
i. kenna
K E N N A
— fogo e sangue
•.•.•
Kenna assistiu-os partir da janela do quarto, apertando as peles pesadas em volta de si para afastar o frio úmido da manhã. Desejou que voltassem logo. Eram vinte homens ao todo, um mar de couro e peles marchando com o lobo cinza dos Starks no estandarte, e entre eles estavam Robb, Bran, e o meio irmão Jon Snow. O quarto de Kenna ficava em uma das torres mais altas de Winterfell, por isso Robb não a viu na janela, e Bran estava tão nervoso que não olhava para qualquer direção além do caminho em frente, mas Jon deu-lhe um aceno discreto. Às vezes ela sentia como se todos vivessem em mundo do qual só ela e Jon estavam proibidos de entrar. Kenna sorriu e acenou de volta, e ele se virou e continuou cavalgando até sumir de vista.
Estavam indo assistir à decapitação de um homem encontrado em um povoado nos montes, por isso nenhuma dama teria permissão para acompanhá-los. Será este um mau agouro? Pensou Kenna com preocupação. Ter um homem condenado a morte no dia de seu nome não poderia ser bom presságio. Era agora uma jovem dama, em idade de casamento, e embora vivesse com os Starks desde que era apenas uma criança, sua verdadeira casa era Baratheon, a casa do rei Robert, e os senhores de terras menores ansiavam por casá-la com seus filhos por este motivo. Certamente poderia esperar alguns presentes de tais bajuladores naquele dia, mas para seu alívio, lorde Eddard era um bom homem e nunca parecia inclinado a aceitar nenhuma proposta indigna, e assim Kenna sempre conseguia se livrar dos compromissos indesejados.
Quando todos os homens dos Stark sumiram no horizonte, ela deixou o assento da janela em busca de algo apropriado para vestir. Já que despertara cedo, bem poderia dedicar um tempo para parecer mais bela no dia de seu nome. Colocou o vestido que Sansa havia feito para ela com alguma dificuldade para atar os laços nas costas sem a ajuda de Estelle, sua dama. A veste era, como tudo o que Sansa produzia, uma peça magnífica. A cor púrpura destacava o violeta dos olhos de Kenna e o corte valorizava sua silhueta nos lugares certos.
Robb irá adorar, dissera Sansa. Mas Kenna não queria chamar a atenção de Robb.
Para Sansa tudo era fantasia. Sonhava com príncipes e princesas, donzelas e reis e finais felizes. O casamento de Robb e Kenna havia se tornado sua fantasia preferida do momento, não importava quantas vezes Kenna salientasse a impossibilidade de tal coisa acontecer. Seríamos parentes então! Felizmente ela tinha o bom senso de guardar para si seus devaneios, ou de certo senhora Catelyn estaria batendo à porta de Kenna naquele momento.
Sentou-se em frente ao espelho e penteou os longos cabelos castanhos até ficarem sedosos e sem nós, então começou a trançá-los com cuidado, como havia sido ensinada. Kenna não tinha dedos ágeis como Estelle ou o dom natural de Sansa para as habilidades femininas, e levou muito mais tempo do que esperava para terminar. Quando o fez, viu no espelho que apesar de todo o seu esforço havia conseguido produzir, no máximo, um penteado decente. Sentiu o ânimo murchar no peito feito um botão de flor no inverno. Definitivamente teria de pedir à Estelle que trançasse seu cabelo para as festividades do dia de seu nome no final da tarde se quisesse ficar realmente bonita.
Uma batida suave na porta sobressaltou-a, mas ela não levantou da cadeira em frente à penteadeira. Limitou-se a virar na direção da entrada, curiosa por saber do que se tratava tão cedo. A maioria das pessoas ainda deveria estar dormindo, à exceção dos criados da cozinha.
— Entre.
A visitante obedeceu.
Era Elinora, a mulher que outrora, ainda jovem, havia sido a dama de sua mãe. Agora desempenhava o mesmo papel para Kenna, e era também o mais próximo de uma figura materna que jamais conheceria. O cabelo salpicado de branco estava, como sempre, preso em um coque elegante no topo da cabeça, e usava um vestido de tecido grosso como pedia o clima nortenho, verde-escuro, pontilhado pelos flocos de neve que caíam do lado de fora, o que dizia a Kenna que ela tinha saído da torre naquela manhã. Tinha uma pesada pele negra em volta dos ombros para afastar o frio rigoroso. Seus braços estavam atrás das costas como se carregasse alguma coisa.
— Senhora Kenna — disse. Ela parecia uma das únicas pessoas a reconhecer o título de nobreza dela com aprovação. — Espero que tenha um esplêndido dia de seu nome. Fico feliz que despertou cedo. Já quebrou o jejum?
— Ainda não.
— Há algo que preciso mostrar antes que vá se juntar aos outros no salão — fechou a porta do cômodo atrás de si. Das dobras das vestes puxou uma pesada chave de ferro e colocou-a na fechadura, trancando-a por dentro.
— Mostrar? — repetiu Kenna debilmente. Confiaria sua vida à mulher, mas a apreensão fez-se presente de qualquer maneira. Que precisaria mostrar que teria de ser às sete chaves?
Elinora não respondeu. A passos firmes ela se moveu pelo quarto e parou perto da parede oposta à janela da torre, por onde a luz tênue do sol nascente invadia o quarto. Ali agachou-se e ergueu, com certa dificuldade, a extremidade da pesada tapeçaria vermelha, dobrando-a para que não ficasse em seu caminho. Com o punho, bateu duas vezes no assoalho. A madeira sob seu toque produziu um som oco.
— Que é isso? — questionou a jovem senhora.
— Seu passado.
Kenna se levantou de um salto, vendo o que Elinora carregava na mão livre: um martelo.
A mulher sequer se virou para olhá-la enquanto falava. Segurou o martelo com ambas as mãos, enrugadas pelo tempo e inchadas nas juntas, e removeu os pregos que mantinham a tábua no lugar com eficiência surpreendente. O que está fazendo? Kenna espiou por sobre seu ombro.
Um baú despontava na escuridão, feito de madeira maciça de boa qualidade, tão empoeirado quanto se tivesse mil anos. Seu passado. O que se passava de herança nas famílias nobres eram as armas dos senhores, mas o baú não era extenso o suficiente para conter a espada de seu pai, Dawnbreaker, e além disso ninguém sequer sabia onde ela havia ido parar. Talvez fosse alguma joia de sua mãe...Kenna ficaria feliz de ter alguma coisa dos pais à qual se agarrar, qualquer que fosse. Eram pouco mais do que estranhos para ela.
Com certa dificuldade, Elinora puxou o baú para fora do assoalho, removendo uma camada de poeira com um movimento das mãos. Tirou uma pequena chave dourada de um de seus bolsos e o abriu com ela.
Kenna prendeu a respiração.
A primeira coisa que notou é que eram dois, completos opostos, aninhados em meio ao rico veludo vermelho; um era tão branco quanto a neve que cobria Winterfell, cintilante feito a superfície de um lago congelado ao luar. O outro era tão negro quanto uma noite sem estrelas, de modo que era quase impossível até mesmo distinguir as minúsculas escamas na superfície, dispostas de forma perfeita, como se houvessem sido ali posicionadas minunciosamente por um habilidoso artesão. Quando um raio de sol o atingiu, no entanto, Kenna viu uma cintilação dourada em meio àquela imensidão negra, ondulando.
— São...
— Ovos de dragão — disse a mais velha com naturalidade surpreendente. — Estão petrificados há centenas de anos. Pode tocá-los. São seus.
Kenna os tocou, ajoelhando-se ao lado da ama como uma criança em frente a sua sobremesa favorita. Tomou o ovo branco entre os dedos, tão grande que precisava de ambas as mãos para segurá-lo. Pesava tanto quanto uma pedra daquele tamanho deveria pesar.
— De onde vieram? — perguntou, uma centena de questões embaralhando sua mente. Virou o ovo a fim de inspecioná-lo, e um padrão de ondulações escarlates saltou pela superfície escamosa. — Estavam aqui o tempo todo? Lorde Eddard...
— Não pode saber — avisou Elinora rapidamente. — Não acho que ele os tiraria de você, mas é um segredo familiar e é melhor que assim permaneça. Escute com atenção, Kenna. Seu avô guardou esses ovos por um longo tempo. Seu pai era o filho favorito dele, você sabe — Kenna sabia. Era o que todos que o conheceram lhe diziam quando perguntava. — Rhaegar sempre foi o mais popular com o povo, melhor guerreiro, mas o rei Aerys sempre amou Rhael de todo o coração, especialmente após a enfermidade que caiu sobre ele. Alguns dizem que é por isso que o rei enlouqueceu.... Mas, de qualquer forma, uma noite ele sonhou com o filho de Rhael. Um jovem forte e sábio que traria os dragões de volta aos Targaryen, ele disse. Nunca soube que você nasceria menina. Quando sua mãe ficou grávida, o rei Aerys deu os ovos a ela, e quando ela...bem, quando você nasceu, ela deu-os a mim, para que entregasse a você quando atingisse a idade certa.
— Isso é algum tipo de profecia?
Havia uma nota de esperança infantil em sua voz, e Kenna envergonhou-se momentaneamente. Elinora tocou-lhe o ombro em um gesto maternal.
— Venda-os, criança — aconselhou. — Têm pouco mais serventia para você do que duas pedras. Mas poderia ser capaz de começar uma nova vida com o que receberia de alguns mercadores por eles. Ragnor pode arranjar para que sejam entregues às pessoas certas, se assim desejar.
Uma nova vida. Poderia comprar uma propriedade e então viver da terra, esquecer-se de todo o passado que pouco fazia para facilitar sua vida e casar-se por outro motivo além de simplesmente porque assim fora ordenado.
— Eu vou pensar a respeito — prometeu, mas sua mente em êxtase fazia pouco por seu raciocínio agora. Havia colocado de volta no lugar o ovo branco e agora inspecionava o negro, os dedos percorrendo as escamas que cintilavam em dourado. Parecia encrustado de joias.
— Pense, mas não conte a ninguém, nem mesmo aos Starks. Mesmo que suas intenções sejam puras, o rei Robert...
— Eu sei — tranquilizou-a. Estava viva por misericórdia do rei, que odiava os Targaryen de todo coração, lhe diziam. Se chegasse a seus ouvidos que Kenna possuía ovos de dragão, ainda que nada pudesse fazer com eles... A traição é apenas questão de ponto de vista. — Vou ter cuidado, prometo.
E ela teve. Assim que a serva saiu e após passar um bom tempo admirando-os, Kenna colocou os ovos de volta em seu ninho aveludado, trancando o baú com a chave de Elinora e reposicionando a tábua solta e o tapete sobre ele, para que ninguém o encontrasse. Se não soubesse, jamais teria pensando que ali haveria algo escondido.
Seu estômago dava voltas e protestava audivelmente quando, por fim, deixou a sala privada para o desjejum. Ragnor, seu guarda pessoal, cumprimentou-a pelo dia de seu nome quando Kenna passou por ele à porta do aposento, como sempre. Às vezes ela se perguntava se de fato ele comia ou dormia em algum momento. Parecia nunca deixar o posto.
Tinha sido um amigo próximo do pai dela, Rhael, e também seu guarda pessoal e um espadachim não menos do que excelente. Quando o pai de Kenna morrera, vítima de uma rara enfermidade, pedira, em seu leito de morte, que protegesse sua esposa e filha, na época ainda não mais do que um bebê em formação no ventre da mãe. Ragnor fizera um juramento, e o levava muito à sério.
Após aplacar a fome com uma crostata de amoras-da-neve, sua favorita, Kenna apanhou um dos livros que pegara da biblioteca e caminhou até o Bosque Sagrado, onde sabia que não seria incomodada. Ali, o frio parecia ainda mais rigoroso e o ar cheirava a terra úmida e decomposição, mas o silêncio fazia tudo valer a pena. Lorde Eddard a havia ensinado a ter grande respeito pelos antigos deuses, e por isso Kenna sentiu a necessidade de rezar antes de sentar-se em uma das muitas raízes antigas para ler. Em oração, pedira por proteção para si e para aqueles que amava, agradecera por mais um ano de vida, e rogara por sabedoria, perguntando-se o motivo para terem colocado dois ovos de dragão em seu poder. Seria errado vendê-los? Seria estupidez se não o fizesse?
É claro que não obteve resposta à suas perguntas; os deuses respondiam à sua própria maneira, quando e se lhes apetecesse fazê-lo. Sentou-se à sombra de um antiguíssimo carvalho e pôs-se a ler um longo discurso sobre a história da Patrulha da Noite.
A noite chega, e agora começa a minha vigia.
— Sabia que a encontraria aqui.
Deveria ter passado mais de uma hora ali, lendo, pois as costas doeram quando Kenna endireitou-se, abandonando o livro aberto sobre os joelhos para erguer o olhar. Jon Snow, o bastardo de Lorde Eddard, a observava ansiosamente e, em suas mãos...
— Um cachorro? — parecia o mais provável. Fechou o livro e levantou-se para ver mais de perto.
— É um lobo — explicou orgulhosamente. — Um filhote de lobo gigante.
Não era mais do que uma bola de pelos branca e confusa pelo que Kenna podia ver, aninhado próximo ao peito de Jon. Olhou para ela com curiosidade nas orbes vermelhas quando estendeu a mão para tocá-lo.
— Achei que não existissem mais lobos gigantes.
— Agora existem seis deles — disse Jon. — A mãe estava morta, uma galhada presa na garganta quando os encontramos, mas havia um para cada Stark. Mesmo eu.
O pequeno lobo fechou os olhos quando Kenna acariciou-lhe atrás das orelhas, em silêncio. Ela odiava quando Jon ou qualquer pessoa insinuava que ele, bastardo, era menos Stark do que Robb ou Sansa, mas nada disse.
— Bem, mas não é por isso que estou aqui. Tenho uma coisa para você — Soltou o filhote no chão, que saiu farejando a neve a seus pés. Jon apalpou as vestes em busca de alguma coisa. Um embrulho. Estendeu-o na direção dela, e Kenna o aceitou com expectativa. — Mandei fazer para você, para o dia de seu nome.
Era uma adaga. Tinha mais ou menos o tamanho do antebraço dela, feita de aço de qualidade, afiada ao mais leve toque e ricamente ornamentada. O cabo era dourado, com a empunhadura feita com couro macio e resistente para facilitar o manuseio. Era linda. O pomo havia sido gravado com a imagem de chamas vívidas de um lado, e um pequeno rubi vermelho cortado no formato de gota do outro. Kenna passou os dedos sobre as chamas, sentindo os sulcos profundos no metal.
— Fogo e Sangue — compreendeu.
✵✵✵
N/A: Primeiro de tudo, se você gostou do capítulo, por favor vote/deixe um comentário e adicione à sua biblioteca/lista de leituras. Significa muito. ♥
Game of Thrones, As Crônicas de Gelo e Fogo, seu enredo e personagens obviamente não me pertencem. Contudo, alguns personagens dessa história, como Kenna, Rhael, Mera, Elinora, e alguns outros que ainda aparecerão, são de minha autoria, bem como suas respectivas tramas, que serão desenvolvidas ao longo da fanfic.
Me baseio tanto nos livros quanto na série para criar essa história, por isso terá elementos de ambos. Mas, é claro, podem esperar MUITA coisa diferente. Personagens mortos podem viver aqui e vice-versa, reis e rainhas podem ser destronados, herdeiros que não existiam podem aparecer, mocinho pode virar vilão e vilão pode virar mocinho, e por aí vai.
Os capítulos serão meio longos, tal como os dos livros de GRRM e, assim, pode ser que não tenha atualizações tão frequentes. Espero que não seja muito cansativo.
Cuidem-se. O inverno está chegando.
♥
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