🎩 08. ‐ No Quarto Capítulo. 🍂
"Amor não é coisa que se possa pedir a alguém."
— O Diário de Anne Frank – Anne Frank.
No Quarto Capítulo.
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Toque Perverso.
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Julieta movia-se pelo salão de forma graciosa, em um dança calma e silenciosa recebendo os olhares desejosos dos diversos pretendentes que se dispuseram a comparecer ao baile daquela noite. A jovem dama, que percorria o espaço rodopiando com leveza e delicadeza a fim de que, pelo o que julguei, pudesse alcançar-me, direcionava-me uma feição de surpresa acompanhada de um olhar espantado perante a continuação da leitura.
Uma melodia instrumental suave de uma música, a qual não me atentei a descobrir o nome, preenchia de maneira sussinta e serena o ambiente ao redor, outorgando aos convidados não apenas a calmaria transpassada pelas notas tocadas como também o vislumbre de uma música que equiparava-se ao sonoro do divino presenteando-nos com sua beleza e elegância musical. Contudo, a medida que Amélia lia as últimas palavras do capítulo, a orquestra silenciava-se vagarosamente, cessando o som de suas notas conforme a leitura se findava indicando a introdução da leitora à uma nova parte da história.
Desnorteado, não percebi quando Julieta chegou ao meu encontro, e tão pouco fui capaz de notar o momento em que fui levado ao jardim onde se daria início a próxima cena do enredo. Buscando acalmar os pensamentos oriundos da minha inquietação, concentrei-me então na luz do luar em um pedido silencioso às estrelas para que me concedessem o alento que, naquele momento, eu tanto necessitava.
Pela primeira vez, quis que Amélia cessasse sua leitura.
— Está tudo bem, William? — Perguntou Julieta tocando com ternura em meu ombro, chamando-me a atenção. — Parece preocupado. O que tanto lhe aflige, Will?
Mas não respondi. Permaneci calado na certeza de que quaisquer uma das palavras que saíssem pelos meus lábios estariam cobertas pela culpa de minha traição, e a certeza de que jamais seriam capazes de acobertar tal atitude infame minha para com o destino que meu literato quis que eu tivesse. De um lado, um amor o qual jamais tive a oportunidade de escolher se queria ter, e que fora em outro tempo o motivo de minha criação e consequentemente a razão de minha existência. E em contra partida, residindo em uma dimensão para a qual jamais seria capaz de me transportar, reside uma leitora que, através de seu encanto proibido, despertou em mim um sentimento desconhecido e errado, concedendo-me pela primeira vez em minha pobre vida limitada aos conhecimentos que meu cronista permitiu-me adquirir, o despertar do meu livre arbítrio.
— Vossa grassa, fiz algo que não tenhas gostado? — Questionou a dama preocupada, intercalando seu olhar entre a leitora e minha persona. — Will, você sabe que podemos tentar fugir da narrativa para um capítulo mais distante caso queira conversar. O Senhor, meu Duque, é mais importante do que qualquer leitura para mim. Por favor, me diga a origem da tristeza que o assola de forma tão avassaladora, e deixe-me ajudá-lo. — Completou.
Contudo, apesar do desejo crescente de abraçá-la e dizer que a amava como fazíamos em todos os nossos momentos de angústia com o passar dos anos, ainda sim não fui capaz de lhe encarar, pois soube que estaria mentindo já que o sentimento que um dia nutri por ela já não se demonstrava o mesmo.
Fui covarde, confesso. Deveria ser capaz de assumir à Julieta as incertezas que há muito apoquentavam-me, entretanto permaneci com o olhar distante e a conclusão de que em um momento póstumo à leitura de Amália deveria conversar com Julie; foram as únicas coisas que consegui sustentar além da certeza de que Julie não merecia minhas dúvidas quando jamais ousou contestar seu afeto em relação à mim.
— Estou surpreso. — Menti. E muito embora não fosse a primeira vez que o fiz, julguei ser essa a melhor opção diante de minha situação. Não poderia cogitar a remota possibilidade de abordar a jovem dama acerca de minha infidelidade durante o capítulo em que ficaríamos a sós pela primeira vez, ato que possibilitaria o romance que se iniciaria postumamente. — Ela nunca havia lido-nos mais de uma vez em um mesmo dia, sobretudo com em um espaço de tempo tão curto. Certamente conferir prosseguimento à sua leitura mesmo após o fim de um capítulo deixa-me ligeiramente atônito. — Concluí.
Não houve resposta oriunda de Julieta. A delicada jovem limitou-se a direcionar-me um olhar repleto de doçura, bondade e compreensão, o qual despertou-me o desejo momentâneo de que Amélia jamais houvesse nos encontrado, e tivesse nos deixado esquecidos na prateleira úmida sobre a qual residimos durante anos à mercê das traças e dos flocos de poeira que insistiam em fazer-nos morada.
Apesar de saber que se Amélia não tivesse nos resgatado jamais conheceríamos a sensação de sermos conhecidos novamente, eu encontrar ia-me livre dos desejos inoportunos que levam-me a traição e o descontentamento de não poder retribuir o amor daquela à quem minhas juras deveriam ser destinadas. Morreria no esquecimento, com as últimas letras de meu nome virando alimento para os bichos que residiam na biblioteca, todavia faleceria na ignorância e sem o conhecimento da aflição que é o despertar da alma de alguém o qual não era pressuposto adquirir uma.
A voz de Amélia fez-me despertar do vazio fúnebre em que outrora fui jogado. Estar entre a presença de Lia e Julie trazia-me sensação semelhante ao afogamento aglutinada à angústia dos últimos instantes de vida antes que só reste o corpo inerte sobre o leito e a calmaria seguinte ao sofrimento advindo da luta pela vida. A voz de nossa leitora era como o oceano, preenchendo-me com a calmaria do timbre de sua gargalhada e as variações de sua voz que assemelhavam-se as ondas do mar, inconstantes e imprevisíveis. Já minha prometida pelas páginas de nosso livro remetia-me a bonança¹ da despedida de alguém que já aceitara seu destino, contagiando-me com a paz e o sossego necessário e desejado por todos.
Em meio aos meus pensamentos, deixei que em uma tentativa desesperada de distanciar-me do desconforto aparente em decorrência da situação na qual me encontrava meu corpo me guiasse em direção ao portal narrativo mais próximo, onde eu poderia navegar entre os dois mundos nos quais encontrava-me aprisionado e não deparar-me mais entre ambas as moças que despertavam-me pensamentos errôneos. Desejei afogar-me nas vogais e decair no esquecimento sob as consoantes dos vocábulos que davam origem ao mundo das palavras em nossa obra. Quis cair desacordado em uma letra qualquer e esquecer-me por completo das dúvidas que ainda insistiam em fazer tormenta.
Julieta não fora atrás de mim, o que fez-me suspirar de alívio. Não sabia quanto tempo ainda seria capaz de disfarçar minha infidelidade que tornava-se cada vez mais evidente com o decorrer do tempo. Enquanto Amélia pronunciava cada trecho com avidez e clareza, meu corpo parecia corresponder a cada toque seu, com pensamentos perversos que me transportavam à outra realidade onde eu poderia vir a beija-la e torna-la a minha amada.
— Oh Julieta, em outro tempo, outra época eu desejaria ter nascido em seu lugar. — Pronunciou Amélia, atraindo minha atenção para o diálogo retórico que era criado entre ela e o livro. — Debutar aos quinze anos e ser exibida à uma fila de pretendentes como uma mercadoria onde a maioria está apenas interessada no quanto sua família tem à oferecer não me parece algo tão agradável. Apesar do desagrado que isso me faz, ainda sim talvez em outro tempo eu desejasse nascer em seu lugar.
Então a vi sorrir. Apoiando-me em uma palavra qualquer situada no meio do quarto capítulo, eu atentei-me aos lábios de Amélia movendo-se de acordo com os trechos descritos nas páginas do capítulo, enquanto suas feições mudavam constantemente de acordo com as variações no enredo.
Não pude deixar de notar quando ela mordeu seus lábios levemente e arregalou os olhos de forma discreta em meu encontro repentino com Julieta nos confins do palácio onde o baile fora organizado. Observei ela recitar para mim a forma como o amor entre eu e Julieta começou a se formar, e como um simples toque advindo de minha futura noiva fez-me recuar mediante a possibilidade de um possível novo amor o qual relutei durante anos para conseguir. A ouvi proferir as palavras de meu literato, que comparava as estrelas ao brilho nos olhos de Julieta naquela noite, e que fazia-me confidenciar ao luar meu interesse secreto na jovem. Mas aquelas palavras não despertaram-me nada mais que o desejo de desprender-me das correntes nas quais aqueles termos pronunciados por Lia aprisionavam-me.
Senti seus dedos acariciarem com ternura o papel, e o azul de seus olhos ganhar um brilho especial, e foi naquele instante em que meu coração palpitou de forma distinta as anteriores. Àquela altura já era um homem apaixonado, mesmo que nessa vida não pudesse ficar com aquela a quem desejava.
— Estou encantada. — Pronunciou Amélia com um pequeno sorriso esboçado em sua face que agora se encontrava levemente rosada. — Um amor à primeira vista, mesmo que ambos neguem. De certo formam um belo par. — Completou.
— De certo. — Respondi. Mesmo sabendo que jamais poderia me ouvir, deixei que a tristeza transparecesse através de uma resposta que propagaria pelas páginas vazias até que fosse tomada pela deslembrança². — Foi para isso que fomos criados, para satisfazer um ao outro e completar-nos por toda eternidade. Nosso amor seria eterno enquanto durasse, e creio eu que deveria durar para todo o sempre, mas a eternidade não tem fim, e meu amor romântico por Julieta já perde veracidade. Eu a amei à primeira vista, não há dúvidas que desde o primeiro momento que a vi confidenciei à mim o desejo de desposa-la, todavia não sei ao certo até quando poderei sustentar esse amor. — Confessei.
E ao passo que Amélia continuou sua leitura, senti as lágrimas descerem por minha face e molharem minhas vestes enquanto em minha mente suplicava silenciosamente pela ignorância que me fora retirada.
Eu era apenas um personagem de papel, com memórias de papel e vestes de papel que um dia iriam se desfazer, e jamais poderia desfrutar de sentimentos, lembranças ou paixões que não fossem de papel. Um dia eu iria me decompor, as palavras em meu corpo iriam sumir e eu não seria nada mais que uma folha desgastada que pereceria no ciclo da existência. A verdade é que memórias de papel não duram muito, então eu também não duraria.
Meu choro silencioso se prolongou até que Amélia pusesse o marcador na divisa do quinto capítulo. Havia deixado escapar um bocejo pelos seus pequenos lábios, ao mesmo tempo em que sua vista havia começado a ganhar uma coloração avermelhada e sua face um aspecto cansado, fazendo-me deduzir que já era tarde em seu mundo. Sorri com ternura em meio minhas lágrimas quando a ouvi lamentar ao observar que aos poucos o capítulo se findava, mas seu cansaço parecia tanto que tive certeza de que caso desse continuidade à sua leitura, dormiria em meados dos próximos acontecimentos.
Posicionei-me com cuidado sobre uma letra qualquer, e limpando meu rosto para que não ficassem resquícios de meu momento delicado, fui de encontro ao mundo da imaginação, onde deparei-me com minha adorável Julieta na sacada observando o jardim no qual o cronista descrevia-me. Notei a felicidade a preencher gradualmente ao perceber que o local, antes vazio, agora fora agraciado com a minha presença ao som das descrições lidas por Amélia, que igualavam-me à um príncipe ou um dos mais desejáveis dos cavaleiros.
No céu, o parágrafo final era exibido momentaneamente, e a medida que as palavras sumiam de acordo com a velocidade de leitura de Amélia, observei Julie correr em minha direção e abraçar-me sob a noite estrelada e as linhas que compunham nossa história de amor. Não demorei para corresponder seu abraço e beijar com afetuosidade o topo de sua cabeça. Precisava ser sincero com ela.
— Julie, querida, precisamos conversar. — Disse receoso observando Amélia fechar a obra. Ela havia terminado o capítulo.
Julieta encarou-me curiosa, analisando-me a procura de um possível sinal que pudesse a apontar pistas daquilo que iria dize-la, todavia nada encontrou além da aparência preocupada costumeira. Ainda estava confuso, entretanto sentia-me no dever de conta-la sobre minhas divagações inoportunas para com Amélia. Com o medo consumindo-me, a levei para um canto distante onde poderíamos dispor da privacidade necessária para a conversa que iríamos ter.
Seria sincero a respeito de meus devaneios e incertezas acerca das descrições de nosso cronista.
Então traí meu literato, pois ali adquiri a certeza de que suas palavras já não mais faziam jus aos meus sentimentos.
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Bonança¹ — Sinônimo de calmaria.
Deslembrança² — Sinônimo de esquecimento.
Até o próximo. Xx
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