Capítulo VII - Ante o Inimigo
A crueza perante mim
Para seu amigo, isso foi... muito doloroso de se ouvir, Hoseok, a voz de Berat-Enira ecoou na mente de J-Hope.
Eu sei, mas Suga é teimoso demais. O rapper parou de reprimir os sentimentos que se batiam entre si por uma chance de riscar traços em suas feições, e a tristeza e o medo levaram a prata e o ouro. Não iria se eu não dissesse isso. Vou me redimir com ele depois, pago a prenda que for... E mudou de assunto antes que cedesse a vontade de ir atrás de Suga. Mas, vem cá, esse cara que tá vindo aí é mesmo perigoso?
Hagar'miresa hesitou antes de responder.
Ontem lidemos com Vog-Xau, o mais resistente e feroz dos Lirthua'shoa, e ele quase arrancou seus braços antes de se valer de uma artimanha que quase nos matou. Zadha é duas vezes mais poderoso do que ele e sete vezes mais esperto.
Mamã-
Por favor, preste atenção ao que digo, Hoseok. Berat nem deixou que concluísse o pensamento apavorado. Seus sentimentos superam e muito os meus em número, e, por causa deles, você pode acabar tomando o comando do seu corpo de mim em alguns momentos. Então, não se esqueça: nunca deve tirar os dois pés do chão enquanto estivermos lidando com o Senhor dos Fazrat. Hobi sentiu calafrios horríveis, a espinha gelada. Ele chegou.
Mal o Hagar acabou de falar, algo apareceu no horizonte. No princípio era um mísero pontinho, mas foi crescendo e crescendo à medida que se aproximava bem depressa. O pontinho agora era um homem, pairando no ar a sua frente. Alto, de traços orientais e rosto anguloso, os cabelos pretos meio ondulados. Usava um terno slim de corte italiano e um sobretudo longo, ambos inteiramente negros. Além de estar voando — quem dera esse fosse o maior problema —, havia uma coisa esquisita. O ar se contraia ao redor dele, mas não parecia domínio sobre o vento. Era mais do que um desafio à lei da gravidade, a impressão que tinha era de que a própria gravidade se curvava à vontade dele.
Quase tudo se curva à vontade dele. Ele é o Sho da Atração.
Tenho que ficar calmo, ficar calmo! Seu coração já acelerava, a mente transbordava com milhares de pensamentos, a pessoa a sua frente lhe parecia estranhamente familiar, mas por que será...? Isso não importa, só fique calmo, Hoseok.
— Berat-Enira... Sozinho? Ouvi dizer que estava debilitado, porém, pelo que vejo, esses novos Filhos do Caos correspondem bem às habilidades da Profanação de Menora. — O senhor dos Fazrat falava na língua primeva, a língua que era mais sensação do que sonoridade, e J-Hope compreendeu a tudo. Era como se sempre tivesse sabido falá-la, assim como o coreano. — Bom... Fará desse encontro algo ainda mais interessante.
O Sho ergueu o braço para atacar.
— Espera, espera! — J-Hope fez o pedido e o reforçou com um gesto de mãos. O Sho realmente parou com uma cara de estranhamento, beirando o choque. O que está fazendo, Hoseok? Até Berat soava chocado. Não sei, não sei de nada, só que eu não quero brigar, você não quer brigar! Logo, não custa nada buscar outra maneira. — O que acha da gente tentar sair um pouco do desperta-briga-sela, desperta-briga-sela? Por que é isso que sempre acontece e sempre acaba do mesmo jeito. A gente podia... Sei lá... conversar! Conversar e... e tentar chegar num consenso que fosse interessante para todo mundo, que tal? — Sua sugestão foi correspondida com uma esfera que era feita de nada, só deu para percebê-la porque o ar tremulava a sua passagem. Hobi saiu bem a tempo da reta, uma cratera foi aberta no teto do hotel. — Ah! Bastava ter dito não!
Mais ataques vieram, J-Hope só corria que nem uma barata tonta, protegendo a cabeça. Zadha disse por cima do barulho:
— Hilário, Berat! Deixando um recipiente insignificante falar por você! Isso é a sua cara! Espero que esteja preparado para morrer, anomalia! Não vai demorar a acontecer, irei me certificar disso por ter se atrevido a me dirigir a palavra!
Berat parou de correr e deu uma pisada com força no chão. O concreto se deformou sob a planta de seu pé, a rigidez dele se desfraldando em ondas que se propagaram até os limites do terraço, retornando logo em seguida. Os estragos feitos por Zadha-Rine desapareceram sem deixar vestígios.
Então, quadrados de rocha cinzenta brotaram a partir do chão e subiram, subiram até formarem um círculo de pilares ao seu redor. Sem cessar o ataque, o Sho da Atração visou as brechas entre os pilares, suas esferas de força nem teriam raspado as superfícies rochosas, se elas não tivessem se movido, algumas se abrindo como as pétalas de uma flor e barrando as trajetórias das investidas. Os demais pilares se elevaram ainda mais aos céus, deles brotando ramificações menores — como os galhos de uma árvore —, e dessas brotou vida: heras e gavinhas, folhas e flores, longas lianas que avançaram junto aos ramos de pedra por sobre o Senhor dos Fazrat, obrigando-o a se mover.
Zadha-Rine mudou novamente seu padrão de ataque, lançando imensos arcos de força contra os pilares e contra os andares inferiores do prédio enquanto evitava os chicotes verdes e os galhos de pedra. Se derrubasse o edifício, o contato de Berat com a terra seria interrompido, e ele cairia em suas mãos.
Ak'houan-a-rae bateu as mãos e se abaixou, dando com as palmas abertas no chão de concreto. Uma grossa laje de rocha se materializou sobre o terraço, expandindo-se para além dele, até que todo o complexo estivesse sob a sua sombra, e quatro paredões de igual espessura se originaram de suas extremidades, descendo pelas laterais do hotel até chegarem ao nível da rua e encerrando a ele e a todos em seu interior. Camadas de heras se descortinaram em ambas as faces das rochas, com flores de papoulas saltando de seus caules, viçosas e carregadas de aroma e pólen de potencializado poder sedativo. Os paredões de rocha seguraram as repetidas ofensivas de Rine, e em menos de dez segundos, todos que estavam no MGM Grand Las Vegas e em seus arredores adormeceram sob o nevoeiro do sono.
O número de lianas e ramos de rocha a varar o céu triplicou, e o Fazr'sho da Atração teve de passar a rechaçá-los. Sua mão esquerda se fechou em punho junto ao seu peito e se abriu ao ser balançada na direção do terraço. Um projétil disforme foi atirado contra um dos pilares, o impacto causou mais danos a ele do que à rocha, no entanto seu intento havia se cumprido: J-Hope o olhava como se fosse a sólida amostra de um pesadelo que ganhava a realidade. Vermelho, era muito vermelho, envolto em si mesmo. A lembrança de um pezinho com sapatinho de crochê, braços ao redor, um olho muito aberto, mechas do que deviam ter sido longos cabelos castanhos encaracolados, meio rosto...
Estava hiperventilando, em seu grito quase não houve voz.
Hagar'miresa não se surpreendeu com aquilo, sabia do que Zadha era capaz, entretanto isso não fez com que doesse menos. A dor de Jung Hoseok também era sua, além da própria dor da sua impotência.
— Não se lamente, Berat. É apenas um! Tem muito mais de onde veio esse! Um oceano de anomalias fora do seu controle!
Mais um berro quase mudo galgou a garganta de Hobi.
Uma floresta de chicotes e espinhos nasceu no céu, e Fazrat'miresa girou sobre o próprio eixo, rápido, muito rápido, produzindo chamas e criando um campo de repulsão. Uma chuva de pedras flamejantes despencou, forçada a despencar para regar os Filhos adormecidos do Caos. As lianas se atiraram na direção da dura chuva, longos espinhos e finas gavinhas, muitos espinhos e muitas gavinhas partiram delas, perfurando as pedras e injetando água nelas para refrear as labaredas que as envolviam, atando-se a elas, intricando-se umas às outras até cobri-las todas e torná-las frutos envoltos em verde, presos às lianas.
Os braços de Zadha, ainda em rotação, se abriram, suas mãos abarcando o vazio, ao se fecharem trariam uma nova chuva, invertida e vermelha. Os olhos de Ak'houan-a-rae podiam vê-las com clareza, a distância não era problema, não a distância.
J-Hope saiu disparado do círculo de pilares, e uma chuva de estacas de força o recepcionou, não só vinda de cima, mas também das laterais. Não tentou bloqueá-las, perderia tempo com isso, apenas se desviou, sem pensar no que aconteceria se uma daquelas coisas o atingisse, só queria chegar ao parapeito. Precisava ver ou sentir as pessoas para protegê-las e várias delas estavam fora do alcance da esfera de poder de Berat, balizado pelos minerais e vegetais.
Desviou de todos os ataques, estava a menos de dez passos do parapeito, quando um agrupamento de estacas muito próximas veio baixo, na direção de suas pernas.
Não! Berat gritou, mas era tarde. J-Hope já havia saltado. As setas passaram inofensivas por sob seus pés, e seu corpo foi aspirado para o alto, mais alto, mais alto. Zadha sorriu um sorriso mordaz musicado pelo berro de desespero do moleque e disse bem baixo, a sensação de um sussurro soprado ao vento:
— Adeus à mesmice do desperta-briga-sela.
E desferiu o primeiro soco no ar.
Hobi teria se desfeito em pedaços se Berat-Enira não o tivesse envolto no último instante num imenso casulo de q-carbono. A força da pancada foi tanta que bastou para trincar a defesa. Ak'houan-a-rae a restaurou de imediato, pois novas pancadas mais fortes do que a primeira já chegavam, sem intervalo entre elas e as que as sucediam, uma sucessão sem trégua de ataques.
Fazrat'miresa não permitiria que reestabelecesse sua ligação com o solo, não daria chance para que fizesse qualquer coisa, além de alimentar a precária barreira que o separava da destruição, não pararia até matá-lo — se Berat chamasse a terra para si, preterindo as vidas dos Frutos do Ódio para salvar a própria, poderia se libertar, mas sabia que ele não faria isso, pai zeloso que era. A anomalia que o abrigava também não faria, eram uma dupla de tolos sentimentais.
Me desculpe, Berat-Enira-nim! Desculpe!
Teve a atitude correta, Hoseok. Só se esforce para conservar tal atitude sem se esquecer da sua própria segurança da próxima vez, ok?
Ok!
Às pancadas se juntaram garras invisíveis que se cerravam ao redor do casulo de metal, tencionando esmagá-lo. Não poderia haver esquife mais apropriado para o Soberano da Terra. J-Hope gritou ao ser espremido pelo metal que, apesar da resistência de Hagar'mirena, começava a ser comprimido.
— Eijær. — Uma voz diferente da de Berat-Enira ecoou pela mente de Hobi, e um estampido muito alto reverberou pelo metal, quase ensurdecendo o rapaz e fazendo o casulo vibrar e se partir em pequenos pedaços. J-Hope foi engolido pelo vazio.
* * *
A dúvida em mim
Suga bateu a porta do telhado atrás de si, desceu de três em três degraus o primeiro lance de escadas, como se fugido da ardência em seus olhos, e parou no meio do patamar, pois não podia fugir de si mesmo. Ficou plantado ali, completamente imóvel até que seu olhar embaçado se fixou na parede a sua frente, num ponto ordinário e qualquer. Ergueu o punho cerrado e o encostou ao dito ponto uma vez, duas vezes, três vezes e de novo e de novo e novamente... até cair a primeira lágrima.
Socou a parede uma vez, duas vezes, três vezes e novamente e novamente e de novo... até que as lágrimas desse então rubro pranto rebentado suplantassem às de sal.
O primeiro estrondo veio.
Derrubou o caderno de letras, e seus pés deram meia-volta, arrastando-o novamente escada acima. Quando se deu conta, já tinha aberto a porta de esquininha e espiava pela fresta. Viu J-Hope correndo como um coelhinho assustado, J-Hope fazendo pedras imensas surgirem do nada e superarem o tamanho de arranha-céus, J-Hope criando um grande bloco de rocha que cobriu todo o terraço tão rápido que acabou batendo a porta bem no seu nariz antes que pudesse evitar...
— Aigoo! Hobi, seu desgraçado de uma figa — reclamou, massageando o nariz dolorido de qualquer jeito. A figura de plasma e chamas crepitantes de Asha-Maiura estava atrás dele, flutuando a seguros centímetros do patamar. O Hagar se materializara para observar os passos do rapaz desde a hora que ele correra para espiar o embate de Berat e Fazrat'miresa, para impedi-lo, caso ele tivesse a brilhante ideia de ir lá fora. Suga tinha plena noção de que o Hagar da Coragem o fitava, ele era muito quente, barulhento e luminoso para não ser notado, então se dirigiu a ele sem qualquer cerimônia — Me diz, Asha... Berat-Enira pode vencer esse combate?
— Até com os olhos fechados.
— Você acha que ele vai vencer? — Suga sabia bem que J-Hope, em sua primeira briga, na certa cometeria deslizes significativos.
— Se ele ficar de olhos fechados. — Fitou o comandante dos Hagar de Akasha de soslaio. "Claro, Criança, não há com o que se preocupar". Essa não seria uma resposta mais condizente a ser dada a um reles humano que não podia fazer nada, além de se recolher a sua impotência numa situação daquelas? Hagar da Sinceridade... Hum. Tenho que tomar cuidado para não fazer perguntas pras quais na real não quero respostas, e, bem... não sou exatamente impotente. Eu posso lutar, basta abrir mão do controle da minha vida. Nada como uma boa escolha para tornar tudo mais animado. — Berat é como seu amigo, Yoongi. Se importa demais com tudo e todos — Sabia, eles vão acabar fazendo alguma burrada —, ao passo que Zadha-Rine tem um coração de pedra, tudo vira uma arma nas mãos dele. Não gosto da ideia de deixá-los a sós sobre um mar de Filhos de Menora.
— Não seria melhor ir até lá?
— Não vale o risco, eu precisaria esquentar bem mais do que você suporta numa possessão unilateral para lidar com o Senhor dos Fazrat. Você sublimaria. Além disso, recebi uma ordem direta, mesmo que não me importasse com sua vida não a descumpriria.
— Ora, que obediente. — O Hagar emitiu um ruído que delatava indiferença. — A vida do seu general não devia ser mais importante do que a minha?
— Embora como amigo de Berat eu esteja inclinado a dizer que sim, nenhuma vida vale mais do que outra, Yoongi. E não é certo que poderei salvá-lo mesmo que o sacrifique, poderíamos morrer todos. Como eu disse antes: não vale o risco.
— E se eu o aceitasse?
— O sublimado seria o hospedeiro de Zadha. Afinal, só tenho ordens para não intervir estando sob o risco dos seus portões espirituais se romperem.
E apenas isso, Asha não havia tentado convencer Suga a aceitá-lo antes. Aliás, ele nem mesmo havia pedido que o fizesse, o pedido partira do Senhor dos Hagar, e, levando em conta a presente situação e o persistente mutismo dele, não iria pedir. O rapper não poderia desejar melhor atitude, nem havia atitude pior, graças a ela a escolha era inteiramente sua. Sem pressões, só aquelas impostas pela situação que se desenrolava do outro lado da porta e as feitas por sua própria consciência. Nada como começar o dia se digladiando consigo mesmo... Deixou escapar um risinho sem humor, seus olhos se abriam em pequenas fendas, de tão inchados por conta do choro.
Mais um berro, um berro bem diferente dos anteriores os alcançou: uma alta nota aterrorizada que decresceu rapidamente até sumir. No exato instante, Motionless Min percebeu uma mudança na postura do comandante dos Hagar de Akasha. Os punhos dele haviam se cerrado e dava para antever alguns traços de preocupação nas feições de chamas solares antes cobertas de neutralidade. Ao falar, havia um quê de urgência imiscuído no tom indolente:
— Para os outros ainda não terem vindo, devem ter sido pegos pelo perfume calmante das flores de Berat... Vamos descer. Talvez ainda haja tempo de acordar Hasa e Qenía.
Dito isto, Asha-Maiura se virou e flutuou escada abaixo sem esperar por respostas, desaparecendo de seu campo de visão, o crepitar das chamas se atenuando, assim como a luz a colorir as paredes com tons dançantes de laranja.
"Life is a daily oscillation between revolt and submission". Suga soltou mais um risinho cético. Costumava achar sua releitura das palavras de Amiel bastante condizente com o grande drama que era viver, mas naquele momento ela não servia de nada. Afinal, Berat-Enira o mandara ficar fora daquele assunto, e se o ignorasse e se metesse estaria se revoltando contra a vontade dele, contra o danoso otimismo de J-Hope, contra os Lirthua'shoa e sua cega missão e contra Larhen-Edriza e seu infinito egoísmo, mas para fazer isso precisaria abrir mão da sua vontade e submeter seu corpo, a sua vida ao controle de Asha-Maiura. Revolta e submissão não eram mais dois polos opostos a oscilarem, um emergindo a sua vez a cada escolha. Eles não mais se opunham, eram as duas coisas a mesma coisa. Se revoltar era se submeter, e se submeter era se revoltar. Aceitar ou não aceitar? Ambos caminhos irreversíveis, pois irreversíveis eram as consequências que trariam. As areias do tempo escoavam, e, ao não se decidir, decidia. Cada escolha feita são modos de viver que se mata...
— Que se dane...
— O que está esperando, Yoongi? — As palavras de Asha, vestidas em sua voz, soaram um bocado ríspidas aos seus ouvidos. Já não via a luz dele. — Se apresse.
— Está bem!
Passados dez segundos, Suga não havia movido um músculo, permanecia junto a porta do terraço, então o Ak'hagar voltou a chamá-lo:
— Venha logo, não temos tempo.
— Eu disse que está bem! — frisou Suga. — Aceito ser seu hospedeiro.
Asha-Maiura respondeu com silêncio e não retornou como uma figura flamejante, em vez disso veio na forma de um turbilhão fumegante vermelho-dourado que explodiu contra o peito do rapper, invadindo-o sem cerimônia ou cuidado algum. Min Yoongi cerrou os olhos bem apertados, temeroso de vivenciar o inferno ou acabar reduzido a um punhado de cinzas, porém tudo que sentiu foi uma calidez suave, nada desagradável e impregnada de um nítido desejo: o mesmo que acalentava.
A partir daí, Suga não pensou mais, só agiu. Se estava sendo controlado, o método era eficiente ao ponto de ser imperceptível. Só consigo mesmo, era assim que se sentia. Asha tinha a mesma sensação, a de não ter ninguém interferindo em suas ações, era como se seu espírito tivesse se materializado no plano físico.
Reabriu os olhos — eles haviam se tornado berços de sóis, nascentes de minúsculos rios de raios solares que corriam pelas escleras, intercruzando-se em uma rede intrincada — e, como se engatasse uma flecha imaginária num arco de nada, se virou de frente para a quina entre as paredes à esquerda da porta, proferindo uma única palavra que, ao sair de seus lábios, reverberou por seu corpo e alma, fazendo com que transbordasse de energia:
— Eijær.
Calor emergiu de seu espírito e saltou de sua pele como espirais e ondas plasmáticas douradas, negras e rubras. Elas o cercaram, ocupando o espaço vazio em suas mãos e já não eram ondas individuais. Em suas mãos geraram duas estrelas singulares, fazendo jus a seu epíteto de "Criador de Sóis": um arco de dois metros de envergadura, cujas extremidades se moldavam em arabescos, penas e espirais em constante movimento, e uma flecha de aspecto deveras afiado, com anéis e erupções de energia se espalhando por seu corpo longo e fino.
Soltou a flecha, e ela partiu bramindo, destruindo tudo em seu caminho sem nem tocar, o que restou de pé das paredes àquela altura das escadas desmoronou ao redor do comandante dos Hagar de Akasha, fumegando e soltando estalidos. Não houve quase tempo nenhum entre a partida da seta e o encontro entre ela e o alvo. A ponta dela pegou na mão esquerda do Fazr'sho da Atração que pairava nos céus, atravessou-a e varou também o antebraço direito dele antes de desaparecer. Ambas as partes se sublimaram no limiar do toque, e o mesmo teria ocorrido com o restante do corpo do Sho, se ele não tivesse arrancado os membros.
Sangue jorrou em abundância dos cotos, ainda assim Zadha-Rine não deu um pio ou fez menção de recuar. Criou dois campos de repulsão para vetar a hemorragia e mandou uma bomba de força contra J-Hope, que despencava em queda livre aos berros desesperados. Credo, Hobi, porquê? Estou até sentindo pena de Hagar'miresa... Pensou Suga, revirando os olhos e disparando uma flecha materializada dos anéis do arco contra o ataque do Senhor dos Fazrat. Uma Criança que se deixa embotar por seus medos? Ah, Berat... Foi o pensamento de Asha-Maiura. Yoongi gritou:
— Para de palhaçada e sai dessa, Hobi!
Os golpes se anularam com uma explosão, a bem poucos metros de J-Hope que, enfim, criou juízo (depois de mandar o amigo ir encher a paciência de outro) e fez surgir sob seu corpo uma pedra grande o bastante para sustentar seu peso, desacelerando a queda e rumando de volta ao terraço do hotel.
Em tese, Zadha-Rine ainda podia esmagar Smile Hoya, mas sem as mãos precisaria se concentrar muito para visualizar a imagem e senti-la, do contrário ela não se concretizaria. Era o carma de ter um poder que era uma extensão direta da própria existência, estando preso a um corpo físico retalhado. Suga soube disso logo que se uniu a Asha-Maiura, por isso atacou os braços do Senhor dos Fazrat, e também por isso fez chover pequenas flechas ao redor dele, suas trajetórias flamejantes se alterando para caçá-lo pelo céu, forçando-o a fugir. Tal pressão, somada a severa dor física que Zadha estava sentindo, acabaria com qualquer concentração que ele tentasse reunir, só deixando restar ataques diretos que eram facilmente frustrados por suas setas.
O olhar encolerizado do Fazr'sho da Atração se focou no rosto de Suga, e ele resmungou, espumando de ódio:
— Yaser'kyfieh...
Em resposta à saudação tardia do inimigo, Suga materializou uma nova flecha bem maior e veloz do que as anteriores e atirou sem rodeios, mirando o peito do servo de Larhen. Não seria o bastante para extinguir o espírito dele, Yoongi soube assim que disparou — porque atirava para matar —, só o deixaria sem corpo, mas era o suficiente. Berat acabava de chegar ao terraço, então poderia selar o Sho logo que a vida expirasse do corpo dele.
Adivinhando as intenções do comandante dos Hagar de Akasha e reconhecendo sua indiscutível derrota, Zadha liberou chamas para confundir a sensitividade dele e tratou logo de zarpar dali em velocidade supersônica. Apesar do estado deplorável de seu recipiente, não saía de mãos abanando (figuradamente, claro, afinal, ele não tinha mãos para abanar). Saber quão bem aqueles Frutos do Ódio respondiam aos poderes dos Ak'hagar sem quebrarem seria imprescindível para pensar os próximos passos dos Shoa. E, por mais que detestasse a ideia de fugir dos lacaios de Ak'Mainor, sempre poderia se vingar enquanto permanecesse livre.
Esperem por mim, Hagar.
* * *
Faça um escudo de mim
A felicidade de J-Hope por ter escapado do esmagamento e também de se esborrachar contra o asfalto durou por uns dois segundos, os exatos segundos que levou para encontrar Suga no terraço. Ou melhor, para se dar conta de que aquele era ele.
Estrelas. Os olhos de Suga continham estrelas que os raiavam com filigranas de fogo vivo, ele segurava uma estrela em forma de arco, atirava estrelas em forma de flechas, as próprias roupas dele — aos olhos desatentos, um dispendioso hanbok tradicional de durumagi vermelha e jeogori e baji pretas adornadas de motivos dourados — eram estrelas. O tecido aparentemente sólido era composto de tramas bem finas de plasma vermelho, negro e dourado, as barras acabadas em microexplosões, ondas e espirais de chamas solares eram suas cristas irreprimíveis.
Hobi teria achado incrível, se Berat-Enira não olhasse para tudo aquilo com aversão. Aliás, sentia Hagar'miresa apreensivo, beirando a angústia, desde que a defesa metálica dele fora posta abaixo pelo zunido proveniente do ataque do comandante dos Hagar de Akasha. Então, o interpelou, tão preocupado com ele e com o hyung que o fato de estar sobre uma pedra suspensa no ar com Zadha-Rine ainda zanzando ali por perto já não importava tanto.
O que há de errado, Berat-Enira-nim? Você parece com medo de Asha-Maiura-nim...
Medo dele? De modo algum. É o que vejo a me deixar atônito. Deve se recordar da palavra que ouvimos quando Asha atacou. Todos nós, Ak'hagar, possuímos uma palavra de poder, e aquela era a dele. Eu esperava ter entendido errado, entretanto a aparência de Min Yoongi não deixa restar dúvidas, e é uma barbaridade.
Eu... Eu não entendo. Que mal faz ele ter usado a palavra de poder?
Nós também possuímos sete portões resguardando o âmago de nossos espíritos, Hoseok. Essa foi uma medida de segurança que adotamos quando aceitamos o Aprisionamento de Carne e tinha o intuito de preservar as vidas de nossos hospedeiros, pois as Crianças de Ak'Mainor não suportam as emanações integrais de nossos espíritos imortais, é sabido. As palavras de poder, no entanto, servem para romper esses portões, cada vez que as proferimos um deles se rompe e uma parte de nossos espíritos se manifesta nessa dimensão, trazendo consigo toda a energia que contém. Um último recurso para ser usado apenas em situações extremas, essas são as palavras de poder. Essa situação, porém, não era extrema, nem chegou perto de ser. Pela primeira vez em minha vida, não consigo entender os atos de Asha.
Então, Suga podia ter morrido?
Nenhum de nossos hospedeiros jamais resistiu a liberação do primeiro portão, Hoseok. Por isso, ver Min Yoongi com vida e de pé me alegra tanto quanto espanta. É o que vocês, novos Filhos de Menora, chamam de milagre. Apesar das palavras, Ak'houan-a-rae não estava menos apreensivo do que antes.
Você teme que Suga só pareça bem, não é?
Berat não respondeu. A rocha que os abrigava enfim pousou no terraço.
J-Hope escorregou de cima dela e disparou para onde o amigo estava no exato instante em que Zadha-Rine batia em retirada. Graças ao bom Deus, ou a Ak'Mainor, ou a Akasha e Akisha, ou a qualquer potência que olhasse em favor dos que tinham os nervos em frangalhos, porque não tinha a mínima condição de continuar lidando com a sordidez dele ou de qualquer dos Lirthua'shoa. Berat idem.
— Min Yoongi! — gritou, se atirando contra o outro.
Suga só teve tempo de varejar o arco longe (fora de suas mãos, ele se dispersou em ondas e desapareceu) — suas roupas assumiram tons mais escuros de vermelho, ficando quase inteiramente negras — antes de ter o pescoço enlaçado pelos braços afoitos do amigo. Ambos tombaram, escapando por um triz de rolarem escada abaixo.
— Aigoo, J-Hope! Eu podia ter te queimado-!
— Desfaça isso, Asha-Maiura-nim — cortou as palavras irritadas de Suga, acirrando mais os braços ao redor dele. Sua voz tremia por conta do medo e do choro que não podia conter, suas lágrimas produziam um canto chiante ao pousarem no ombro do hyung. Ele seguia vestido de flamas solares, apesar de não o agredirem por serem anormalmente frias (ardiam a uma temperatura pouco superior a ambiente, e o calor que desprendiam era até afável), mesmo assim... — Por favor... Yoongi-yah é importante demais pra muita gente, não pode morrer aqui.
J-Hope sentiu o peito de Suga subir com um suspiro, e o calor se dissipou ao seu redor em ondas e fumaça, o que o fez tossir. Ergueu um pouco o corpo para vê-lo, e, com exceção das estrelas a queimarem nos olhos, ele estava como quando o encontrou no terraço: metido em um conjunto de jeans claro esfiapado, camisa branca e Converses pretos grafitados. Parecia bem, parecia. Não resistiu e passou a esquadrinhá-lo com as mãos e os olhos de contas de âmbar arregalados e vermelhos atrás de marcas de queimaduras enquanto o metralhava de perguntas, sem realmente prestar atenção a possíveis respostas:
— Você está bem, certo? Não está ferido, está? Não sente dor, não é?
Normalmente, Suga teria enxotado as mãos de Hobi de seu corpo e o mandado sair de cima, mas não podia culpá-lo pela reação histérica. Ainda não havia trocado uma palavra sequer com Asha-Maiura desde que se uniram, e nem precisava. Ouvir os pensamentos dele bastava. Ao ver o hospedeiro de Ak'houan-a-rae correr em sua direção com ares desesperados, o comandante dos Hagar de Akasha inferiu que fosse por causa da liberação do primeiro portão espiritual dele — que, a propósito, tinha tudo para ter dado errado e o reduzido a nada, sem deixar nem uma marquinha negra no chão por lembrete de "aqui sucumbiu Suga, rapper sul-coreano que se explodiu ao tentar bancar o herói da esperança". Então, se limitou a ficar como estava: com os braços abertos, imóvel e em silêncio até a inspeção acabar.
A ideia de J-Hope se deparar com sua mão direita o preocupou por um ínfimo segundo, pois ela tinha ficado toda arrebentada por conta dos vários socos que dera antes na parede. Felizmente, não havia nem a lembrança de um arranhão nela agora — até seus dedos e unhas estavam como antes de tê-los atacado com os dentes. Ao partirem, as ondas de suas vestes flamejantes tinham feito o favor de levar também aqueles danos autoinfligidos.
— Oh... Oh, graças a Deus, hyung... Você está bem... — Hobi suspirou aliviado, unindo as mãos ao peito. As batidas fortes de seu coração começavam a se abrandar. E se dobrou, recostando a testa ao ombro de Motionless Min, suas lágrimas se derramaram sobre a jaqueta dele. — Não ia me perdoar se alguma coisa tivesse te acontecido por minha causa...
Isso é embaraçoso, Hoseok! Pensou Suga, cerrando os punhos, segurando-se para não afastar o amigo com um empurrão. J-Hope costumava ser bem exagerado, mas dessa vez ele tinha razão para ser e não o recriminaria por isso. Estava sem jeito com a situação, mas não era insensível, apesar de muitos acreditarem nisso.
Ficaram assim por alguns instantes, até que Yaser'kyfieh quebrou o silêncio:
— Hum, você realmente se deixa governar por suas emoções, Jung Hoseok. — Se dependesse apenas de Suga, seus olhos teriam se arregalado, mas o Hagar da Sinceridade os fez permanecer fitos no céu, indiferentes. Quem o escutasse, acharia que considerava a demonstração de afeto de J-Hope um estorvo, quando, na verdade, tencionava resgatá-lo da encruzilhada de tristeza e remorso murmurantes em que ele havia estacado, bem como a Hagar'miresa da cela de mutismo em que ele havia se recluído junto a um sem-número de dúvidas e angústias. Também objetivava tirar Yoongi daquela situação incômoda. — Das Crianças problemáticas, a mais problemática...
O afastamento brusco, a revolta meio aborrecida e meio decepcionada a pintar traços na face banhada em lágrimas e a atar os dedos em sua jaqueta, e também os dizeres que escaparam através dos lábios do rapaz mostraram que o comandante dos Hagar de Akasha havia cumprido seu intento.
— Não se atreva a tripudiar dos medos de Hoseok depois do que você fez, Asha — Berat-Enira proferiu num raro tom de ordem. — O que estava pensando para se dar ao desfrute de brincar com a vida de um dos filhos de Sua Excelência? Além de conhecer quão importante cada um deles é à manutenção do Coeficiente Caótico, você sempre soube que as vidas deles são preciosas, exatamente por serem tão fugazes. Não acredito que o tempo que passou adormecido tenha sido capaz de fazê-lo se esquecer... — Sólidos, a repulsa e o receio cultivados no coração de Ak'houan-a-rae por essa ideia eram tão sólidos quanto seus olhos de pedra. — Então, por quê?
— O peso de seus Escudos trincados, Berat. Não permita que eles esmaguem a fé desse garoto. — O Senhor dos Hagar ficou sem reação frente a essas palavras, então Yaser'kyfieh o segurou pelos pulsos e se desvencilhou das mãos dele, se sentando em seguida. — Não planejei me desfazer do meu primeiro portão, foi um reflexo... meu, nosso. Por um momento, nos focamos em nosso desejo de salvá-los e esquecemos um do outro, eu estava aqui, completamente, e o meu poder era o dele, inteiro. Quando me dei conta, já tínhamos aberto o portão, e ele ainda estava vivo e são. Felizmente. Essa é a única explicação que posso lhe dar, porque nem eu mesmo entendo o que houve direito. — O comandante dos Hagar de Akasha abriu um sorriso de canto. — Fique descansado, meu general. Não me esqueci de nada nem ignoro os desígnios de Sua Excelência, sua vontade ou meu dever.
— Entendo... — disse Berat-Enira, a angústia que sentia recuando e deixando restar somente desconcerto. J-Hope levou as mãos à boca de tão aliviado que estava, o que fez com que o restante das palavras do Senhor dos Hagar saísse abafado. — Peço perdão por tê-lo julgado mal.
— Me preocupa muito mais você ter se atido à minha transgressão da lei e aos possíveis perigos em que isso poderia acarretar, em vez de ficar feliz por um dos Filhos de Menora enfim ter resistido à liberação dos portões. — Hagar'miresa abaixou a cabeça. — Vai enfraquecer, se não se cuidar, Berat. — Pequenas ruguinhas surgiram na testa de J-Hope, e Suga se sobressaltou por ter percebido a real conotação daquele "enfraquecer" e porque ela não se restringia a Ak'houan-a-rae. Asha sorriu sem vontade. — Veja só, você nem disse a ele qual são seus Escudos.
— Isso não... — Berat se deteve, fechando os olhos e suspirando. Asha tinha razão, como sempre. Que bom que ele não mudou... Pensou, sentindo-se aliviado e até meio bobo por ter imaginado isso antes e admitiu às Crianças — Esperança e Alegria, embora eu não seja merecedor deles.
— Isso quem decide é Sua Excelência, e ela os confiou a você. Não devia se desesperar, Berat. Essa Criança confusa e tão dada aos próprios sentimentos lembra muito como você costumava ser. — Aish, o que foi que eu fiz pra ser alvo de tanta implicância, hein?! Protestou Hobi, arrancando um sorriso modesto de Hagar'miresa. Não podia ter descrito melhor, concordou Suga, certo de que o amigo reclamava no ouvido de Berat-Enira. — Devia tentar reaprender seu caminho com ela.
— Você dizendo isso?
— Ainda estou aqui e mais forte do que nunca desde que nos confinamos à Prisão de Carne. Diria que elas merecem meu voto de confiança... — Berat soltou um risinho. — Fica bem melhor assim. — O sorriso dele arrefeceu, encoberto por um véu de culpa e pesar. Asha não insistiu. Sabia que os Escudos de Berat não se recuperariam de uma hora para outra, mesmo com a ajuda do espevitado (que vamos e venhamos também não estava muito para cima naquela ocasião), e haviam outras questões no momento. Se pôs de pé e estendeu a mão para ele, ajudando-o a levantar e o informando — O número de Crianças nas redondezas está aumentando depressa, não demorarão a perceber que há algo de errado com esse lugar. É aconselhável baixar sua barreira e despertar a todos.
O Senhor dos Hagar assentiu devagar e lhe deu as costas, indo com passos desvigorados em direção ao círculo de cotos que restava dos grandes pilares de rocha cinzenta. Yaser'kyfieh estranhou a atitude, pois ele poderia muito bem ter desfeito a barreira dali, mas compreendeu que o afastamento dele não tinha nada a ver com isso ao olhar mais atentamente para os cotos. Havia um amontoado ensanguentado próximo a um deles, preenchendo com sua repugnância muitas das lacunas daquele episódio que seguiam em branco para ambos.
Sabia que Zadha não perderia a chance de usar as Crianças para mexer com Berat... Asha se arrependeu por não ter pedido a ajuda de Yoongi, e Suga se retraiu de imediato. Se tivesse se decidido mais cedo... J-Hope teve que presenciar esse horror e quase acabou do mesmo jeito! Asha, preciso saber... Wu, o hospedeiro daquele Sho, ainda tem salvação?
Sabe a resposta, Yoongi.
Se é assim, da próxima vez que o encontrarmos, vou enfiar uma flecha no coração dele.
Desde que Berat esteja por perto para selá-lo, não me oponho, embora eu prefira a cabeça...
Duas flechas, então.
Perfeito.
Se aproximaram do círculo de pilares partidos enquanto travavam esse breve diálogo. J-Hope estava de joelhos diante das vítimas, recolhido no calor do próprio abraço. As unhas se fincavam na carne. Balançava-se de um lado a outro, puro pranto e culpa. Choramingava:
— Por quê? Como pode alguém ser tão sem coração? — Berat continuou — Eu devia ter adivinhado as artimanhas horríveis que Zadha usaria para nos atrair. Fui displicente. Devia tê-los protegido...
Uma mão de Suga pousou no ombro esquerdo do amigo, então ele a segurou, chorando mais. Não pudemos proteger vocês, por favor, nos perdoem... Me perdoem... Meu medo obstruiu as ações de Berat-Enira-nim, e vocês acabaram pagando por isso... Perdão, perdão!
Você fez o que estava ao seu alcance, Hoseok. Não tem culpa alguma. Minha missão, meu poder, minha responsabilidade. Eu aprisionei os Lirthua'shoa nessa dimensão, nesse planeta. A culpa por seu povo estar sofrendo, por você estar sofrendo é minha, toda minha. Como eu gostaria de poder fazer tudo diferente, como...
Não diga besteiras, Berat-Enira-nim. Se não tivesse feito o que fez, muito mais gente estaria sofrendo com as ações dos servos de Larhen... Pegue a minha mão e divida sua responsabilidade, seus poderes e sua missão comigo, divida sua culpa comigo. Não falei da boca pra fora quando disse que me tornaria a esperança de todos. Posso me torna a sua também. Jogue fora seu Escudo quebrado e faça um Escudo de mim. Apesar das lágrimas, Hobi sorriu com a alma. Se for por eles, eu consigo enfrentar meus medos e os seus, consigo enfrentar qualquer coisa pra evitar que algo tão horrível volte a acontecer, é só você segurar a minha mão, Berat-Enira-nim.
Seus braços se acirraram ao seu redor — tristeza, culpa, coragem e gratidão misturadas —, e suas lágrimas regaram o chão e os restos mortais que costumavam ser dois Filhos de Menora. Um tapete de relva surgiu sob eles e foi se alastrando e os cobrindo. Eles foram encolhendo pouco a pouco sob o manto verde. J-Hope olhou para aquilo com espanto, a placidez que manava de Berat o confundia.
— Mas o quê?
— Berat é o Guardador dos Espíritos Condenados e o Mestre dos Selamentos — revelou Asha-Maiura. — Ele é capaz de dar uma nova chance na dimensão dos vivos às almas que foram enviadas às Portas da Morte antes do tempo.
— Não posso, contudo, restituir as vidas sopradas pela graça de Ak'Mainor-Menora que Zadha-Rine tirou, apenas lhes conceder outras — explicou o Hagar com um certo tom de lamento, enquanto a relva se espalhava. — Ao menos estarão unidas... Veja, estão renascendo.
Já não havia sangue ou carne despedaçada, a visão de morte fora convertida em vida. Sobre o manto verde surgiu uma flor de jasmim rosa, e do caule dela brotou outra, menor e imaculadamente branca. Suas pétalas desprendiam aroma de carinho maternal e a vívida sensação de risos infantis, a lembrança de uma alegria que se perdeu refeita no doce perfume daquelas mimosas existências.
Surpreso e admirado pela visão extraordinária captada por seus olhos lacrimosos, Hobi perguntou:
— Podemos levar elas com a gente? Podemos tentar achar a casa delas. Mesmo estando nessa forma, seria bom se pudessem ficar junto da família, não acha? — E Berat-Enira respondeu com um sorriso mínimo, iluminado pela empolgação dele. — Claro, Hoseok.
— Qenía vai saber onde a família reside — emendou Asha. — Ele sabe de tudo que há para saber. — Suga pigarreou. — É... Sem querer interromper esse momento tão emotivo, mas já tem um monte de assinaturas de calor bem perto daqui, algumas bem agitadas até. Um monte surgido no meio da cidade da noite pro dia, um monte de pessoas caídas no meio da rua... Sabe como é. Se a ideia é manter segredo, é melhor agilizar.
J-Hope concordou com um aceno de cabeça, enxugou os olhos com a manga do casaco e uniu as mãos, espalmando-as no chão em seguida. Os blocos que vedavam o prédio, as trepadeiras e papoulas que os acortinavam, a nuvem de pólen e perfume por elas expelida (inclusive a parte que havia sido aspiradas pelas pessoas), as ruínas dos pilares e os restos das lianas se transformaram em energia amarelo-ambarina, de um brilho perolado-translúcido, e convergiu para a pequena muda de jasmins. As flores agora descansavam em um vaso de barro com gravuras cintilantes, gotas e fragmentos de cristais nascidos de suas lágrimas. Ele pegou o vaso e se pôs de pé, enxugando novamente o rosto. As lágrimas eram persistentes.
— Por favor, peça a Jin hyung para descobrir onde fica a casa delas — pediu J-Hope, entregando o vaso a Suga. Secou as lágrimas mais uma vez, deu tapinhas nas bochechas e abriu um sorriso superotimista. — Ah, e fale com Taehyung-ah! Veja se Khro-Yehath-nim pode modificar as memórias das pessoas que viram o que aconteceu aqui.
— E você vai fazer o quê?!
— Vou para o Egito, claro — disse com a cara mais deslavada do mundo e agitou uma mão. Suga o encarou chocado. — Tchau!
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