser realizada com maestria pelo sexo feminino. Pelo sexo masculino também pode, mas não há o mesmo misto de macies, delicadeza e força, imagino eu. E, o corpo de Yuna sempre foi saudável como o de uma atleta olímpica. Suas coxas eram fortes como fibras de metal e aço, só que revestidas com penas de ganso, sob uma camada fina de algodão egípcio.
— Você ficou murmurando sobre macies e as abraçando. Não sabia que você era tão taradinho.
— Eu não sou tarado — falei, erguendo meu torso e me sentando... — O que estamos fazendo aqui em cima?!
Ao olhar ao redor, percebi que estávamos no topo das vigas laterais da Tokyo Gate Bridge.
— Eu te trouxe para cá. Salvei você. Deveria me agradecer, seu taradinho. Ainda deixei você dormir nas minhas coxas.
— Não vou te agradecer pelas coxas, e eu não sou tarado, ok?
— Claro que não. Você é o taradinho. Tarado é o seu mestre.
— Quê? Meu mestre é um santo.
— Será? Ele fica me mandando mensagens dia e noite, perguntando se estou bem e essas coisas de stalker.
— Espera, meu mestre tem seu número? — Eu estava indignado.
— Sim, sim. Afinal, foi ele quem me avisou que havia um youkai por aqui, mas parece que ele estava enganado. A única coisa por aqui é a vista perfeita para o campo de golfe onde você estava.
Então, era isso. Meu mestre armou tudo. Ele armou para que nos encontrássemos, ou melhor, para que ela me encontrasse. E isso significa, que até o meu mestre shipa a gente.
— Por que essa expressão de desespero, de repente? — Yuna me analisava cautelosamente com seu olho azul.
— N-Não, não é nada...
— Sei... — disse ela, desconfiada, mas acabou se dando por satisfeita e se ergueu rapidamente.
Ela estava trajando uma longa regata de basquete, onde se lia: Osaka, 23. O uniforme era roxo e longo, quase chegando nos joelhos. A mão esquerda estava coberta por uma luva da mesma cor do uniforme, e a direita estava nua. Os tênis eram brancos, de cano-médio e... ela estendeu a mão para mim.
— Vai ficar me comendo com os olhos o dia todo, seu pamonha?
— Ninguém vai comer ninguém aqui — eu apanhei sua mão e ela me ajudou a levantar. Não que eu precisasse de ajuda, mas agradeci.
— Então, eu tenho uma pergunta — começou ela, me olhando cautelosamente.
— E qual é?
— Seu olho direito. Como ele voltou a enxergar? Da última vez que te vi, você também estava cego de um olho. E também disse que uma shinigami nos cegou. Então, se você encontrou a cura da cegueira, seu pamonha, deveria ter me contado também.
Para quem perdeu a memória, ela tem uma memória muito boa.
— Bem, não encontrei a cura da cegueira. Se tivesse encontrado, certamente teria vendido e deixaria de lado esta vida de caçador. Mas, meu olho está enxergando graças a uma técnica mística chama o Olho que Tudo Vê. Demorei três meses para ter controle dela. Todavia, meu olho continua cego. O feitiço funciona mais como uma câmera que transmite a imagem em tempo real direto para meu cérebro...
— Não é mais ou menos assim que a visão funciona?
— É, sim... só que... não é... um olho... é um feitiço.
As mãos de Yuna foram para sua cintura.
— Que seja — ela voltou o olhar para o campo de golfe. — E aquele shinigami ali? Você vai matá-lo?
— É, a ideia era resolver tudo pacificamente. Só queria convencer ele a deixar em paz uma colegial.
— Colegial? Ainda faltam dois meses para terminarmos o terceiro ano, e você já está chamando os outros de colegiais?
— Eu já sou um homem formado e de fibra — falei, gloriosamente.
— Mas você ainda é virgem — sem gentileza, ela me golpeia com essa afirmação.
Eu me recompus mentalmente.
— Eu não sou virgem! E o que isso tem a ver com se tornar homem?!
— Verdade, peço que me desculpe. Um verdadeiro homem é definido pelo seu caráter.
— Isso, isso. Caráter.
— Também não posso exigir muito de um protagonista que o autor nem pediu para ilustrar.
Ela arrombou a quarta parede. Que ousadia, pensei que só eu podia fazer isso.
— Mas com essa sua cara de pamonha, eu até que compreendo a decisão dele...
— Você só quer me zoar, não é? Se acha a última bolacha do pacote só porque foi capa da revista VILLAiNS.
— Isso foi antes de eu perder a memória, seu pamonha. Não presta nem para quebrar a quarta parede, hein.
Verdade, acho que me empolguei. Acabei dando spoiler do passado... espera, então não é como se fosse um spoiler... Enfim.
— Vamos fechar essa quarta parede — falei.
— Ok. Você tem um shinigami para enfrentar.
— Isso. — Eu me virei na direção do campo de golfe. — Parece que vou ter de resolver as coisas na ignorância.
— Você quer que eu o mate para você?
Estremeci. Houve uma mudança de tom na voz de Yuna ao pronunciar essa frase. Ela disse isso como se oferecesse algo erótico para mim. Fez soar como uma pergunta obscena. E, de fato, havia um desejo por prazer escondido ali. Afinal, Yuna Nate é uma assassina. A Assassina de Youkais. Título conquistado após matar a própria mãe, Yuki-Onna, a Mulher da Neve.
Só que ela não se lembrava disso.
É um assunto delicado, que não deveria ser tocado.
Mena Kitsune, atual líder da AAA, a Associação de Assassinos Anônimos, disse que tal informação poderia causar danos psicológicos em Yuna, cujos resultados estavam além da imaginação dele.
É pior que falar o nome de Você Sabe Quem. Então...
— É, acho que pode ser — respondi.
— Bem, se você insiste tanto, não posso negar uma suplica de um jovem virgem.
— Suplica? Eu mal cheguei a afirmar...
— Não se preocupe — ela se aproximou de mim com passos firmes. Sua mão nua saiu de sua cintura e veio até meus cabelos. — Eu vou resolver tudo, oxigenado.
+++
Deixe-me explicar algo sobre Yuna. Acredito que é importante vocês saberem como funciona, em tese, os poderes da Assassina de Youkais. Quatro meses antes de eu conhecer o Senhor Demagogias, eu enfrentei Yuna em um embate pela vida. No confronto, descobri que parte de suas habilidades congelantes dependiam de seus olhos, e para não precisar matá-la, mas também para me manter seguro, eu ceguei seu olho direito.
Um jogo pelo empate.
O efeito do meu golpe para retirar sua visão, acabou causando os danos em suas memórias. Isso porque sou um estudante de artes místicas e manipulador de chi. Quando se estuda a arte de moldar o chi, aprende-se a criar diversas armas de energia. E a arma que usei para cegar Yuna, foi uma adaga de chi. O calor da energia entrou pelo ferimento em seu glóbulo ocular e acabou chegando ao cérebro, danificando suas memórias.
Ela esqueceu que me ama. Esqueceu que odeia a mãe. Esqueceu a lista de quem matou e de quem deixou de matar.
Quando com os dois olhos funcionando, a Assassina de Youkais poderia congelar qualquer coisa somente focando seu olhar. Não sei se é exatamente assim que funciona, mas é bem por aí.
Agora, com um olho, seus poderes estavam limitados.
Dito isso, quando Yuna e eu chegamos ao campo de golfe, eu estava meio receoso quanto ao desempenho da assassina em batalha. Mas, ela já havia me salvado do mesmo shinigami minutos antes desse segundo round, então, sinceramente, eu não sabia o que esperar.
— Como dizia Jack, o Estripador: vamos por partes. — Yuna se postou em uma linha reta na direção do deus da morte, que estava novamente sentado no gramado, admirando o céu noturno.
Ele virou o rosto sereno para a assassina, olhando-a como se a julgasse silenciosamente. Provável que muito por conta do que ela disse ao chegar.
— Hmph, uma frase de entrada e um rostinho bonito — comentou o shinigami.
— Será o título da minha biografia — rebateu ela.
Mal sabe que o título de sua biografia é: Yuna Nate. E nem foi ela quem escreveu.
— Tsc — tranquilo e calmo, o deus da morte se colocou de pé no gramado. — Por acaso, você sabe sobre a joia?
— A velha jogou no oceano.
— Yuna, não é momento para fazer referência a Titanic.
— Que foi? — Ela me olhou por cima do ombro. — Você disse para tentar resolver pacificamente mais uma vez. Estou conversando com ele, seu pamonha.
— Não é bem esse tipo de conversa, Yuna...
— Está bem, vou tirar minha roupa...
— Não! Esse caminho é mais errado. E se ele for um shinigami muito velho, pode ter algum tipo de ataque cardíaco.
— Então você admite que sou a mais bela das mulheres?
— Hã? Isso nunca saiu da minha boca!
— Pois é, já está na hora de...
Demagogias bateu o pé. O som impactante retumbou pelo solo e interrompeu nosso diálogo. Imediatamente, nós voltamos nossa atenção a ele.
— Estão fazendo muito barulho — disse o shinigami. — Se não sabem onde está a joia, peço que se retirem.
— Ok, pro inferno com esse papo de pacífico — Yuna levou os braços para trás e deu dois passos para frente. — Escuta, shinigami, eu não sei se já nos enfrentamos antes, já que perdi minhas memórias, mas considerando que ainda respira, suponho que esta é a primeira vez.
Depois dessas palavras que mostravam seu ego inflado, a assassina gesticulou com os dedos de uma das mãos às suas costas para que eu me afastasse. E eu não estou aqui para contrariar Yuna Nate. Com passos para trás, devagar eu tomei uma distância que julguei ser segura.
— Realmente, eu não a reconheço — falou o deus da morte. — Como se chama?
— Nate, Yuna Nate. A Assassina de Youkais.
— Hmm. Assassina de Youkais... esse nome eu já ouvi... não seria você a filha de Yuki-onna?
— Hã? — Aquela questão a pegou de surpresa. De longe pude ver os ombros dela relaxando e sua postura saindo do eixo. Estaria esse shinigami...
— Sim, olhando melhor, essa aparência angelical e esse olho hipnotizante... sem dúvidas é a filha dela.
— Conhece a minha mãe?
— Conheço.
— Então, sabe quem a matou?!
Alerta vermelho. A conversa entrou em um terreno perigoso. Um campo minado. Yuna não sabia de um detalhe muito importante de sua vida. Claro, ela esqueceu, mas, depois de tudo o que aconteceu, decidimos não contar a ela sobre isso, pois Mena explicou que havia uma relação conturbada de anos entre mãe e filha que acabou levando Yuna a fazer o que fez. Sem as memórias de seu passado profundo e dessa relação, a "nova" Yuna nunca compreenderia isso e poderia acabar entrando em um colapso emocional, que levaria a um problema muito maior.
Eu já vi a Assassina de Youkais enfurecida, durante alguns segundos. E eu não queria rever aquilo em uma versão estendida, com certeza. Umas das poucas certezas que tenho na vida. Então, quando Demagogias respondeu, eu me senti aliviado.
— Não, eu não sei quem a matou. Mas, estou decepcionado que ainda não tenha descoberto. Os feitos da Assassina de Youkais são lendas urbanas até mesmo para as criaturas sobrenaturais. Se você é quem diz ser, devo dizer que esperava mais de você.
— Tsc — Yuna desviou o olhar do deus da morte.
— Mas agora você me diz que perdeu a memória... e está usando um tapa-olho... Não me diga que acabou perdendo um olho...
As mãos de Yuna não estavam mais para trás. Ela cerrou os punhos ao absorver as palavras ditas com serenidade pelo shinigami.
— É, sua lenda é uma mentira.
Ao ouvir isso, o clima mudou. Não só a atmosfera tranquila que nos rodeava, mas a temperatura no campo de golfe também caiu. Estava frio demais, mesmo para as férias de inverno. A temperatura se tornou nórdica, o que indicava uma coisa clara: Yuna foi tirada do sério. Seus punhos estremeciam irritados.
— Eu não tenho culpa...
E então, ela se moveu. Meus olhos não foram capazes de acompanhar. Foi mais veloz do que o próprio Demagogias quando me atacou anteriormente. Ela deve ter superado a velocidade do som em um impulso, pois, quando o ruído de seus passos no gramado chegou aos meus ouvidos, a assassina já havia atravessado com um soco o torso do deus da morte, na altura do estomago. Era possível ver o antebraço direito de Yuna saindo pelas costas do shinigami e coberto pelo seu sangue azul.
Demagogias estava sem reação. Não aparentava estar sentindo dor, o que poderia ser considerado uma dádiva naquela situação. Ele cerrou os dentes e ergueu as mãos, as juntando para golpear Yuna de cima para baixo. Porém, nesse mesmo momento, a Assassina de Youkais puxou seu braço de volta, pelo túnel na barriga do deus menor, e acabou trazendo uma lembrancinha para fora.
As tripas do shinigami.
Aquele cordão de carne foi puxado com tamanha força para fora, que Demagogias cambaleou e não conseguiu completar seu ataque. E Yuna, com as tripas em punho, começou a girar e girar o deus da morte, com uma velocidade crescente, que começou a erguer a poeira do solo. Então, a corda de carne arrebentou com a pressão, e o shinigami foi lançado longe no campo de golfe.
Yuna cheirou o resto das tripas em sua mão e depois o sangue azul em seu braço.
— Seu sangue cheira mal — ela disse, olhando para o deus da morte estatelado na grama ao longe. — Isso me deixou decepcionada... — ela bateu o pé e uma lança de gelo saltou do chão para a mão livre de Yuna e...
— Chega!
Era uma voz nova.
Veio do lado oposto onde eu me encontrava, entre Yuna e o Demagogias. Não demorei para apontar meus olhos na direção do som.
— Desfaça essa lança, Yuna...
Era um cara jovem. Não como se tivesse dezessete como eu ou ela, talvez um pouco mais velho. Ele estava trajando vestimentas escuras, constituídas por um moletom preto, seguido de uma calça e tênis de corrida de mesma cor. Em suas mãos, um revolver esquisito que parecia ter saído de um filme de ficção científica, que estava apontando contra o corpo de Yuna.
A assassina encarava o jovem, deixando claro em seu rosto que não estava entendendo coisa alguma.
— Eu já vi você desviar de balas antes — disse o cara —, mas está aqui é diferente. Vai machucar você e eu não quero isso.
Espera. Eles se conhecem? Ou melhor, ele a conhece?
— Quem é você, afinal? — Eu me aproximei um pouco, para o caso de se iniciar um embate.
— Sou o agente 3k1 — respondeu ele, sem tirar os olhos da mira de Yuna Nate —, integrante do Esquadrão Z3 da Mythpool. Atualmente responsável por levar aquele shinigami preso. E você?
Eu deveria responder a um agente da Mythpool? Para quem não sabe, a Mythpool é uma organização policial secreta, financiada pela ONU, cujo objetivo é encobrir e cuidar de casos sobrenaturais, divinos ou extraterrestres. Na verdade, a Mythpool já deixou de ser secreta há muito tempo, mas, ainda assim, age secretamente. Contudo, a Mythpool não deveria estar se envolvendo em um caso de shinigami. Os deuses da morte eram uma realidade no Japão há quase tanto tempo quanto a organização policial. Então, por que o agente estava ali, salvando a vida do Demagogias?
— Daigo, Daigo Kazuo — respondi.
— Daigo é...? Bem, sei quem é você...
Ele não tirava os olhos da assassina, e a assassina não tirava os olhos dele.
— Então, Yuna, não vá dizer que não se lembra de mim.
A Assassina de Youkais aparentava estar mais calma. A temperatura gélida voltou ao normal naquele meio tempo, e a expressão confusa da garota deixava claro que ela não estava mais irada.
A lança de gelo em seu punho se desfez em neve, e com um sorriso sem graça, ela respondeu:
— Perdão, mas eu não tenho ideia de quem é você.
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