Ignis: 002
— Aqui. Estamos finalmente aqui, seu pamonha. O famoso Diamond Floor, de frente ao Templo Kurama. Phew, eu nunca fui do tipo religiosa, mas, mesmo assim, me sinto um pouco desconfortável em pisar neste lugar com tamanha intensão assassina abraçando meu coração.
— Você não precisa dizer o nome do local tantas vezes, guria. Eu já sei que chegamos e sei muito bem onde estou. Não é minha primeira vez aqui, afinal de contas.
— Hmph, também não é minha primeira vez por aqui, está bem? Eu só estava tentando criar um clima dramático, só isso.
Claro, com certeza. Era exatamente isso o que aquela situação pedia, um clima dramático. Como se subir o Monte Kurama com a energia de uma barreira mística empurrando seu corpo para o centro da Terra, para chegar sobre um solo sagrado, à procura de um semideus rebelde estrangeiro que é listado como o homem mais procurado do mundo, já não tivesse um clima dramático o suficiente.
Mas, por fim, ali estávamos nós. Como a guria deixou bem claro em sua fala, e se me permitem ser repetitivo, nós estávamos no Diamond Floor, diante do Templo Kurama. E ali, era possível assistir ao sol nascendo na linha do horizonte.
Era até que um pouco revigorante ver aquela cena.
A subida não foi nem um pouco fácil para mim, como geralmente costumava ser. Graças ao perímetro controlado, minha velocidade foi consideravelmente limitada e, quanto mais próximo chegávamos de nosso objetivo, maior era a pressão que a barreira exercia sobre meu corpo canino. Isso dificultou bastante nossa chegada ao local. E mesmo saltando nas escadarias finais para compensar nossa demora, o tempo que perdemos com os Tengus e Zelo fez bastante diferença.
Enfim, o importante é o que importa.
Ali estávamos nós. Dia 5 de novembro, algo por volta das 6:00 da manhã.
Mas, onde estava o nosso inimigo?
Onde estava o homem a quem fomos derrotar?
Tanto Yuna, quanto eu, notamos sua ausência após pararmos de discutir um pouco. Nós olhamos de um lado para o outro, para cima e para baixo, assim como farejamos com atenção nossos arredores. Em relação a capacidade olfativa, dificilmente a guria conseguiria encontrar algo, mas, mesmo um lobo, líder de alcateia, como eu, não fui capaz de encontrar ninguém com meu faro infalível.
O que aquilo significava? Havíamos escalado o Monte Kurama por motivo nenhum?
Fortemente desconfiados, decidimos nos mexer um pouco. Yuna desceu de minhas costas e criando um espaço entre nós, caminhamos discretamente para mais ao centro do Diamond Floor, mantendo nossos corpos lado a lado em uma linha reta.
E então... nossos passos cessaram.
— G-Guria...
— Eu também senti. Ele está lá dentro, imóvel. Será que está dormindo?
— Se estiver dormindo e mantendo um perímetro controlado dessa magnitude, não hesito em dizer que um de nós dois não sairá com vida daqui.
— Hmph, seria uma lástima se ele estivesse dormindo depois de tudo o que fizemos para chegar até aqui. Eu não sou muito fã desse tipo de assassinato sorrateiro. Eu gosto da emoção do combate, entende?
— Eu não entendo, e não é a melhor hora para seus pensamentos pervertidos, guria. Eu estou sentindo uma treta.
— Está bem, eu entendi a referência, seu pamonha. Quer dizer que alguém está se aproximando, não é?
Exato. Era exatamente o que eu estava querendo dizer. A presença que inundava o interior do templo se movimentava para fora dele, em nossa direção.
Yuna já havia se encontrado com esse semideus no passado, pelo o que ela me contou, e considerando as informações e o modo como ela o introduziu, eu não deveria estar preocupado com o progresso daquela missão. No entanto, sua presença, mesmo que ainda se aproximando, fazia minhas quatro patas perderem a perseverança.
— Ora, ora, então aí está você. O responsável por colocarem minha casa a baixo. Virgílio Alighieri. Há quanto tempo, não?
Saindo do interior do templo como se emergisse de uma outra dimensão, um homem, cujo cabelo e barba eram brancos como lã de cordeiro, e os olhos azul-claros, como se refletissem as águas límpidas da nascente de um rio, deu passos tranquilos para os degraus que separavam a entrada do santuário e o Diamond Floor, parando no degrau intermediário para nos observar.
— Hmph, já faz bastante tempo mesmo, Yuna Nate. Mas que petulância.
O homem, ou melhor, o semideus, trajava roupas até que confortáveis para alguém que carrega o título de Transgressor da Obra dos Deuses. Um top masculino preto, igual aos usados por alguns atletas de alta-performance, o que deixava seu abdômen de seis gomos delinear um V na direção de sua cintura. Ali, nos quadris, um short, também preto, onde ele deixava as mãos ocultas nos bolsos, se estendia até os seus joelhos. E nos pés, um par de sapatilhas chinesas era o que ele calçava.
Um tanto quanto relaxado e peculiar para o homem mais procurado do mundo místico e sobrenatural.
— Bem, eu meio que lhe devo um favor por aquela vez que me levou para o Mundo dos Shinigamis, seu pamonha, mas acho que estou certa em acreditar que ter o libertado de todo tormento que a crise espiritual estava lhe causando nos deixou quites, não estou?
— Não é como se tivesse feito o que fez por mim, não é? Mas, penso que posso permitir esse seu pensamento petulante.
— Ótimo. Porque é exatamente aqui que vem o meu ponto. Você enviou dois deuses encarnados para destruir minha agência e lar-doce-lar; me dê um único bom motivo para eu não te deixar roxo como uma beterraba das fazendas Schrute.
— Você não pode. Esse é o meu único bom motivo para você. Diferente da primeira vez que nos encontramos, eu não estou com meus poderes limitados a barreiras e também não estou sem um braço. Você pode até ter derrotado três encarnações de deuses guerreiros, o que é louvável para uma hanyou, porém, eu estou acima do que você conhece sobre poder. Vir até aqui para tentar curar seu orgulho ferido foi uma grande perda de tempo.
— Tsc...
— Vamos fazer dessa forma. Você e seu shikigami podem dar meia-volta e retornarem para o que restou de sua querida residência. Como você é muito bonita, vou ignorar a petulância de terem subido aqui para me confrontar, e os deixarei em paz se não entrarem mais em meu caminho.
— G-Guria, até que não é uma má proposta a dele.
— Ora, o lobo é bastante sábio.
— Ei, ei, não dirija a palavra ao meu cachorro, está bem? Só eu posso conversar com ele. Agora, olhe aqui, preste atenção. Eu não sei qual seu objetivo idiota com tornar o Monte Kurama propriedade privada, ou se só está tirando férias de sua vida de fugitivo, mas eu não sou do tipo que perde uma noite de sono e todos os móveis que comprei nos últimos dois anos, e deixa por isso mesmo. E eu não dou mais a mínima se este lugar é sagrado.
— Não, guria, acho que é melhor aceitarmos o que ele propôs. Agora que ele está aqui fora... seu odor é como o de uma pilha enorme de cadáveres.
— Vê se não me amola, Ulim. Vai dar para trás depois de todo esforço que fez para chegar aqui, é? Só se afaste, está bem, para que o sangue dele não acabe espirrando em você.
Eu não tinha como convencê-la a desistir, era tarde demais. Quando a guria coloca algo na cabeça, ela segue como um rinoceronte em fúria até conseguir o que quer, ou até chegar no ponto onde cai em si e percebe que precisa fazer uma retirada estratégica. Eu não sabia se Yuna conseguia sentir o mesmo cheiro que eu sentia emanando daquele semideus, mas era aterrorizante aceitar que ela estava realmente prestes a batalhar com ele, e com sua costumeira autoconfiança de dar inveja.
Sendo um lobo, líder de alcateia, como eu, instintivamente minhas patas me fizeram tomar uma distância que julguei ser confiável para que, pelo menos, conseguisse bater em retirada caso a situação pedisse.
Se é que já não estava pedindo.
— Você tem certeza disso, Yuna Nate? Deveria pensar como seu shikigami e voltar para sua casa. Meu problema nunca foi com você, eu só precisava garantir que não fosse causar uma situação petulante como está causando agora.
— Pois você é o pior negociador que existe, seu pamonha. Onde que planejar uma operação de assalto me faria ignorar você e seu plano maligno? Francamente, foi você quem nos deixou entrar na barreira, afinal de contas.
— Que petulante, é justamente aí que você se engana. Mas que seja. Se o que quer é me enfrentar, tudo bem. Confesso que estou curioso para ver em primeira mão as habilidades daquela que detém o título de Assassina de Youkais. No entanto, terá primeiro que passar pelo meu anjo da guarda.
Declarando aquela condição, flutuando às costas do filho de Hades, uma mulher se materializou, como se tivesse vindo de um plano de invisibilidade, com sua imagem sendo preenchida no ar como se aumentassem sua opacidade de zero para cem por cento.
A mulher era ruiva, com o cabelo na altura de seus ombros, que lembrava magma escorrendo da boca de um vulcão. Sua pele era alva como a de Yuna, e era fácil notar porque suas peças de roupas estavam limitadas a uma espécie de lingerie prateada. Mas não era a beleza de seu corpo ou cabelo que mais chamava a atenção naquela mulher, já que, mais ao meio de suas costas, seis enormes asas avermelhadas brotavam de sua carne, formando o desenho de uma estrela de seis pontas atrás dela.
Sem dúvidas era ela.
Nice, a deusa grega da vitória.
Por sobre o ombro de Alighieri, ela apontou seus olhos verdes como esmeraldas para nossa querida Assassina de Youkais, se assemelhando a um caçador ao apontar seu rifle para sua caça.
— Hmm, interessante. Realmente, esse não é um corpo de encarnação, é o corpo original. É a verdadeira deusa da vitória quem eu terei de enfrentar. E para ser sincera, isso me deixa bastante animada.
— Não importa o quão petulante você seja, enquanto a deusa da vitória estiver ao meu lado, não existe possibilidades de eu ser derrotado. Na verdade, eu nem mesmo precisarei lutar. Nice?
— Diga, faustoso mestre.
— Destrua... o lobo.
Como é?
Se havia alguma coisa da qual eu estava certo, é que eu era o único lobo, líder de alcateia, naquela montanha e naquele momento. E pelo modo que o par de esmeraldas da divindade se fixou em mim, eu não estava ouvindo coisas em uma espécie de delírio.
Sem mesmo bater seu sexteto de asas ruivas, a deusa da vitória se lançou em minha direção sem me dar brechas para que eu cogitasse alguma ideia de defesa. Era como se meu cérebro se esquecesse por um pequeno momento de que eu poderia reagir contra aquele ataque.
Essa era a sensação de confrontar um deus de verdade?
Quando me dei conta, Nice já estava gloriosa ante a mim, com os dedos de suas mãos esticados como se tentasse os transformar em lâminas para me perfurar, o que eu acreditava ser sua real intenção. Atravessar meu corpo canino com seus antebraços, causando-me danos que meus circuitos mágicos não dariam conta de curar. A estratégia mais pragmática possível, tenho de admitir.
Contudo, não era aquele o dia de minha ida desta para uma melhor.
Tão veloz quanto a deusa grega da vitória, entre mim e a divindade, que já movia seus braços para o golpe aniquilador, Yuna Nate insurgiu para um heroico resgate.
Projetando seus antebraços como dois pilares um pouco à frente de seu corpo, a guria recebeu os golpes perfuradores que as mãos de Nice realizaram. Uma mão para cada antebraço. Os dedos esticados da deusa da vitória atravessaram os antebraços de Yuna, até que as palmas de suas mãos estivessem abertas dentro do corpo da guria.
— Caramba, isso dói mais do que eu imaginei. Não só meus tendões foram rompidos, como meus ossos foram quebrados como galhos secos, tudo em um centésimo de segundo.
— G-Guria...?
— Eu estou bem, seu pamonha. Ferimentos como estes não são um problema para mim, e você sabe disso. O importante é que você ainda está vivo. E também, que nesta situação, posso testar uma de minhas ideias para não perder para esta deusa.
— Hmm?
Foi Nice quem não entendeu o que se passava ali. Mas não pelo o que a guria disse, e sim, pelo o que de fato estava se passando ali. Ao tentar retirar suas mãos de dentro dos antebraços da Assassina de Youkais, a deusa simplesmente não conseguiu. Ela não foi capaz, como se suas mãos houvessem entrado em fusão com o interior carnal de Yuna.
— Quer saber o porquê disso, ruivinha? Não é tão complicado. Eu congelei suas mãos junto do interior de meus antebraços, e como pode ver eu mal cheguei a sangrar muito. Estamos conectadas de uma maneira bem intima, não acha? E o motivo disso também não é complicado. Você, como deusa da vitória, tem como base dois poderes: a invencibilidade, e a capacidade de proporcionar a vitória aos outros. E apesar de parecer injusto, essas duas habilidades são de gênero defensivo para si mesma. Você não é capaz de fazer alguém ser derrotado em uma espécie de onipotência, mas pode fazer com que sua derrota seja impossível. E agora que estou ligada a você, nós compartilhamos da mesma invencibilidade. Você, na verdade, funciona como um talismã da sorte. E se temos a mesma invencibilidade, significa que ela se anulará.
— Hmm...
— Já vi que você não é do tipo que fala bastante como seus irmãos. Mas, mesmo assim, preciso lhe fazer essa pergunta. Um empate é composto de dois vencedores, ou de dois perdedores?
— Hmph, mas que pergunta mais petulante. — Disse o semideus mais ao fundo. — É claro que um empate é composto por dois perdedores. Um vencedor só é vencedor quando alcança a glória da vitória superando seu adversário e também a si mesmo. Um empate não significa que os dois venceram um ao outro, pois não há vitória sem a derrota. Porém, são dois perdedores, já que, além de não derrotarem um ao outro, também não foram capazes de derrotar a si mesmos e superarem seus limites.
— Eu vou aceitar seu argumento, seu pamonha do submundo. Só não precisava ter levado minha questão tão à sério. Às vezes eu só digo as coisas para parecer legal.
— Você é quem está levando este nosso reencontro muito à sério, Yuna Nate. A propósito, embora sua tática para anular a invencibilidade de Nice seja impressionantemente astuta, você se esqueceu de um pequeno detalhe. Eu também estou sendo abençoado pelos poderes da deusa da vitória, e minha conexão com ela é ainda mais forte do que a sua.
Fascinante.
Eu sabia que a guria tinha um plano, mas não imaginava com minha cabeça canina que pudesse ser tão eficiente, e muito menos que ela estava disposta a executá-lo da maneira mais rápida possível, usando o próprio corpo para forçar um vínculo com a deusa grega. Todavia, essa conquista da Assassina de Youkais não durou o bastante para que ela acabasse com Nice e pudesse enfrentar Alighieri nas mais justas condições. Diante do peito do semideus, uma longa katana totalmente prateada se materializou na horizontal, emanando partículas de luz azul no processo. Ele a apanhou pelo punho metálico, serenamente, e a brandiu na direção de Nice, ferindo o ar com seu movimento, mas curiosamente não causando nenhum som.
No momento seguinte, as mãos da deusa da vitória foram separadas do resto de seu corpo com um corte perfeito um pouco acima dos pulsos, deixando os membros decepados grudados no gelo dentro de Yuna.
— Tsc, ele só balançou a espada a metros de distância, que espada pé no saco.
Assim que Nice foi liberta das algemas que eram os antebraços da guria, ela flutuou um pouco para trás, recuando para que um novo par de mãos crescesse de onde o sangue dourado escorria livremente. E então, as mãos que estavam dentro de Yuna se desfizeram em poeira dourada.
Baixando ambos os braços, os dois rombos nos antebraços da guria se regeneraram rapidamente, fazendo parecer que aqueles ferimentos nunca tivessem acontecido.
— G-Guria, aquela espada, por acaso...
— Exatamente, seu pamonha. É a lendária lâmina Kusanagi. A alma cristalizada de Yamata no Orochi.
Aquilo era péssimo em diversos níveis. Tudo o que disseram sobre aquele homem estava se provando, pouco a pouco, imensa realidade. Filho de Hades, detentor da Espada que Colhe as Nuvens do Céu, e acompanhado por Nice, a deusa da vitória em sua essência. Eu não estava sendo medroso ao querer sair correndo dali. Latindo de maneira sincera, eu nunca me senti tão certo sobre uma decisão desde que fui invocado como shikigami por meu mestre. Talvez, nem mesmo ele, se estivesse vivo, seria capaz de deter Virgílio Alighieri.
— Seu plano de tirar vantagem de Nice não irá funcionar, Yuna. É uma ideia petulante.
— Eu não penso assim, seu pamonha. Eu sei exatamente como os poderes dela funcionam. Em batalha, Nice baseia seu poder de manipular as probabilidades e a sorte em cima dos desejos de vitória de seus adversários. Assim, coincidências breves acontecem para que, não importa o que o inimigo faça, dê errado, ou não certo o bastante para lhe dar a vitória. Isso quando se trata de se defender. Em ataque, as coincidências se aplicam aos movimentos que ela faz, ou às atitudes de defesa de seu adversário. Significa que, não importa o quão simplório o ataque dela seja, algo ocorrerá para que seu golpe lhe entregue a vitória. Agora há pouco, contra o Ulim, ela simplesmente iria atravessar suas mãos em seu corpo, o que pode ser fatal, mas, se levarmos em consideração a velocidade que ela usou para se aproximar, e como deixou óbvia a intenção de seu golpe, se não fosse seus poderes como deusa, meu cachorro teria tomado a decisão instintiva de se mover para se safar do ataque, e como ele consegue colocar sua existência acima da barreira do som, seria impossível dele ser alvejado por aquela ofensiva. O que deve ter acontecido é que os poderes de Nice, manipulando a sorte, fizeram com que o corpo e mente de Ulim esquecessem de sua capacidade de mover acima do som, tirando do caminho a única coisa que não lhe entregaria a vitória.
— Hmm, será que isso tem algum sentido mesmo, Assassina de Youkais. Se isso estivesse correto, algo aconteceria para que você não o salvasse como fez. Pois como sabemos, o lobo parece que nunca ao menos esteve em perigo.
— É aí que está o segredo, a chave de tudo. Não, na verdade, "segredo" não é o termo correto. Eu não tenho porque esconder o jogo, já que não estou jogando para vencer.
— Como é? Mas que petulância é essa?
— Você não está prestando atenção, seu pamonha, é por isso que ainda não compreendeu. Eu disse que os poderes da deusa se baseiam em manipular sorte e probabilidade em cima dos desejos de vitória. Ou seja, se você não desejar verdadeiramente vencer, não há como os poderes de Nice funcionarem em você, a deixando apenas com suas habilidades de deusa guerreira. Como eu me coloquei à frente de Ulim na intenção de ser derrotada, o oposto deveria acontecer. Mas como o oposto da derrota é a vitória, e Nice é naturalmente invencível, um ponto de neutralidade é a única escapatória. Em outras palavras, um empate.
— Tsc, bravata. O que está me dizendo é que você realmente deseja que Nice lhe derrote, a ponto de querer se deixar ser morta, é isso? Sua lógica sobre os poderes de Nice faz até sentido, entretanto, não acredito que seu desejo de ser derrotada pela deusa seja verdadeiro. Nós dois somos híbridos, e mesmo que em cada uma de nossas células corra um fluxo de magia, nossos cérebros são humanos em sua maior parte, e o mesmo instinto que faz os humanos se recusarem a morrer a todo custo, também existe em nós. E ainda que você tivesse encontrado uma forma de reprogramar sua mente para driblar seu instinto, para que funcionasse contra a personificação da vitória, você teria que desejar do fundo de sua alma.
— Ora, ora, mas eu desejo do fundo de minha alma, Alighieri. Só que isso, eu não vou me atrever a contar como fiz.
Então, quer dizer que aquela ideia idiota da guria...
Hmph, parece que não importa quanto tempo nós passemos juntos, Yuna sempre acaba quebrando minhas expectativas.
É como meu mestre, Mena Kitsune, dizia antigamente. Não são seus poderes de gelo herdados da mãe, seu domínio em diversas artes marciais, ou mesmo sua força e velocidades como a de um demônio faminto; o verdadeiro trunfo da Assassina de Youkais é sua inteligência de combate e criatividade estratégica. Enquanto ela tiver isso, os obstáculos irão desmoronar diante dela.
— Agora, ruivinha, vê se não me deixe no vácuo de novo, está bem? Me responda. Um empate é composto de dois vencedores, ou de dois perdedores? Vamos, pense sobre isso, pense.
A deusa da vitória aparentava estar um pouco confusa com a questão lançada pela guria, e isso estava claro se observasse bem a expressão de sua face se contorcendo muito discretamente. Ao que parecia, aquela pergunta aparentava ser impossível de ser respondida do ponto de vista de Nice.
— Tsc, maldita, petulante! Não dê ouvidos a ela Nice, eu sei o que ela está tentando fazer! Se você pensar demais nisso, sua mente encontrará um paradoxo, considerando o que acabou de vivenciar contra essa meio-youkai. E se isso acontecer. Se o conceito de vitória e derrota se tornar uma incógnita para você, que é a personificação desse conceito, sua invencibilidade irá se anular. E com isso, sua mente irá ruir. Mesmo que seja uma deusa, e que esse seja seu corpo original dos tempos mitológicos, a mente é aquilo que rege as cordas que controlam o corpo e a alma. Não importa quem você seja, se sua mente quebrar, você se tornará um recipiente petulante para energia espiritual. Será obrigada a encontrar um corpo de encarnação capaz de suportar seu poder, algo que não sei se é possível nos dias de hoje.
— Umm, olha só como ela lhe observa apaixonada, seu pamonha. Como você veio passando as noites frias com o corpo de uma verdadeira deusa seminua ao seu lado, hein? Me disseram que você tem um histórico longo de mulheres, e para falar a verdade, de perfil até que você não é de se jogar fora.
— Tsc, que petulância.
— E ei, ruivinha, não fique preocupada pelo o que ele disse sobre você perder a mente. Se eu não quisesse ser tanto derrotada por você...
— Já chega! Nice, não importa se seus poderes não funcionam com ela. Você ainda pode derrotá-la só por ser uma deusa guerreira. Sem manipular as probabilidades e a sorte, se você lutar sem isso, ela não poderá usar de sua invencibilidade a seu favor e você poderá derrotá-la, sem que fiquem em um ciclo eterno de empates. E além disso, a sua invencibilidade é natural. Mesmo que não possa manipular as coisas para vencê-la, de qualquer forma, ela não poderá derrotá-la, não importa o quanto lute. No final, é só uma questão de tempo.
Hmph, o semideus não fazia ideia. A guria não iria parar por ali. Ela tinha um plano completo. Uma estratégia de duelo que eu desacreditava, mas que depois de me recordar quem era minha parceira naquela missão, passei a apostar todas minhas fichas naquilo.
Nossa querida Assassina de Youkais estava disposta a ir além da sorte e das probabilidades para derrotar a deusa grega da vitória.
— Certo, faustoso mestre.
E Nice deixou de flutuar, levando a maciez das solas de seus pés para o Diamond Floor. Em seguida, seu sexteto de asas envolveu seu corpo, transformando-se em um vestido avermelhado e emplumado sem alças, cobrindo da metade de seu peito até a metade de suas coxas.
— Guria, não se esqueça que esse é o corpo original dela. Pode não ser tão simples quanto os outros três que enfrentou.
— Isso não é um problema, Ulim, porque eu realmente não quero vencê-la. Eu espero é que ela me derrote.
— Tsc. Não dê ouvidos, Nice, mate-a de uma vez.
— É, ruivinha, faça o seu pior.
Não havia a necessidade de Yuna me dizer para eu me afastar ainda mais dali. Assim que Alighieri se dirigiu à deusa a ordenando que matasse a guria por definitivo, eu me apressei em sair detrás dela antes da divindade investir. E eu não poderia ter sido mais sábio em minha atitude, pois, ao que Nice avançou em ofensiva, com seu antebraço se transmutando em uma lâmina triangular, Yuna não teve dificuldades em se esquivar, saindo da linha de ataque no momento certo, e deixando livre justamente o local em que eu me encontrava segundos antes. A deusa moveu seu membro cortante de baixo para cima, arranhando o solo sagrado e cortando o ar em um perfeito traço vertical. Ineficaz, visto que a Assassina de Youkais já havia mudado sua posição no campo de batalha. Mas, não somente isso. Ao que a deusa da vitória estava próxima para desferir seu golpe, a guria se dividiu em duas, com uma saltando para esquerda e a outra para direita, deixando Nice apenas com o vácuo.
Agora, eram duas contra uma. Onde uma era falsa, e a outra era verdadeira.
Geralmente, eu conseguiria identificar qual das gurias era a real. No entanto, atualmente, Yuna aprimorou sua técnica de clonagem para um ponto próximo da perfeição, conseguindo até mesmo duplicar sua mentalidade e desejos, mas não sendo capaz de duplicar a energia de Gungnir selada em seu corpo.
Embora as duas fossem gêmeas, só a original conseguia usar de magia divina.
— Hmm, que truque faustoso, Cavaleira de Cristal. Não consigo identificar qual é a verídica. O desejo de derrota emana igualmente das duas.
— Bem bacana, não acha, ruivinha? — Disseram as duas gurias em uníssono. — Agora precisa usar seus poderes sobre o conceito de vitória para descobrir quem é a verdadeira. Contudo, se usá-los, não importa qual de nós duas você ataque, porque nós duas queremos ser derrotadas por você.
— Não cairei no truque de você... vocês. Eu sou uma deusa guerreira.
— Oh, claro que não irá, você é invencível. Você logo irá me derrotar. — Ainda em sincronismo elas disseram. — Não sei pelo que está esperando. Acha que está na medalha Olímpica para ficar parada aí? Se continuar indecisa desse jeito, olhando para cada uma de nós alternadamente, não realizará as ordens de seu mestre e vai acabar se transformando em uma vendedora de calçados esportivos. Use seus poderes.
— Não o faça, Nice! É uma ordem. Ataque aleatoriamente, você é invencível, se esqueceu?!
— C-Certo!
E a deusa avançou mais uma vez, partindo para cima da Yuna à sua esquerda. Se movendo como um vulto em uma linha reta, a divindade se colocou à frente de uma das gurias em um piscar de olhos, golpeando rapidamente com seu braço cortante e atravessando o abdômen da Assassina de Youkais até que a ponta de sua lâmina emergisse do outro lado do corpo dela.
A considerável quantidade de sangue espirrando com o ferimento causado fez meu coração falhar uma batida.
Mas, eu não poderia me deixar levar e agir emocionadamente. Eu precisava confiar no plano da guria.
Além do mais, a outra Yuna, assim que sua duplicata foi golpeada com tanta indelicadeza, avançou contra a deusa da vitória, surgindo em um salto às suas costas com um soco armado e apontado para a espinha cervical da divindade.
— Olha a bomba, sua pamonha!
— Não serei derrotada!
Slash!
Ao que escutou o brado de nossa querida Assassina de Youkais, Nice, sem retirar o braço de dentro da primeira Yuna a ser atacada, virou o corpo em noventa graus e, com o braço livre também sendo transformado em lâmina, golpeou de qualquer jeito na direção da outra Yuna em pleno ar, e acabou, com uma perfeição que só poderia provir da mais pura sorte, decapitando a Assassina de Youkais, cuja cabeça se separou do corpo quase como uma rolha se separa da garrafa de champagne.
Com sangue saltando para todos os lados, a cabeça de Yuna caiu pesadamente em um lado do chão, enquanto o corpo desabou para o lado oposto.
Mas que coisa! Qual delas era a verdadeira?!
— E-Eu faustosamente a matei...? Mas...
— Você usou, ruivinha. Você usou seus poderes, não é? Movimentou seu braço tão desengonçadamente e ainda assim realizou uma decapitação perfeita. Nós duas sabemos que só havia uma forma disso acontecer. E se ela está morta, significa que ela venceu. Ela desejava verdadeiramente morrer e se lançou para que você entregasse a vitória a ela. Logo, por consequência, você perdeu, não acha?
— N-Não! Eu a derrotei, ela está morta.
— Engraçado, porque assim voltamos para o fato de que morrer pelas suas mãos era a vitória que ela buscava, e quem arrancou a cabeça de Yuna Nate, hein?
— Calada! Você é apenas um clone!
— Mas você sabe que estou certa, ela venceu. Então, você só pode ter perdido. A menos que responda a minha pergunta sobre o que é um empate.
— Tsc...!
— Nice, não a responda!
— Um empate é o resultado de dois perdedores! É isso!
Hmph, eu entendi. A essência do estratagema engenhoso da guria, eu entendi.
Talvez já pudéssemos declarar a verdadeira vencedora por ali.
Mas antes, tínhamos de ter certeza.
A deusa da vitória, após responder à questão que a guria a lançara repetida vezes, com a expressão de alguém que acabou de desvendar um enigma complicado, sentiu as pernas tremerem e logo retirou seu braço cortante do corpo de Yuna, dando dois passos curtos para trás, e pisando na poça de sangue gerada entre a cabeça e o corpo da outra guria.
— Se ela venceu... e eu também... um empate...
— Nice, não pense sobre isso, eu ordeno! Eu ordeno!
Só que de nada adiantou os gritos de ordem do Transgressor da Obra dos Deuses, a deusa grega da vitória já estava imersa em um paradoxo envolvendo a existência de seus próprios poderes.
— Se nós empatamos... eu também... eu também... faustoso mestre...
— Não admita derrota! Se fizer isso, Nice...!
— Eu também... perdi... faustoso mestre.
Agora sim, nós tínhamos uma vencedora.
Ao declarar sua derrota, a deusa grega da vitória anulou seus próprios poderes que, por se tratar de uma divindade, estavam conectados à sua essência divina. Com isso, os olhos verdes como esmeraldas de Nice se esbranquiçaram, perdendo totalmente seu brilho, e ela caiu de joelhos no Diamond Floor, antes de se estatelar ao solo.
Logo após isso, o peso que a barreira em volta do Monte Kurama fazia em meu corpo começou a sumir, e não demorei para notar que aquele perímetro controlado estava se desfazendo.
— Hmm, muito esperto, seu pamonha do submundo. Usou a mana da deusa da vitória para criar a barreira. Por isso que, apesar de simples, ela parecia ser inquebrável.
Yuna moveu o olhar para o semideus enquanto o ferimento em seu abdômen se fechava sem dificuldades. E Alighieri, que olhava para o corpo caído de Nice com os dentes cerrados, ignorou a guria até que o corpo decapitado de sua duplicata se desfizesse em neve junto de todo aquele sangue.
— Mas que petulância. Você quer mesmo entrar no meu caminho por conta de uma casa e de uma noite de sono?!
— Hmph, não era só uma casa, está bem? Era a ACSI, a Agência de Combate Sobrenatural e Inteligência. Foi isso o que você mandou destruir. Capiche?
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro