Interlúdio - Ágape por Natureza
Apesar dos pesares
— Não tem ninguém nem no segundo, nem no terceiro andar — disse Asha-Maiura, atraindo o olhar do Senhor dos Hagar para o alto das escadas. Com uma cara de tédio e as mãos enfiadas nos bolsos da jaqueta jeans, Yaser'kyfieh começou a descer os degraus para se juntar ao seu general.
Berat-Enira estava parado de braços cruzados no meio do hall, após uma busca infrutífera pelo primeiro piso da casa que ele e os comandantes dos Hagar haviam invadido há poucos minutos.
Digo "casa", mas o lugar estava mais para mansão. Uma saída das páginas de um dos romances que retratam a Era Vitoriana. Era tão enorme que tomaria conta de um quarteirão inteiro se ficasse numa rua residencial de Quebec, mas não ficava. Estava situada em uma propriedade afastada, cercada de jardins vistosamente bem-cuidados. Um caminho de pedras conduzia dos portões até o pátio circular, com uma fonte de querubins jorrando água em seu centro, que ficava na frente da grande construção branca. Bastante gente devia morar por ali, gente endinheirada e seus muitos empregados. Mas onde andará esse pessoal todo? J-Hope se perguntava quando Suga apareceu. Se fossem Edoras'sedoni, já teriam aparecido...
O comandante dos Hagar de Akasha continuou ao parar diante de Ak'houan-a-rae:
— Mesmo sem a confirmação de En, está óbvio que no quarto e no quinto também não tem nada. Fugiram todos com o rabo entre as pernas.
Berat-Enira suspirou. Havia se passado cerca de uma hora desde que sentira a presença do Portal, era claro que os Lirthua'shoa o moveriam para um novo local. Mas sem deixar alguém para cobrir a fuga?
Mesmo que adivinhassem que estaríamos lidando com os Edoras'sedoni na Terra das Lágrimas, eles não tinham como saber que teríamos de fazer todo o caminho de lá até aqui voando. Então, por que ninguém ficou para ganhar tempo?
— Khro atingiu Oaber-Rune e todos que o acompanhavam ontem, não? — perguntou Berat, e Asha assentiu. — A marca das trevas... Eles ainda devem estar sob o efeito dela.
Marca das trevas? Hobi estranhou, boiava totalmente.
É a aura fria deixada nos corpos feridos pelas sombras de Khro-Yehath. Ela se alimenta da energia dos corpos e impede que sarem. Quanto mais fundo for impressa, mais tempo leva para se dissipar.
Enquanto Berat-Enira esclarecia a dúvida de seu hospedeiro, Asha-Maiura perguntou:
— Quer dar uma busca na área? Talvez não tenham conseguido ir muito longe.
Hagar'miresa negou com um aceno de cabeça.
— É certo que Aevarast-Evanih e Makir-Edash levaram o Portal para longe, no máximo encontraríamos os Lirthua'shoa, e... — Berat desviou seus olhos de pedra do rosto do amigo. — Não gosto da ideia de confrontá-los quando mal são capazes de se defender.
Asha não esboçou qualquer reação física, no entanto Suga soube na hora que isso não era uma concordância para com o posicionamento do Guardador dos Espíritos Condenados, mas sim a desistência nascida do cansaço de quem já não aguenta mais repetir a mesma coisa tantas e tantas vezes. O rapaz riu sem humor e disse, tentando controlar a indignação:
— Zadha-Rine não pensou duas vezes e atacou quando você e Hoseok-ah mal tinham se recuperado. Por que não devolver na mesma moeda?
Um sorriso suave, e um tanto melancólico, marcou as feições de J-Hope, e o Senhor dos Hagar disse, repousando as mãos nos ombros de Suga:
— Porque sem poderes, eles são apenas pequenas Crianças de Ak'Mainor, como você e Hoseok, Min Yoongi. Não podemos machucar Crianças, não importa o motivo. Não seria correto. — Ele afastou as mãos do corpo do amigo e passou por ele, indo até um busto de mármore que estava alinhado à parede à direita da escada para observá-lo melhor. — Lidaremos com eles outro dia.
Apesar do tom sereno e gentil inerente a Ak'houan-a-rae, estava bem claro que o assunto estava encerrado. Suga estalou a língua, frustrado. Sabia que seria assim, a conformidade amarga do Hagar da Coragem e da Sinceridade e o silêncio dele explicavam tudo, mesmo antes de ter aberto a boca. Porém, não conseguira evitar, não conseguia entender Berat-Enira.
Foi no Egito que o rapper compreendera bem o que Asha-Maiura quisera dizer com "até de olhos fechados" quando indagara se Berat-Enira podia derrotar o Senhor dos Fazrat'shoa. Compreendera ao vê-lo neutralizar em menos de um minuto um mar de Edoras'sedoni, sem causar um arranhão sequer a nenhum deles.
Jin não se equivocara ao dizer que a área pela qual os Filhos de Larhen se espalhavam devia ser imensa. Ela era, estendia-se por quilômetros e quilômetros desde o profanado túmulo de Sacará, onde a contaminação tivera início, e isso também não havia sido problema. Um planalto feito de pedra amarelo-ambarina semitransparente se erguera por toda a extensão de seu perímetro, abarcando até o último dos Edoras'sedoni em seu bojo e iluminando a noite com um pálido brilho perolado. Lavrado pela voz do Mestre dos Selamentos, ele fora coberto de inscrições na língua primeva — palavras de confinamento, mas também de cuidado e proteção — e desaparecera para dentro do ventre da terra tão rápido quanto surgiu, deixando um dispendioso oásis no que antes era ocupado tão somente pela seca esterilidade das dunas de areia.
O selo estava feito, e dizer que Berat havia gastado uma gota de energia para fazê-lo seria uma metáfora deveras exagerada.
Graças a Asha-Maiura, Suga agora podia ler níveis de energia com a mesma facilidade que leria um texto em hangul, e o do Senhor dos Hagar não havia se alterado, batendo num teto muito superior aos de En-Ephir e do próprio Asha, muito acima do de Fazrat'miresa. Por isso mesmo, na sua cabeça, era inconcebível que ele, alguém com tamanho poder assim, assumisse uma atitude sempre tão mansa, ainda mais com pestes como Zadha-Rine. Berat-Enira tinha tudo para tê-lo esmagado mais cedo. Tinham a chance de esmagá-lo e aos amiguinhos agora, bastava ir atrás deles, mas ele se recusava, porque era bom e gentil demais para isso, porque era esperançoso demais para isso. Era agoniante!
Se os Lirthua'shoa não reconhecem que estão errados, mesmo depois da infinidade de merda que já praticaram, é porque não vão reconhecer nunca. Não podem ser salvos, os hospedeiros deles também não... Isso deveria tornar tudo simples! Pensou Suga, tremendo de raiva e preocupação. Certo de que J-Hope e Hagar'miresa acabariam em maus lençóis em breve por conta daquela teimosia estúpida. Essa guerra poderia acabar amanhã, se Berat fosse menos sentimental!
Eu disse que ele era parecido com seu amigo...
Suga fechou os olhos e balançou a cabeça. Asha estava certo, dolorosamente certo. Ainda que Berat quisesse, Hoseok-ah não feriria quem não pode se defender. Até para ferir quem pode já é difícil...
Esforçando-se para engolir a irritação, Yoongi se virou para Ak'houan-a-rae (que ainda estava ocupado com o busto, traçando os contornos dele com a ponta do indicador distraidamente enquanto se perguntava como os novos Filhos de Menora podiam com as mesmas mãos que faziam coisas tão maravilhosas destruir outras tantas. O estado calamitoso do planeta não havia lhe escapado ao despertar, mas ver a extensão dos estragos durante sua viagem realmente o machucou. A Terra das Lágrimas costumava ser tão cheia de vida...) e o questionou:
— O que vamos fazer, então?
Antes que Berat pudesse despertar de seus devaneios e responder — Hobi não o faria, pois se sentia pego em falta ao ver o Ak'hagar daquele jeito e se culpava. Afinal, como um dos novos Filhos de Menora fazia parte daquela devastação —, a voz de Jin ecoou em suas mentes. Era Qenía-Araso.
— Meu general, En, Asha... Os Fragmentos foram encontrados sob ataque dos Lirthua'shoa. Já foram resgatados, mas Akisha se machucou. — RM literalmente despencou através do teto nesse instante, caindo agachado logo à esquerda de Montionless Min. Ele levantou; tinha uma bolsa-carteiro preta presa a tiracolo, embora não carregasse nada do tipo ao sumir para o quarto andar da casa. — Por favor, retornem para cá.
* * *
Apesar da cegueira
— Que pensa ganhar cedendo a tal estado de nervos, Xau? — perguntou Gama-Tash, o Sho do Vento, de seu canto do sofá, acompanhando a deambulação do companheiro pelo recinto. — Tenha paciência e pare. Está a me deixar entontecido.
Ambos os Edoras'shoa se encontravam na sala de visitas do reduto do Portal, e, além deles, seu senhor, Oaber-Rune, também estava por ali, acomodado numa poltrona, bem perto da lareira apagada e de frente para o arco que dava acesso ao hall.
Diferente do que o comandante dos Hagar de Akasha achava, os Lirthua'shoa não haviam fugido com o rabo entre as pernas sob a possibilidade de um confronto iminente com os Ak'hagar. Estavam exatamente no lugar que tomaram para si desde que despertaram nesta Era, não muito longe da casa a que os servos de Ak'Mainor Menora foram propositalmente atraídos.
Sim, atraídos. Quando o Portal anunciou que procuraria pelos Fragmentos, o Senhor dos Edoras — não sem muita relutância e tentativas de dissuadir a divindade dessa decisão, pois sabia que Berat-Enira sentiria a energia de Larhen assim que ela fosse liberada — o aconselhou a fazê-lo em outro local, um que pudesse ser considerado um autêntico reduto de Sua Excelência para que os Hagar não suspeitassem se passar de tapeação ao encontrá-lo.
E, após pensar um pouco, o Portal acabou por decidir que a mansão que ficava a poucas quadras dali seria perfeita para isso, pois era suficientemente isolada e andava deserta há cerca de uma semana, desde que os donos haviam saído de viagem. A partir disso foi simples. Os Fazrat'shoa da Levitação e do Tempo acompanharam Sua Excelência até a residência vizinha e a trouxeram de volta para casa, logo antes de partirem no encalço dos Fragmentos de Ak'Mainor. Para todos os efeitos, aquele lugar, não o em que estavam, vinha sendo até então o reduto do Portal.
Verdade seja dita, era muito arriscado. Deixar que Ak'houan-a-rae se aproximasse tanto do Portal era um plano muito arriscado, mas era o único jeito de mantê-lo a salvo sem desrespeitar suas exigências (só as desrespeitariam em último caso). Não se separar de seus servos era a principal delas, o que invalidou as chances de tirá-lo dali por conta do estado debilitado do Senhor dos Fazrat.
(A despeito dos cuidados de Sua Excelência, o quadro de saúde de Zadha-Rine ainda era bastante delicado, e ele não poderia ser locomovido. Se insistissem, o recipiente dele não resistiria, e a morte chegaria veloz sobre sua existência efêmera, banindo o Sho da Atração para o Mundo dos Mortos por toda uma vida. Não era uma opção, não no pé em que as coisas estavam).
Assim sendo, os Lirthua'shoa baixaram suas emanações de energia ao máximo e enviaram alguém para ficar de olho na residência-chamariz, ficando à espera de notícias, preparados para o pior. Se os Ak'hagar dessem mostras de se aproximar do verdadeiro reduto, o Portal seria levado para um novo local, a despeito de sua vontade. O problema era que fazia mais de uma hora desde a liberação da energia de Larhen, Makir-Edash até mesmo já havia retornado de sua missão malsucedida, e nada do mensageiro retornar nem de dar qualquer sinal de vida.
Por isso, o Edor'sho da Terra gastava o assoalho, cismadíssimo.
— Ficar zanzando que nem um tolo não vai ajudar em nada — insistiu Gama-Tash, a voz preguiçosa, apesar de ter tido sua tentativa anterior de comunicação ignorada.
— Como se ficar sentado adiantasse... — resmungou Vog-Xau, lançando um olhar enviesado de reprovação para o Sho do Vento.
Tash estava esparramado com as pernas dobradas sobre o assento do maior sofá da sala, com os braços descansando na grande almofada que ele mantinha sobre elas, as costas curvadas e o rosto apoiado na mão direita. A expressão e o olhar denotavam sono, algum quê de tédio. Era uma postura relaxada demais para o gosto da Antiga Força da Terra, especialmente para as atuais circunstâncias.
Gama-Tash estreitou os olhos, a tempestade de areia a enchê-los se fez mais intensa. Quem era Vog-Xau para censurá-lo depois de ter desandado com todo o plano de ação deles na noite anterior? Pelo Ente Criador, não o culpava pela derrota que sofreram, mas estava passando maus bocados por causa do lado esquerdo do torso e do braço completamente inutilizado de seu recipiente. O que Vog-Xau não devia estar sofrendo? O corpo dele havia se ferido muito mais e mais seriamente que o seu, sabia-o. Só estava preocupado com ele... Ainda assim ele só conseguia ver sua prostração, e com maus olhos! Isso doeu. Era um dos Lirthua'shoa e estava acima das maldições do Destruidor, portanto nada lhe devia doer, mas doeu.
— Não ajuda, Xau, mas, ao menos, poupa as energias do seu recipiente — interveio Oaber-Rune antes que uma discussão começasse. — Não se esqueça que o efeito da marca das trevas ainda não passou. Sente-se.
Vog-Xau obedeceu ainda que a contragosto, jogando-se também no sofá maior, na ponta mais próxima ao arco que levava ao hall, onde ficava a entrada da casa, e bem longe do Sho do Vento, acomodado na outra extremidade do comprido móvel. Entretanto, menos de um minuto depois batucava os pés no chão, reclamando:
— Ele está demorando demais! Vou até lá ver o que aconteceu.
E se ergueu, pronto a abandonar a sala.
— Vai, vai — o Edor'sho do Vento o provocou, sem perder o ar de tédio aparente. Talvez se o irritasse, ele ouvisse a voz da razão. — Se o pior tiver acontecido, só vai conseguir dar mais um par de botas ao carrasco, mas vai...
O retruque do Edor'sho da Terra, carregado de irritação, não chegou a ser proferido. Os olhos dele — orbes em que a terra marrom dividia espaço com folhas de diversas tonalidades de verde — e os dos demais se voltaram juntos em direção ao hall, atraído pelo som inconfundível da porta de entrada sendo aberta.
Alguém acabava de adentrar a moradia.
Poucos instantes depois, Yazi-Larale, o Edor'sho do Fogo, apontava no arco que ligava o hall à sala de visitas. Os olhos de brasas acessas se escondiam atrás de óculos escuros, as mãos vinham enfiadas nos bolsos dos jeans.
— E então? — O questionamento veio de Oaber-Rune, ligeiramente inclinado para a frente em sua poltrona.
— Deu certo. Eles se foram.
Dito isto, Yazi-Larale deu a volta no sofá que ficava de costas para o arco do hall e se deixou cair sobre ele, retirando os óculos e se pondo a observá-los. Um objeto que perverte a visão... Essas Crianças do Caos logo mostram que são filhas de quem são.
Enquanto o Sho do Fogo se acomodava, Gama-Tash suspirava aliviado:
— Grandioso Larhen... — Ele recostou a cabeça no encosto do sofá e fechou os olhos, realmente agradecido por não terem de lutar com as presas das trevas fincadas em seus corpos. Ainda há esperança para essa Era...
— Isso foi muito arriscado, Rune-miresa! — reclamou Vog-Xau, virando-se para o general sem deixar que as boas novas desfizessem seu mau-humor. — E se eles tiverem desconfiado?! Se pretenderem voltar quando não estivermos esperando?!
— Não creio que tenham — discordou o Sho da Água, endireitando-se em seu assento. — Do contrário, já estariam batendo em nossa porta. Mesmo sendo como é, Berat-Enira não se tolheria de atentar contra a vida de Sua Excelência se soubesse de sua localização. Relaxemos, o perigo já passou.
— Relaxar... — O Sho da Terra trincou os dentes para a visão das palmas das mãos de seu recipiente, ainda cheias de feridas impregnadas com a marca das trevas, assim como os antebraços, úmeros, tórax e abdômen dele cobertos pelo tecido da camisa folgada demais (precisava arranjar vestes novas, as que haviam naquela casa decididamente não lhe serviam. Só mais dor de cabeça...). Vagarosos e mínimos esboços de movimento era tudo que conseguia dos braços e das mãos e à custa de muito esforço e dor. Se não os tivesse usado para proteger o rosto, não estaria enxergando agora. Não se arrependia de ter priorizado a visão, mas não poderia lutar devidamente naquele estado, não poderia reparar seu erro nem mesmo poderia proteger ninguém. Se eu não tivesse perdido a cabeça ontem... Sua Excelência em risco, o infortúnio de meus irmãos... Eu causei isso, eu causei, e nem posso impedir que uma desgraça maior se abata sobre nós. Era insuportável, desesperador! (Desespero... Se ao menos pudesse manter tal praga longe de seu coração, como mantinha das feições de seu recipiente...). Não devia nem estar fora da cama, quanto mais andando por aí, só o fazia por pura teimosia, para não enlouquecer. — Não vou conseguir relaxar enquanto essa maldição persistir me impedindo de cumprir meu dever.
— Esforce-se para conseguir — Oaber ordenou, o tom suave dele atraindo a atenção de Vog-Xau aos lagos de águas escuras que eram seus olhos. — Pelo bem de Sua Excelência.
Esse argumento, felizmente, apaziguou o ânimo de Vog-Xau, e ele voltou a sentar.
— Edash e Evanih já retornaram? — quis saber Yazi-Larale, colocando os óculos de lado, incomodamente certo de que ainda poderia precisar deles num futuro não tão distante.
Foi Gama-Tash a responder, preocupado.
— Edash, sim. Mas sem boas novas. Zaku-Zaoh o atrapalhou.
— Pela demora, Evanih também não deve ter logrado êxito — disse Vog-Xau amargamente, e o Senhor dos Edoras suspirou, incapaz de não se sentir culpado por não ter dissuadido Sua Excelência de levar aquela ideia infantil a cabo. Agora, outro dos Fazrat'shoa corria o risco de ser engolido pelo vazio da morte, e suas forças já comprometidas se fragilizavam mais.
Falhar falhamos ao querer mexer com os Fragmentos antes de Sua Excelência estar devidamente desperta. Que não tenhamos também acordado gigantes adormecidos antes do tempo... Oaber-Rune engoliu em seco e murmurou mais para si do que para os servos que o observavam:
— Só espero que Evanih consiga retornar em segurança...
* * *
Apesar da recusa
Alternando entre corridinhas e passadas largas, Pamela ia avançando pela calçada externa da UERJ o mais depressa que suas pernas roliças permitiam. Já bastava estar atrasada para a peça de Marianne, não queria chegar depois do segundo ato.
Droga, Mari, por que não me disse que a peça ia ser hoje? Pam fez biquinho, já sentindo o fôlego faltar, mas mesmo assim apertando o passo. Marianne era sua melhor amiga, então claro que Pam queria assistir a estreia do trabalho dela da primeira fileira. Mas no fim das contas nem veria a peça toda, teria sorte se conseguisse um lugar decente. Era um desastre! Ela não esqueceria de me avisar que mudaram a data, mesmo que tenha acontecido de última hora. Oh, Deus. O que será que houve?
Quando ela estava quase chegando ao portão principal da universidade, chutou alguma coisa que deslizou pelo calçamento. Era um celular. Ou melhor, o que restava de um, percebeu ao se abaixar para pegá-lo. A tela tinha um rombo que parecia ter sido feito por algum objeto incandescente. Mas o estado do celular não devia ser nada se comparado ao estado do dono. Ao menos, Pamela imaginava que a mão que emergia do meio de um bando de sacos de lixo, amontoados junto de uma das pilastras que sustentavam a passarela do metrô, pertencesse ao dono dele.
Todos os pensamentos que ela tinha sobre a peça e o silêncio da amiga se esvaíram de sua mente como fumaça.
— Socorro... — murmurou ela, olhando em volta à procura de alguém a quem pudesse pedir ajuda, mas não havia ninguém à vista. O que quer que tivesse acontecido, ela era a única ali para oferecer ajuda. Então, com o coração disparado, ela se aproximou.
Havia um rapaz caído de bruços em meio ao lixo. O corpo dele estava coberto por uma longa capa branca rasgada e salpicada de sangue, o capuz jogado de lado deixava o rosto de traços orientais bastante visível. O nariz estava ensanguentado, os lábios também. O outro braço, o direito, estava esfolado e, como se não bastasse, uma poça de sangue se insinuava sob o torso dele. Ele estava inconsciente... Será que estava morto?!
Pamela levou a mão livre à boca, completamente apavorada. Mal podia acreditar no que estava acontecendo, mas, ao olhar mais uma vez em volta e não ver ninguém, se forçou a controlar seus nervos. Quem quer que o tivesse machucado não estava mais ali, tinha razão para se preocupar, mas não para ter medo. Talvez ele ainda estivesse vivo, talvez ainda desse tempo de salvá-lo se agisse depressa. Precisava agir.
Pensando nisso, Pam abriu a bolsa e sacou o celular, já teclando o 192 e colando o aparelho à orelha. Atenderam no segundo toque.
— Alô! Tem uma pessoa precisando- Ah! — Ela gritou ao ter o tornozelo agarrado. Com os olhos castanhos arregalados de surpresa e alívio, viu que o rapaz caído olhava para ela. Eram os dedos frouxos dele ao redor de seu tornozelo. — Ai, graças a Deus, você está vivo! Não se preocupe, eu vou chamar uma ambulância. Já, já você vai estar num hospital e tudo vai ficar bem.
— Nada de hospital... Nada de hospital! — Ele tentou gritar e acabou se engasgando com o próprio sangue e tossindo um bocado. Depois prosseguiu num fio de voz, soltando o tornozelo de Pamela e deixando a mão desvigorada pousar no chão ao lado do pé dela. — Se eu ficar cercado de... anomalias, Menora'orphia vai... me encontrar... Eles vão me encontrar e... vão me fazer... dormir às Portas da Morte... Nada de hospital...
Pamela achou a recusa dele de ir para um hospital uma verdadeira loucura e, ao ouvir a voz da atendente perguntando se ainda estava na linha, até pensou em ignorá-lo e pedir ajuda, porém acabou por encerrar a ligação. Podia não ter entendido metade do que ele disse, mas sobre quererem fazê-lo dormir às Portas da Morte... Alguém estava claramente querendo matá-lo e quase havia conseguido, não podia colocá-lo em risco.
Pam apertou os celulares nas mãos, o dela e o dele (que nem tinha percebido que ainda segurava), desnorteada. Seria seguro chamar a polícia? Se podiam achá-lo no hospital, talvez envolver a polícia também não fosse uma boa ideia... Notou que ele havia se mexido, aninhando o braço bom junto ao corpo, com a mão espalmando o abdômen. A poça de sangue sob ele estava maior...
— O que eu devo fazer? — indagou em voz alta, perdida. — Quem eu devo chamar?
— Sozinho... — A voz do rapaz era mínima, os pequenos olhos mal se mantinham abertos. — Só me deixe sozinho...
— Não diga besteira! Você está muito mal, vai morrer se ficar sozinho!
— Não preciso da sua... piedade, Filha do Caos... Me deixe em paz... e volte para a sua gente, volte... — Ele deixou escapar um gemido de dor e curvou um pouco o corpo para a frente, começando a falar em outro idioma. A voz não era nada, além do sopro de um sussurro. Ainda assim, Pamela ouviu cada palavra com bastante clareza e, mesmo sem saber como, teve certeza absoluta de que era uma prece. — Larhen-Edriza, Dæhir'mehara... Zadha-Rine, miresa'nehar... Aehit mih inieth... Aehit mih haath...¹
Os olhos dele reviraram, e ele parou de se mover.
Pamela perdeu o chão.
Notas finais:
1 - Larhen-Edriza, Dæhir'mehara... Zadha-Rine, miresa'nehar... Aehit mih inieth... Aehit mih haath... = Larhen-Edriza, Vossa Excelência... Zadha-Rine, meu senhor... Perdão por falhar... Perdão por partir...
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