Capítulo X - Suplício da Égide: o Cavalo da Rainha se Move
Guiado pelo egoísmo
Jungkook olhou em volta, à procura de um lugar seguro (seguro igual a deserto, no qual pudesse se esconder), e correu logo que o avistou, correu o mais rápido que pôde. Tratou de sair depressa dali, costurando por entre a multidão desesperada e fugindo da quadra esportiva pelos fundos. Teve vislumbres horripilantes pelo caminho: dedos sendo mergulhados em globos oculares, cabeças rachando contra a dureza do chão de concreto, um pescoço canibalizado... Teve uma sorte imensa pelos infectados pela praga das pragas não o terem seguido. Ele passou voado por um pátio vazio com bancos revirados, havia um portão mais adiante, mas o maldito estava fechado com um cadeado dos grandes. O Bangtan Boy continuou a correr, enveredando por um corredor à esquerda do acesso.
Foi parar em um estacionamento. Não havia nenhum daqueles infelizes de pele azeitonada por ali. Podia ter se escondido em meio aos carros, debaixo de um, porém se deteve. Algumas pessoas haviam ido atrás dele e faziam exatamente o que havia pensado. Trincou os dentes, descartando aquela ideia. Muita gente junta poderia atrair aquelas coisas, seria um erro ficar ali. Precisava de outro lugar. Outro lugar... Procurou ao redor, avistando o outro extremo do estacionamento. Passando uma cerca, havia um quiosque rodeado por alguns arbustos, tinha até raias de piscina enroladas penduradas sob ele. Olhou para trás, ninguém estava em seu encalço, então foi apressado se esconder lá.
Finalmente alcançou o quiosque, ele ficava de cara para a piscina, teve que se abaixar atrás das raias para que ninguém o percebesse e procurou pelo cantinho que melhor o ocultasse. Acabou escolhendo um dos arbustos, ele bloquearia a visão de quem estivesse no deque da piscina e as raias cuidariam de escondê-lo da vista de quem estivesse no estacionamento.
Se dobrou à sombra das folhas, entontecido. Sentia ânsia de vômito e só então se deu conta de que chorava. Como se chorar adiantasse de alguma coisa... O sal das lágrimas irrompia de seus olhos e os fazia arder, tornando ainda mais insuportável o amargor da bílis a empestear sua garganta. Teria vomitado se tivesse algo em seu estômago, mas nem isso tinha, só aquele misto de enjoo com desespero. Como Jimin pôde largá-lo ali? Esses espíritos ancestrais... Isso é tudo culpa deles! Um acesso de tosse o acometeu, então tapou a boca para reprimi-lo o máximo possível. Quieto, tinha que ficar quieto. Quando tudo acabasse, aquelas criaturas iriam embora, atrás de mais vítimas, e poderia pensar no que fazer.
— "Você sempre dá conta, não importando qual seja o desafio." — Zaku-Zaoh repetiu as palavras de Jimin, falseando a voz dele. O maldito flutuava de pernas cruzadas sobre uma cadeira que estava recostava à árvore mais próxima do quiosque. O tronco não o ocultava completamente, mas passaria batido desde que não se mexesse. — Aquela Criança devia estar devaneando, não me admira que tenha sido escolhida por Hasa...
— Você enlouqueceu se acha que eu vou mesmo enfrentar aquelas coisas! — Jungkook retrucou com a voz afetada pelo choro e pela tosse, segurava-se para não gritar.
— Não acho — disse Zaku, fitando as unhas —, apenas calhei de ser arrastado para cá com você. Além disso, pouco se me dá a sua covardia. Não terá de enfrentar nada, pois não permitirei que o faça. Auxiliar Sua Excelência Akisha é dever dos Ak'hagar, meu dever, não seu. Você é apenas um instrumento para a manifestação do meu poder. Agora de pé, que não tenho tempo para sua crise autocomplacente.
A atitude do Hagar fez com que o coração de Jeon Jungkook, até então disparado, se acalmasse. O pavor que o oprimia se converteu em pessimismo extremo e o ultrapassou, convertendo-se em indiferença. Uma pedra, não seria estranho dizer que isso foi o que seu coração se tornou. As lágrimas a molharem seu rosto se fizeram invisíveis sob a frieza de seu olhar. Disse:
— Como você fez questão de ressaltar: é seu dever, não meu. Fique à vontade para cumpri-lo sem mim.
— Não teste a minha paciência, moleque-
— Ou o quê? Vai me matar? — Um sorriso de escárnio curvou os lábios do rapaz. — Se não estiver disposto a ignorar as ordens do seu líder para fazer o trabalho sujo com as próprias mãos, essa merda de ameaça não vale de nada nessa situação. Fique aqui ou vá atrás da sua divindade, não importa. Estou me lixando pra vocês dois e para seus problemas.
Todos os traços de desdém, e até mesmo de raiva, desapareceram da face do Hagar do Orgulho, deixando restar apenas perplexidade. Ele não conseguiu dizer nada por um momento, só encarando a expressão rancorosa do insolente maknae da BTS, expressão esta que não esmorecia.
— Você é muito egoísta — disse Zaku por fim.
— Como se você fosse um poço de altruísmo — Jungkook abriu um sorriso venenoso —, não me admira que tenha me escolhido... A coisa que se apossou de Jimin-ah disse que seria culpa nossa se Akisha morresse, levando para a cova a única chance dos infectados pela praga se curarem, mas na verdade a culpa é só sua. Devia ter escolhido alguém mais submisso.
— E então é isso? Vai ficar encolhido aí como um covarde patético?
— Exato. Pode até ser uma escolha covarde, mas é a minha escolha. — Os olhos de água de Zaku transbordaram, as gotas escorrendo como lágrimas pelas bochechas falsificadas. — Lágrimas? É sério? — Jungkook zombou, apreciava a expressão desacreditada, quase vulnerável do Hagar. — De todos os artifícios que você poderia usar para tentar me convencer a ajudá-lo, esse é o mais infantil e ridículo. Nada digno do "Senhor da Mentira".
— Os Lirthua'shoa só costumam dizer parvoíces, mas, no que concerne à sua pessoa, o juízo deles está correto. Você não passa de um Lahgur'sedoni, uma anomalia amaldiçoada que nunca deveria ter existido.
Vergonha, esse era o real significado da expressão estampada na face usada por Zaku-Zaoh, na sua face. Mas ela logo se desfez. O semblante dele ficou estéril como uma folha de papel em branco e em seguida as próprias feições se tornaram irreconhecíveis, dissolvendo-se em ondas. Todo o corpo dele se revolvia em ondas. Logo, Jungkook não encarava uma cópia sua, apenas uma silhueta humanoide moldada em água, sem rosto, de corpo e membros alongados demais para pertencerem a uma pessoa. Zaku-Zaoh, com uma voz andrógena que era só sensação, arrematou:
— Não espero mais nada de você.
O Senhor da Mentira lhe virou as costas e rumou em direção aos Filhos de Larhen.
* * *
Guiado pelo orgulho
Zaku-Zaoh voltou as costas à intragável e desonrada Criança, a quem as infelizes e maldosas peripécias do destino haviam lhe dado o desprazer conhecer, e avançou depressa, atravessando a grade do deque e pairando sobre o passeio que ladeava o lado esquerdo da piscina.
Ter de atuar diretamente no plano físico com a Prisão de Carne ativa... Um ultraje, e tudo por causa de uma Criança que teimava em não se recolher a própria ignorância e assumir o papel que lhe cabia. Pela graça de Ak'Mainor, foi sobre mim que essa desgraça se abateu. Qualquer um dos outros não conseguiria lidar com esse assunto sem um hospedeiro.
O portão do deque que dava para a quadra de esportes estava escancarado, e os Edoras'sedoni irrompiam por ele, perseguindo os Filhos de Menora que corriam para lá na vã tentativa de escaparem dos agressores. Se nada fosse feito, não demorariam a serem pegos e forçados a integrarem as hordas do Restaurador da Ordem. O inútil egoísta logo seria encontrado e teria o mesmo destino desgraçado.
Só a Alma de Ak'Mainor sabia o quanto Eoir'miresa gostaria de proporcionar tal encontro, a alienação pura e completa era o que aquele insolente merecia por tê-lo rejeitado, porém essa não era uma opção. Hasa-Ithor havia dito que Akisha estava ali, naquele lugar maldito, e, a julgar pela situação atípica — mesmo em grande número, os Espectros da Dádiva não obedeciam ao instinto de alargar o raio de ação de Edoras, permanecendo todos nas dependências do colégio —, ele estava com a razão.
Akisha estava ali e ainda dormia, sem defensa.
Os lacaios de Larhen-Edriza certamente estavam à espreita, só esperando avistar uma Criança imune às garras corrompidas para atacar. Ainda que frustrasse os planos deles, uma vez que conhecessem o rosto do Fragmento de Ak'Mainor, haveria o risco de Aevarast-Evanih retornar no tempo para matá-lo antes que Hasa-Ithor descobrisse sua localização.
A despeito de qualquer coisa, Zaku não podia permitir que nem mais uma Criança tivesse contato com as marionetes movidas pela praga. O Hagar reprimiu um muxoxo. Berat se aborreceria com ele, mas não tinha outro modo. As vidas dos que haviam sido tornados Filhos de Larhen teriam de terminar ali, tolhidas da salvação.
Sintam-se honrados de morrer por Akisha, pensou Eoir'miresa e fez fatos d'água emergirem da piscina em velocidade ultrassônica, um para cada Edoras'sedoni que se achava no deque, atirando-os contra eles. Àquela velocidade, a água se equiparava à mais afiada das lâminas, e a mira do Hagar era certeira.
No entanto, o ar se adensou, formando uma parede de nuvens bem na trajetória dos golpes. Eles deveriam atravessá-la sem dificuldade, mas não conseguiram, perdendo velocidade e se espalhando como se tivessem se chocado com uma parede sólida. Fora molhar os Edoras'sedoni, seus ataques não surtiram qualquer efeito.
Ao regar inutilmente os corpos dos Espectros da Dádiva, o corpo de Zaku-Zaoh despencou numa chuva de elixir da morte que começou a corroer o piso ao primeiro contato. Ele voltou a se erguer de um montante de água advindo da piscina e, antes que retomasse a ofensiva, o vento assobiou palavras aos seus ouvidos:
Não faça mal às Crianças, Zaku. Envie-as ao coração da Terra das Lágrimas. Berat, Asha e eu cuidaremos delas.
Era a voz de Kim Namjoon. A interferência em suas ações vinha de En-Ephir, não dos Lirthua'shoa. Não havia reconhecido os ventos de seu comandante. Que vexame... Eoir'miresa se recriminou e o respondeu de imediato, vendo as nuvens — então, quase sólidas — barrarem momentaneamente o avanço dos Filhos de Larhen; nuvens rodopiavam acima do deque, tapando a visão do que acontecia ali aos olhos alheios:
— Farei isso — e acrescentou a contragosto —, mas necessitarei de um espelho d'água para servir de ponto de chegada para elas, não tenho condições de criar um no momento.
Providenciarei isso. En se calou por um breve momento — felizmente, o comandante dos Hagar de Akisha mantinha o dever acima da curiosidade, porque Zaku não queria ter de relatar a razão de sua limitação, não ainda, nunca, se possível (quem lhe dera...) —, nada além do tempo de cinco piscares de olhos, e consentiu, Pode mandá-las.
As nuvens de Arviehe'prabath se dispersaram, então Zaku aproveitou a água de sua ação anterior, a molhar o chão sob os pés dos Edoras'sedoni, para arrebatá-los. Foram todos tragados, só deixando restarem no deque as Crianças de Ak'Mainor a encararem o piso entre perplexas e apavoradas.
O corpo do Hagar voltou a se desmanchar em gotas prateadas feito mercúrio, e ele fez um novo que não tardou a acabar do mesmo jeito. Mais Edoras'sedoni invadiam o deque, visando os Filhos de Menora. Muitos Edoras'sedoni seguiam do outro lado da grade, cercando-os e caindo sobre eles. Punhados de água saltaram da piscina.
A cada acerto, a cada leva de seres abraçados pela praga transportada dali, o corpo que o Hagar do Orgulho usava se desfazia em uma cascata prateada, e ele tinha de moldar outro para tomar seu lugar e de novo e de novo e outra vez. O chão do deque fumegava e derretia sob as gotas de prata, abrindo-se em crateras. O nível da piscina descia mais e mais, mesmo assim o número de Filhos de Larhen não parecia diminuir.
Esænsh, Zaku praguejou e ergueu a mão para despachar uma nova leva de Crianças Caídas, contudo não chegou a fazer nada. Seu corpo se dobrou para a frente, e um jorro metálico irrompeu de sua boca. Parte de suas entranhas líquidas encontrou o mármore num beijo corrosivo e precoce. Sua visão estava estranha, como se visse tudo muito mais de longe do que de fato via. Uma pressão puxava e empurrava seu corpo — não, não seu corpo, seu espírito —, ficando mais insistente a cada momento. Eram as garras da punição se fechando ao seu redor, banindo-o das dimensões dos vivos por estar agindo fora dos limites da Prisão de Carne. Essa era a Lei, não importava que a descumprisse pelo bem de Akisha, não importava que não quisesse descumpri-la, não importava que não tivesse escolha. Fazr... Qeredit fazr, igakah Roheya¹!
[NOTA: 1 - Maldita... Maldita seja, Criança blasfema!]
* * *
Guiado pela honra
"Não posso criar vida, e só corpos vivos são capazes de suportar a manifestação de meu poder", Jungkook se recordou do que o embuste havia lhe dito mais cedo. "Quando insisto, a água deixa de ser água e se torna o elixir da morte". Então, essa substância também o afeta. Apesar de pretender fazer uma consideração desinteressada, o coração do rapaz principiava a bater rápido dentro do peito uma vez mais ao ver o estado claramente debilitado do Ak'hagar. A indiferença que o vinha tomando, fruto de seu orgulho amotinado contra o autoritarismo de Zaku-Zaoh, recuava frente a reacendida certeza de sua morte. Ele tem trocentos anos, duvido que não soubesse disso. Se mesmo assim foi até lá é porque não se importa.
Mesmo que dali de seu precário refúgio só pudesse observar o que acontecia de modo enviesado, os gritos que as pessoas deram deixaram claro que os Edoras'sedoni invadiam o deque novamente. E ele conseguiu ver quando aquela pessoa, envolta numa longa capa branca com um capuz a cobrir boa parte do rosto, foi flutuando do telhado da maior construção do lugar até bem perto do espírito da água, que continuava envergado com a face voltada para o chão esburacado.
— O arrogante Zaku-Zaoh agindo sem um recipiente. — A voz do recém-chegado soou estranhamente familiar ao Bangtan Boy, mas a sensação logo passou, substituída pelo berro que o Ak'hagar deu, fazendo com que o idol se arrepiasse até as raízes dos cabelos. Uma lança de gelo partiu do centro da piscina, pronta a varar o peito do encapuzado, mas foi desviada com um simples gesto de mão dele, espatifando-se contra a lateral do prédio à direita do complexo esportivo. O corpo de Zaku se desfez, outro surgiu das águas. Mais lanças, mais gestos, um novo corpo, uma nova prostração, mais um jorro de prata-morte. — Me perguntava se era algum tipo de armadilha ardilosa, mas vejo que é apenas um ato de desespero.
Mais um gesto, e o Hagar do Orgulho foi jogado longe antes que pudesse tentar um novo ataque. Outro gesto, e pequenos objetos voaram de dentro da piscina. Eram os tampões do sistema de escoamento. A água começou a escorrer pelos ralos, deixando mais e mais dos azulejos brancos à mostra. Sem mais ataques, sem mais corpos sobressalentes. Outro, e o corpo de Zaku — então mais elixir que água — foi içado das arquibancadas de pedra do outro extremo do complexo esportivo onde tinha ido tombar, sendo mantido no alto como se retido por mãos invisíveis. Simples gestos, nada mais que simples gestos.
Um dos Lirthua'shoa... Aquilo é um dos Lirthua'shoa, deduziu Jungkook e deixou de olhar. O embuste já era, e eu também se me virem. Os Edoras'sedoni se aproximavam mais de seu esconderijo a cada instante, e o pavor voltava a se apossar de seu ser, fazendo suas pernas tremerem. Não queria ver o que acontecia a Zaku. Ele era só um espírito e duvidava que aquele corpo de água experimentasse alguma dor, mesmo assim não queria ver, não queria ver mais nada até tudo passar!
A voz do encapuzado voltou a invadir seus ouvidos.
— Não foi para isso que vim até aqui, mas por que não? Sua vida já está por um fio. Sabia que agir sem um recipiente seria suicídio e mesmo assim veio ao socorro do Fragmento, tão desesperado para protegê-lo... — Suicídio? Os lábios de Jeon tremelicaram, um soco no estômago teria doído menos do que tais palavras. — Sua lealdade é louvável, pena que a tenha dedicado ao mestre errado. Mas se alegre, eoirᴂse — "Mentiroso". O maknae da BTS escutou estalidos, som de estática, e reabriu os olhos a tempo de ver um poste passar voando acima de sua cabeça. Outros o precediam com seus fios desencapados liberando energia e suas fagulhas chispando perigosamente perto dos que ainda se viam livres de Edoras. — Em breve darei cabo de Akisha, e vocês dividirão o túmulo. Ninguém lhe furtará essa glória. Ninguém.
Zaku-Zaoh gritou, um som gorgolejante e nauseabundo, afogado pelos inconfundíveis estalos e explosões advindos de uma descarga elétrica. Estava sendo eletrocutado. A fraqueza da água é a eletricidade... Jungkook lembrou e cobriu os ouvidos com as mãos, encolhendo-se. Não havia mais água na piscina, as nuvens haviam se dissipado e o vento já não soprava mais. Ele vai morrer, ele vai morrer, e eu também se continuar aqui. Mas ir para onde? Se tentasse correr agora com certeza seria visto, se tentasse se esgueirar para longe...
Suas tentativas de pensar numa rota de fuga foram frustradas pela visão das pessoas sendo perseguidas pela multidão cada vez maior de Edoras'sedoni — apesar dos esforços de Zaku-Zaoh, o número deles crescia deliberadamente. Eles estavam perto demais agora, a menos de cinco metros. Se eles avançassem um pouco mais o veriam, e estaria condenado, tão condenado quanto aquele grupo amontoado próximo aos banheiros do deque, cercados pelos infectados pela praga. A cada fração de segundos, mais um era enredado por Edoras, um a um, o grupo era consumido.
Precisava se mexer, precisava se afastar dali.
O Hagar de Akisha ainda estava no ar, flutuando diante do deque, inerte e silencioso, envolto em cabos eletrizados. Kookie temia que ele despencasse a qualquer momento em uma derradeira cachoeira prateada.
O servo de Larhen assistia a tudo distante, pairando metros acima do centro da quadra esportiva, provavelmente esperando pelo momento em que Zaku e as últimas pessoas que restavam livres ali sucumbiriam. Com um poder daqueles, na certa ele havia fechado todas saídas do lugar, isso explicaria o porquê do número de pessoas não diminuir. Ninguém havia conseguido fugir, ninguém. Os gritos que enchiam o ar há alguns minutos começavam a dar vazão a um silêncio mórbido.
Isso... Isso é culpa minha? Jungkook se perguntou, estrangulando um gemido. Mas eu só- Eu só quero continuar vivendo como eu mesmo! Como isso pode ser errado?! Seu instinto de autopreservação lhe gritava para se levantar e correr, para dar um jeito de fugir, mas seu corpo não correspondia, continuando abaixado onde estava. Sua mente estava uma bagunça, sua consciência pesava. Cada morte em vida que tinha visto passou diante de seus olhos, cada uma delas se somando ao grande e pesado fardo que havia se instalado sobre seus ombros. Culpa, sentia culpa, uma culpa esmagadora.
Era a verdade nua e crua esfregada em sua cara.
Por que eu? Por que tenho que passar por isso? Por que essas pessoas têm que passar por isso? De tanta gente, por que tivemos que ser nós os escolhidos? Embora, eu quero ir embora daqui. Qualquer lugar serve, qualquer outro lugar além daqui, bem longe do alcance dos Ak'hagar e dos malditos inimigos deles. Desejava Jungkook à beira de um colapso nervoso, porém não tinha para onde correr, não tinha como escapar, seu destino estava tão selado quanto o daquelas pessoas.
Filhos de Larhen, em breve, muito em breve, seriam todos Filhos de Larhen.
Jungkook sabia que era o único que podia fazer algo para reverter aquela situação.
"Então é isso? Vai ficar encolhido aí como um covarde patético?" A voz do quase morto Hagar do Orgulho voltou a seus pensamentos. Eu estou com medo... Era natural que estivesse, todos ali estavam apavorados, e era humano como eles, mas, diferente dos demais, ele podia fazer alguma coisa para salvá-los daquele inferno. Podia tentar, ao menos.
Mas eu quero continuar vivendo como eu mesmo. Não é justo eu ter que abrir mão do controle da minha vida para salvar gente que eu nem conheço, não é justo! Uma vida de escravidão, é isso que eu vou ter se aceitar Zaku. Se for para viver assim, prefiro morrer de uma vez! É melhor que todos morramos de uma vez!
Seus olhos se arregalaram, e um riso de puro nervosismo galgou sua garganta, teve que se esforçar para reprimi-lo. Esse alguém de mentalidade tão egoísta, covarde e desonrada sou eu mesmo? Eu não sou assim. Ao menos, eu não era... Havia passado a ser no instante em que se recusou a ajudar Zaku-Zaoh, mesmo sabendo que a morte de Akisha significaria a perda de muitas vidas humanas. O medo acabou revelando meu pior lado, um lado torpe e nada inteligente...
Fato incontestável, pois a morte em vida não era A Morte com eme maiúsculo, mas só outra forma de escravidão. Ser pego por ela, ceder aos caprichos de Zaku... Era tudo a mesma coisa. Só havia uma diferença, só uma. Se o aceitasse, poderia salvar aquelas pessoas. Claro que poderia encontrar liberdade na morte se achasse um jeito de acabar com a própria vida antes que os Edoras'sedoni o apanhassem, mas isso seria o mesmo que se salvar à custa do sacrifício de todos. Mais do que covardia, seria assassinato. As mãos, cada mão que os lançasse à praga lhe pertenceria. Elas já me pertencem, as pessoas que foram atacadas depois que cheguei aqui só sucumbiram porque eu não quis ajudá-las. É minha culpa, eu os matei. Se houvesse um inferno, este seria o destino certo para alguém com mãos tão manchadas.
Imaginar o que seus hyungs iriam pensar se cedesse a tal impulso covarde em vez de tentar consertar as coisas, no entanto, o assustou muito mais do que a ideia de ir para o inferno.
Seus hyungs. Todos dispostos a lutar pelo mundo, a colocar as vidas em risco pelo bem das pessoas. Eles que eram sua segunda família, a família com a qual de fato convivia e que havia lhe ensinado a não levar uma vida embasada no egoísmo. Eles que lhe eram tão preciosos... teriam vergonha se o vissem agora, ali, cogitando tirar a própria vida e desgraçar muitas outras no processo.
Manchava a honra deles ao se manchar com aquele sangue.
"Vai ficar encolhido aí como um covarde patético?" As palavras de Zaku voltaram a martelar sua mente. Não, não vou. Eles me ensinaram a ser melhor do que isso, tenho que ser melhor do que isso. Jungkook se levantou, saindo da sombra do arbusto que o abrigava, limpou a garganta e disse, enxugando as lágrimas:
— Eu te aceito, Zaku-Zaoh.
Seus temores se concretizaram a uma só vez.
Sua voz atraiu a atenção dos Edoras'sedoni que estavam no deque e parte deles veio correndo em sua direção, e o corpo moribundo do Ak'hagar explodiu, lançando elixir mortífero para todos os lados (milagrosamente, o único atingido em cheio seria o Lirth'sho, entretanto ele conseguiu se desviar).
É tarde, está tudo acabado, foi o que Jeon pensou, mais frustrado do que lamentoso, logo antes de ser abalroado por cima e cair sobre os joelhos. Parecia que uma cachoeira recém-liberta de um sono invernal se derramava sobre seu corpo, toneladas de água e gelo o imprensando contra o chão, invadindo sua boca, seu nariz, seus olhos, seus pulmões, inundando seu corpo e congelando sua alma. Espalmou as mãos no piso, aquilo era agoniante e doloroso.
Não mesmo, tudo acabou de começar, a água espraiou tais palavras por sua mente.
Não, aquilo não era água, era poder, mescla de orgulho exacerbado e ira desenfreada. Aquilo era Zaku-Zaoh e estava em fúria, colérico, a gana destrutiva de sua raiva ganhava as alturas e era toda daqueles que haviam ousado humilhá-lo. Era toda daquele Lirth'sho, Makir-Edash. Era toda de Jeon Jungkook, a maldita Criança egoísta que o havia rejeitado por tanto tempo e que agora tencionava usá-lo para salvar a própria pele. Mas os faria pagar caro por brincarem com ele, ah, se faria. É só o começo, insolente.
Jungkook quis gritar que não era nada disso, quis apenas gritar, mas nenhum som saiu de sua boca. Seus motivos não interessavam a Zaku, a ira dele era grande demais para que se importasse com algo que não sua afronta, era tão avassaladora que estava se apoderando de sua mente, tornando-se sua. Engasgou, doía tanto. Seu corpo não respondia, sua alma estava congelando, sua racionalidade se desfazia em bolhas.
A cascata de poder cessou abruptamente, e a dor também. Jeon não sentia nada, além da energia vibrando por cada poro de sua pele e da chama fria e iracunda a queimar em seu interior e a nublar seus pensamentos. Zaku-Zaoh tinha um único objetivo no momento, todo resto era um estorvo.
Os Edoras'sedoni os alcançaram.
O Hagar do Orgulho abriu os braços, e uma grande onda explodiu dentre eles, atingindo os Filhos de Larhen sem dó nem piedade e os transportando instantaneamente para a Terra das Lágrimas. Não eram mais problema seu. Rugindo, a onda se dividiu em duas e ambas avançaram pelos acessos do deque, varrendo quase tudo pelo caminho e despachando até os comandantes dos Ak'hagar — passavam ao redor das poucas Crianças de Ak'Mainor que seguiam sãs, como se elas fossem pedras fincadas no leito de um rio caudaloso. Venceram a cerca e, sem perder força, perseguiram os infectados que se espalhavam pelas demais dependências da instituição, atropelando-os e os absorvendo sob sua espuma.
Eoir'miresa se pôs de pé e olhou por cima do ombro, seus olhos d'água revoltosos se cravando na figura encapuzada. Não dava para ver o rosto dele por causa do capuz, porém as moléculas do Fazr'sho da Levitação gritavam de receio, algo bastante atípico para um dos subalternos de Zadha-Rine. Isso, tenha medo. Vou destroçá-lo.
Zaku-Zaoh não saiu de onde estava, mesmo atacando dali poderia reduzir a pedaços o hospedeiro de Makir. No entanto, o Fazr'sho agiu primeiro.
Quebrou parte das arquibancadas que ficavam à esquerda do deque, moldando com a força da mente os blocos de concreto até terem a forma de estacas afiadas, e as lançou. Zaku criou um paredão d'água, lâminas supersônicas se projetaram dele, fazendo as estacas de Makir parecerem de isopor. Após vetar o ataque do Sho, o Ak'hagar mudou a trajetória das lâminas, dessa vez visando o inimigo; enfim o despedaçaria.
O Fazr'sho não ousou ficar mais um segundo ali, erguendo parte do chão da piscina e do deque, o choque do cimento e da água se desfez numa névoa poeirenta, o súbito momento em que ela se manteve bastou para Makir ir embora.
Zaku gritou indignadíssimo.
Você deixou ele fugir! Reclamou Jeon Jungkook histérico.
Cale-se, criatura parva. Sua opinião não conta em nada aqui, retrucou o Hagar, tentando conter o intenso turbilhão de sentimentos da Criança insolente — seus Escudos a haviam influenciado mais do que o necessário —, contudo não pôde refrear a sucessão de gestos feios que ela fez para o céu, na direção da provável rota de fuga do Sho da Levitação. Depois eu pego aquele desgraçado...
Se tivesse me deixado conduzir, não teríamos que deixar nada para depois.
Se enxergue, Criancinha estorvante, você nem saiu das fraldas ainda.
Se não fosse por essa Criancinha estorvante, você estaria morto agora.
Só porque você ficou choramingando como um covarde em vez de aceitar o quinhão que o destino lhe reservou de uma vez!
Se você tivesse se esforçado para ser algo, além de insuportável desde o primeiro momento em que nos falamos, talvez eu não tivesse resistido tanto...
Ora- Zaku se deteve, mordendo propositalmente a língua e fazendo a coisinha irritante gemer de dor. Por mais que ainda quisesse dizer umas poucas e boas para aquela Criança atrevida — por Ak'Mainor, era um sem-número de sentimentos! Não conseguia dominá-los, não conseguia dominá-la! Como aquilo era possível?! E, para completar a desgraça, ela insistia em não reconhecer a própria condição inferior! Era um descabimento! —, não podia se dar ao desfrute de continuar alimentando um bate-boca inútil com ela quando o Fragmento de Ak'Mainor estava perdido em meio àquele bando de Crianças confusas, podendo estar até mesmo ferido.
Há! Piscou os olhos com força, trincando os dentes e se forçou a engolir sua irritação, olhando ao redor (teria tempo para castigar o insolente pelo atrevimento depois). As Crianças de Ak'Mainor que haviam sobrevivido a Edoras ou se achavam desacordadas ou andavam a esmo pelos arredores, amparando umas às outras ou lamentando, algumas corriam ainda fugindo da ameaça da qual Zaku-Zaoh já as havia livrado. Nenhuma delas era o Fragmento. Esses novos Filhos de Menora são uma fonte de estresse móvel, suspirou e rumou para fora do deque.
Como sabe que não era nenhum deles? Perguntou Jungkook em tom jocoso. Estava decidido a infernizar o parasita que agora vivia em seu corpo. Aquele ahjussi barbudo me pareceu o tipo de cara que come Lirthua'shoa no café...
Digníssimo Ak'Mainor, ajude-me nesse momento de infortúnio.
Ou quem sabe aquele ahjussi gorducho. Ele tinha uma presença toda divinal...
Você quer morrer?
Por quê? Está afim de se suicidar? Ah, talvez aquela ahjumma nariguda ali!
Quem é você para falar do nariz de alguém?
Tem quem goste, resmungou o rapaz, momentaneamente encabulado.
Gente desiquilibrada, de certo... Ah, até que enfim!
O quê?! Então, é mesmo aquela ahjumma?!
Assim que Sua Excelência acordar, vou pedir que ela tire seu conhecimento linguístico. Nunca mais vai dizer nada, estorvo. Atravessaram a pista de atletismo e subiram as arquibancadas, acessando o grande pátio coberto que ficava sob a maior construção do lugar antes do Hagar voltar a dizer algo. Ora, silêncio. Que surpresa...
Mais alguns passos — passavam em frente às portas do ginásio, dirigindo-se a um pequeno acesso que levava a parte de trás do colégio — e o Bangtan Boy indagou:
O que você está fazendo no grupo dos mocinhos mesmo?
Essa ideia fechada de Bem e Mal que seu povo possui não passa de outra ilusão, Criança tola. Eu sou um fiel servo de Ak'Mainor-Menora, por isso sou um Ak'hagar. Ponto.
Jungkook pensou em dizer que "Ak'Mainor devia ter sido alguém de coração grande para aceitar até mesmo psicopatas como servos só por lhe serem fiéis", mas engoliu a alfinetada ao ver a cena que se desenrolava a sua frente.
Diante do grande portão azul-escuro (as saídas estavam mesmo fechadas, como havia imaginado) que tomava boa parte da parede para a qual o acesso em que eles se encontravam era voltado, haviam quatro pessoas, todas meninas: uma deitada e três de pé. A que estava no chão tinha os braços ao redor da cabeça e se dobrava, protegendo-se o máximo que podia das pancadas que as outras lhe davam. Não tinha mais ninguém por ali, deviam ter sido todos banidos por terem se transformado em Edoras'sedoni.
Por que essas três ainda estão aqui? Perguntou Jungkook entre aborrecido e preocupado, disparando pelo acesso. Zaku-Zaoh não o respondeu, não sabia o que responder, e lançou um punhado de água que passou pelas meninas e foi bater contra a chapa do portão, espalhando-se no ar rente a ele como uma poça flutuante em vez de cair, molhando o chão. Poderia tê-las acertado diretamente, mas receou mandar Sua Excelência para a Terra das Lágrimas por acidente.
Trombaram com a maior das Filhas de Larhen, jogando de cara na poça flutuante. As outras duas tentaram acertá-los, mas foram tragadas pelo espelho d'água, que se moveu contra elas, antes que pudessem lhes encostar um dedo. Se abaixaram ao lado da hospedeira de Akisha — o Hagar do Orgulho sabia que era ela por causa do reforço que o espírito de Sua Excelência conferia àquele corpo —, e Zaku chamou a atenção dela, tocando-a no ombro de leve para não a machucar mais:
— Dæhir'mehara?
A resposta de "Vossa Excelência" foi encher a mão na cara deles.
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