🎩 09. - Antes da próxima leitura
"À força de tanto ler e imaginar, fui me distanciando da realidade ao ponto de já não poder distinguir em que dimensão vivo."
— Dom Quixote, Cervantes.
🎩🍂
Nossa caminhada fora silenciosa. Através de um percurso florido onde o perfume das diversas espécies de flores ali plantadas se misturava concedendo ao local um aroma único e encantador, andamos calmamente em busca de um lugar o qual julguei ser o apropriado para a conversa que estaria por vir, o jardim de inverno.
Muito embora tivesse a convicção de que não haveria de existir em universo algum uma paisagem que fosse capaz de amenizar o peso das palavras as quais estava prestes a proferir à Julieta, não fui capaz de confessar meus pensamentos infames para com nossa leitura no local onde apaixonei-me por ela em meio às descrições amorosas de nosso autor, o grande salão de baile.
A medida em que aproximavamo-nos de nosso destino final, perdia a certeza e a coragem pelas quais meu personagem fora envolvido anteriormente. Acovardava-me nos braços da infidelidade e do medo, que ganhavam força através dos pensamentos errôneos que andavam a sondar minha mente constantemente.
Sabia bem que precisava ser sincero com a bela dama à quem fui prometido, e essa certeza não me abandonara em momento algum desde que minha infidelidade para com meu literato e os sentimentos os quais fui outrora, no instante de minha criação, designado a sentir por Julieta começara.
Contudo, apesar de minhas constantes afirmações silenciosas, em meio às reflexões de uma velha mente de papel desgastada pelas ações do tempo, acerda da certeza do merecimento de Julieta em receber explicações para além das desculpas esculpidas e lapidadas em mentiras bem elaboradas as quais andava lhe dizendo desde o início da nova leitura, pensar sobre sua possível reação mediante à minha infidelidade deixava-me consideravelmente receoso.
Mesmo que não no grande salão de baile onde pude contemplar durante anos sua maestria ao dançar lindamente cada uma das melodias tocadas pela orquestra, ainda iria contar-lhe a verdade que, até então, não fui capaz de admitir. Sob a luz do luar que também nos abrigara em cada momento de amor e juras, que hoje já não fazem mais jus ao que era pressuposto sentir ao proferi-las, eu colocaria em evidência minha traição. Partiria seu coração o qual em outro tempo prometi que cuidaria.
Eu não estava pronto para a conversa que teríamos, e tenho para mim que jamais haveria de estar.
Acontece, meu caro leitor, que em universo algum há de haver alguém preparado para partir o coração daquela que há muito lhe acompanha. Julieta jurou permanecer ao meu lado como minha amada até que as letras em nosso livro já não mais pudessem ser lidas, as páginas já desgastadas pelo tempo não pudessem mais serem tocadas sem as chances remotas de se partirem com uma simples brisa de verão, até que as palavras se tornassem desconexas e sem sentindo para o leitor e o papel logo ganhasse uma nova utilidade, transformando-se no alimento para o fogo da lareira que aqueceria aqueles cujo o frio já se tornara desconfortável ao ponto de desfazerem-se de seus valiosos exemplares. Entretanto, jamais fui capaz de ficar ao seu lado como ela prometera ficar ao meu.
Julieta andava à minha frente. Trajando um belo vestido azul ciano com detalhes em ouro, segurava a barra de seu traje com a delicadeza e graciosidade esperada de uma dama inglesa. Suas pequenas mãos agarraram o tecido de seda de maneira suave, pressionando-o suficientemente para que o material se mantesse firme em sua mão e pudesse se locomover com graça e agilidade.
Com suas mangas bufantes, outorgava à visão crítica da alta sociedade o vislumbre do lado doce de uma jovem cuja a personalidade exigida pela corte demandava um toque sussinto de doçura e romantismo que, aglutinado à inocência esperada por seus pretendentes, era capaz de conquistar a qualquer um dos rapazes que desejassem alguém para desposar.
Todavia, sua escolha de jóias e a forma como seu penteado perfeitamente arrumado acaba por mostrar parte de seu pescoço, concede à dama um tom de sensualidade. Contrapondo a delicadeza à ousadia, Julie combina seus gestos e vestimentas de maneira a atrair todos os olhares para si.
— Até onde teremos que andar para que possa me contar o que lhe preocupa, William? — Perguntou despertando-me de meus devaneios ao mesmo tempo em que parava gradualmente sua caminhada. — Sei que não é muito educado de minha parte, entretanto dançamos por dois capítulos. Meus pés doem e gostaria de um lugar para sentar-me e ouvir o que tem à dizer. — Concluiu.
Senti meu maxilar enrigecer a medida que o nervosismo tomava conta de meu personagem, deixando-me aflito com a situação. Olhei para além de Julieta, a fim de identificar o jardim de inverno, mas senti-me frustrado ao constatar que o local ainda encontrava-se relativamente distante e que, sem perceber, havíamos optado por percorrer o caminho mais longo até lá.
— Poderíamos caminhar até o jardim de inverno, não acha? — Questionei aflito. — Lá poderá repousar e conversaremos melhor. — Constastei inquieto.
Julie não me respondeu. Desviou seu olhar, que antes se encontrava direcionado àos seus pés cansados pelas longas horas à rodopiar pelo salão, e encarou-me com uma feição preocupada. Não fui capaz de sustentar meu olhar, olhar para ela se tornava cada vez mais difícil para mim.
Durante a leitura de Amélia naquela noite e após chegar à conclusão de que deveria ser
sincero com aquela que outrora fora minha amada, a cada vez que minha visão recaía sobre Julieta, encontrava em sua face o semblante amoroso que evidenciara todas as vezes o carinho de Julie para com minha persona. Ao recordar-me que posteriormente viria a partir seu coração, em minha mente o vislumbre do olhar de decepção que muito provavelmente surgiria em sua face após minha revelação desencorajava-me a olhar em seus olhos.
Não sabia como dizer que já não poderia mais afirmar que meu coração seria eternamente seu, pois o amor que jurei ser eterno, se tornara distinto do carinho que passei a nutrir pela jovem.
— William, eu conheço-te bem. Eu o vi se desenvolver através das páginas desse livro, eu te vi nascer. Me recordo de encarar o mar branco da próxima página onde seria narrado o segundo capítulo, e dele um rabisco de um homem surgir. Tão lindo quanto a luz das estrelas e tão extraordinário quanto aquele que nos criou. — Ouvi sua voz após alguns momentos de silêncio. A dama, que antes se encontrava relativamente distante, agora colocava suas mãos delicadamente sobre minha face, fazendo-me a encarar e admirar o brilho em seu olhar ao falar de nossa criação.
Então eu quis fugir, todavia não fui capaz de o fazer.
— Julieta, eu... — Comecei, porém não tardei a ser interrompido pela moça que, agora, colocara os dedos suavemente em meus lábios a fim de que pudesse dar continuidade à sua fala.
— A pena rabiscou o papel com a tinta e da tinta você surgiu. Logo depois vieram as palavras, e delas se formaram as frases, das frases os parágrafos e dos paragrafos...bom, a nossa história. E assim vimos o livro nascer. Nosso romance nascer, William. E como quem lhe conhece desde os primórdios de nossa existência limitada, consigo perceber quando não está bem, meu amor. Não sei ao certo se é pela nova leitura, ou pelas sensações de sermos lidos que há muito não nos concedem o ar da graça. — Riu-se balançando a cabeça negativamente. — Contudo preciso que me diga o que lhe aflige, que seja sincero comigo, Will, pois dói-me muito vê-lo assim.
Tentei resgatar em meus pensamentos as palavras adequadas para contar-lhe aquilo que pretendia lhe contar. Mas não haviam palavras certas. A angústia parecia rasgar-me o peito e as palavras acovardaram-se para sair pelos meus lábios. Eu não queria a machucar, então senti medo, e desejei que Amélia jamais tivesse nos encontrado.
— Fui um traidor, Julieta. — Confessei por fim, afastando-me de imediato e virando de costas para que já não pudesse ver o semblante que tomaria conta de seu rosto com a tamanha revelação que estaria por vir em seguida.
— Um traidor? — Repetiu confusa em tom de questionamento. — Percebe o peso dessa afirmação, William? Não vejo motivos para tal confissão, meu amor. Não fale isso de si, sabes bem que isso não é verdade.
— És pura, sobretudo inocente, Julie. Conheci o amor através de ti e a culpa que carrego é um fardo que irá comigo até o fim de minha existência. Tenho para mim que alma alguma, mesmo que em um universo distinto do nosso, irá dispor do privilégio de estar à sua altura, Milady. És boa demais para Anthony, para o príncipe e até mesmo para mim. Mereces mais do que as barreiras desse livro podem lhe dispor, minha doce Julieta. — Disse.
Em um pranto silencioso, deixei-me sentir a dor que aos poucos tirava-me o ar e apertava meu coração. No silêncio de Julieta, encontrei o vazio no qual desejei sumir e não mais ferir aquela que jamais mereceu tamanha decepção como a que estava prestes a lhe proporcionar.
— O que quer dizer, Will? — Perguntou-me após um tempo, e foi pela sua voz trêmula que notei que ela também já não conseguia segurar o choro. — Você é bom para mim, meu amor. Não me digas que são ciúmes pelo comentário de nossa leitora! Eu te amo, Vossa Grassa. Não haveria de ter pretendente melhor que o senhor para mim.
Senti então suas mãos delicadas tocarem em meus ombros, porém não me movi. Deixei que as lágrimas rolassem pela minha face e molhassem minhas vestes. Convicto de que a dor que senti ao perceber minhas incertezas acerca de meu amor para com Julieta me atingira com menor intensidade do que naquele momento, cogitei amá-la de forma mais intensa do que um dia poderia ter um dia imaginado. Contudo, Amélia também despertara algo em mim, e logo a certeza de que não poderia continuar ao lado de Julieta tendo dúvidas acerca dos meus sentimentos retornara novamente.
— Milady, não consegues entender. — começo não mais conseguindo disfarçar meu choro. — Eu te amei, Julieta. Não tenho certeza de quando comecei a te amar, entretanto jurei entregar meu coração à ti e cuidar do seu até o fim de minha vida, e acredite, estou cuidando de ti agora para que não sofra póstumamente. Nosso literato lhe designou como meu único amor, e através dos vocábulos desse livro fez-me jurar-te amor eterno. Por um tempo, acreditei sentir aquilo que me disseram que deveria sentir, mas quando Amélia leu-nos pela primeira vez, as palavras perderam sentido e as juras já não tinham mais os mesmos significados os quais eram pressupostos que tivessem para mim.
— O que quer dizer? — Questionou afastando seu toque do meu corpo.
— Eu senti algo diferente naquela tarde em que ela nos levou consigo para sua casa. Na verdade, senti em todas as outras vezes em que ela abriu nosso exemplar. — Confessei.— Não me orgulho disso, Julieta, porém não consegui admitir que estava traindo os escritos de nosso cronista, e tão pouco o fato de que estaria sendo infiel com você, a mulher a qual prometi amar para sempre.
Então virei-me para ela. Com pesar, observei seu pranto em meio à tristeza de seu olhar diante da revelação, enquanto seus lábios se encontravam juntos em uma linha fina, no que julguei ser uma tentativa de minimizar seu choro. Senti-me a escória daqueles que não tiveram como eu, a oportunidade de viver ao lado de sua amada, e ao observar a destruição que havia causado à ela, não pude deixar de assemelhar-me à um monstro.
Havia feito aquilo que havia prometido jamais fazer, magoá-la.
— Eu ainda te amo, Julieta. E contar-lhe sobre meus pensamentos infames e minha traição corta-me o ar. Por anos você fora minha luz, aquela que não me permitira perecer mediante ao esquecimento no qual fomos largados. Queria pedir-te perdão, mas em tempo algum poderia fazer-lhe tal pedido. Eu não mereço suas desculpas, tão pouco a jovem maravilhosa a qual você é e se tornou ao longo desses anos ao meu lado. Fui ingrato, confesso, e acovardei-me na ilusão de que tudo ficaria bem com o tempo, e que meus sentimentos para com Amélia nada mais eram que uma animação passageira que, não apenas à mim, tomou conta de todos os outros personagens. E apesar de ter certeza do meu amor por ti, minha querida Julieta, não sou capaz de continuar ao seu lado enquanto não tiver clareza no que diz respeito às novas emoções que vem aponquentando-me constantemente.
— Eu não compreendo, William. Tudo parecia tão bem. — Respondeu-me em um sussurro limpando as lágrimas em sua face. — Esses questionamentos, essas dúvidas, não fazem sentido para mim, nós nos amamos William, sempre foi assim. Quando isso deixou de ser o suficiente para ti?
— Será que nos amamos verdadeiramente, ou apenas estamos juntos pois assim quis e ordenou o nosso escritor? — Desabafei, atraindo uma feição de dor de Julieta. Havia a machucado com minhas palavras, e culpei-me por não ter sido capaz de conter meus sentimentos. — Não era pressuposto que eu sentisse essas sensações errôneas que me foram despertadas por Amélia, tão pouco era de se esperar que um simples personagem despertasse aquilo que se há de mais precioso dentre os mundos e suas diferentes formas de existência, a alma. Eu não pedi por isso Julieta. Não posso ser egoísta ao ponto de continuar ao seu lado sem saber o que é real para mim e não somente para os capítulos dessa história e nosso literato. Todas essas questões estão para além das respostas que este livro pode nos oferecer. Me desculpe Julie, Eu te amo, mas receio que tenhamos que nos separar por um tempo.
— Não é do seu eu te amo que preciso agora, William, porém da certeza que tinha de que aquele que prometeu cuidar do meu coração jamais o quebraria. Preciso de um tempo.
Então a observei sumir dentre o caminho florido que, antes belo, agora se tornara completamente sem vida para mim. A medida que observei Julieta distanciar-se, caí no chão sob meus joelhos deixando que a dor consumisse-me por completo ao ver a mulher que há muito estava ao meu lado, correr para longe a fim de que pudesse esconder-se de mim. E em um pranto doloroso, questionei-me acerca do destino que havia escolhido para mim.
Havia admitido minha traição.
Olá, tudo bem?
Primeiramente gostaria de agradecer pelos 3K em William! Jamais esperei que a história ganhasse tamanhas proporções e estou extremamente feliz com essa conquista!
Confesso que este capítulo fez-me chorar um pouco! Mas e aí, o que acharam da atitude de William e das revelações? Obrigada por cada um que está acompanhando!
Gostaria de encerrar esse capítulo com mais algumas conquistas demasiado especiais para mim! Isso mesmo, as premiações recebidas por William! Queria dividir essa alegria com vocês que estão aqui comigo desde o início da jornada desse personagem bem confuso e seus sentimentos infiéis.
🥇Primeiro Lugar - Categoria Ficção Histórica pelo concurso Raposas Literárias.
🥇Primeiro Lugar - Categoria Melhor Capa pelo concurso Jóias da Escrita.
🥈Segundo Lugar - Categoria Clássico Histórico pelo Concurso Bruxas e Deuses.
🥉Terceiro Lugar - Categoria Melhor Capa pelo concurso Holidays Project.
🥉Terceiro Lugar - Categoria Romance pelo Concurso evermore.
Obrigada, de coração! Esses prêmios também são de vocês! Assim que o livro acabar de passar por alguns outros concursos, irei alterar a capa para a que está com todos os selos! A capa ainda não está com todos, visto que o do concurso evermore ainda não recebi, porém deixarei a capa disponibilizada abaixo para que possam ver!!!! Estou realmente muito feliz.
Até o próximo. Xx
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