Spaces
Quem vai ser o primeiro a se comprometer?
Quem vai ser o primeiro a colocar fogo em tudo?
Quem vai ser o último a ir embora?
Esquecendo cada promessa que já fizemos
ADRIEN
Eu não tinha muitas memórias de quando era pequeno, mas me lembrava nitidamente de algo que havia acontecido quando eu tinha seis anos de idade: eu estava sozinho em uma casa enorme que eu não reconhecia, provavelmente em uma das muitas mansões que Gabriel fez questão de colecionar ao longo dos anos, quando tropecei e caí de um lance de escadas.
Não me machuquei muito, só fiquei com alguns arranhões, mas não consegui segurar as lágrimas que fizeram questão de escorrer pelas minhas bochechas como pequenos soldados em uma missão: a de me envergonhar e fazer com que meu pai ficasse com raiva de mim.
Missão cumprida.
Gabriel chegou em casa horas depois e viu Natalie ajoelhada ao meu lado e tentando me acalmar, já que o susto tinha me afetado mais do que qualquer coisa. Aparentemente ela estava comigo no andar de cima, mas eu havia saído afobado sem esperar por ela ao descer as escadas.
Foi naquele momento, naquele dia, que eu aprendi que meus sentimentos não importavam, pelo menos não para quem eles deveriam importar.
Meu pai ficou furioso pelo sangue em suas escadas e por eu ter corrido como um garoto inconsequente, afinal aquele não era o "comportamento digno de um Agreste". Ele não perguntou se eu estava bem ou se precisava de um abraço - e eu com certeza precisava -, mas me deixou de castigo e me proibiu de brincar tanto dentro quanto fora de casa, meu tempo livre passando a ser distribuído entre aulas de chinês, aulas de piano, esgrima, xadrez, golfe e clubes de leitura. A modelagem também passou a se tornar mais frequente, o que fez com que eu tivesse literalmente zero tempo para mim mesmo.
Basicamente deixei de ser uma criança muito cedo e, por esse motivo, passei a achar que os sentimentos eram algo engraçado de se lidar.
Fazia sentido, afinal não era como se eu tivesse sido valorizado enquanto crescia. Não, Gabriel nunca havia sido um pai amoroso e minha mãe havia desaparecido no mundo, então tinha certeza de que nunca havia conhecido aquele amor incondicional que os pais deveriam ter pelos filhos.
Nunca recebi um beijo nos cabelos, um abraço de lado ou até mesmo um tapa nas costas. Nunca tinha escutado um "parabéns" ou um "estou orgulhoso de você". Minhas próprias emoções e vontades nunca haviam sido valorizadas enquanto eu crescia.
Acho que justamente por isso a minha noção de como as pessoas se sentiam se desenvolveu sendo levemente distorcida.
Para a minha versão criança, sentimentos eram aspectos chatos e incômodos que eu precisava esconder a todo custo. Para que chorar e despejar meu coração para o meu pai se eu sabia que ele somente ficaria incomodado com as lágrimas em seu paletó? Por que criar expectativas de uma palavra carinhosa se ninguém nem mesmo prestava atenção em mim?
Não. Definitivamente não.
Fiz questão de esconder cada camada frágil dentro de uma armadura que era diariamente colocada à prova em desfiles e ensaios fotográficos. Escondi todo o horror da guerra contra Shadow Moth, todo o trauma que as batalhas sangrentas me traziam, e passei a morder o travesseiro para que ninguém me ouvisse gritar pelos pesadelos que eu tinha durante a noite.
Eu escondia bem. Eu precisava esconder bem. Estava acostumado com isso.
Mas não fazia ideia de que Marinette era uma atriz melhor do que eu. Não fazia ideia de que os demônios dela eram tão pesados. Tão presentes e excruciantes e aterrorizantes.
Eu podia sentir meu corpo inteiro parar de funcionar aos poucos, podia sentir uma dor física no peito que só me fazia querer ajoelhar naquela poça de sangue e me afogar em meio ao líquido carmesim.
Estávamos no que só poderia ser considerado como um banho de sangue, e isso ainda era carinhoso demais para o cenário de Paris naquele momento. Estávamos lidando com uma nova akumatizada: Dorea Empatia, uma estudante de teatro que sofreu um acidente e passou mais de dez anos em coma, acordando somente para perceber que perdeu todas as oportunidades que havia recebido e que ninguém mais se importava com ela. Acho que seu nome era Dominique, não sabia ao certo, mas sabia que ela estava enraivecida e que queria que todos entendessem sua dor, então recebeu de Shadow Moth a capacidade de fazer com que as pessoas ao seu redor se tornassem empáticas e sentissem a dor das pessoas ao seu redor.
Vi multidões sangrando pelos olhos de tanto chorar. Pessoas se sentindo tão envolvidas em um redemoinho de desespero que preferiram acabar com a dor de maneiras traumatizantes, o que explicava as poças grudentas e com cheiro de cobre aos meus pés.
Paris inteira estava pintada de vermelho e eu mesmo não estava distante de me juntar àquela carnificina.
Tinha sido atingido há poucos momentos, tendo praticamente me jogado em frente a Ladybug para impedir que ela fosse machucada. No entanto, justamente por ter estado extremamente perto dela, foram os seus sentimentos que passaram a me engasgar, fazendo com que todo o ar sumisse de meus pulmões e que minha única vontade fosse a de bater a cabeça no concreto para fazer com que aquilo parasse.
Ela me olhava preocupada, mas eu também era capaz de decifrar seus olhos envergonhados mesmo com a minha visão embaçada. Ladybug agarrou meu braço e usou as habilidades do traje para saltar acima dos prédios, me apoiando contra uma pilastra e afastando um tufo de cabelo para longe dos meus olhos.
— Vai ficar tudo bem, meu amor - ela afirmou, pressionando os lábios contra a minha cabeça em um beijo demorado. - Me desculpa. Eu vou resolver tudo, me desculpa. Vai passar, você vai ficar bem.
E, pela primeira vez, eu entendi porque Marinette sempre se mostrava tão relutante em acreditar em mim quando eu dizia que seríamos capazes de superar essa guerra. Tão relutante em acreditar em um futuro puro e feliz, justamente porque sua mente estava determinada em acabar com toda a sensação de conforto que ela já havia sentido na vida.
Eu não conseguia me concentrar por conta da dor física e psicológica que seus demônios estavam me causando, sentindo como se a maior crise de ansiedade do mundo tentasse abrir caminho pelo meu peito e me rasgar de dentro para fora. Eu sabia que Mari era forte, nunca tinha duvidado disso por um segundo sequer, mas agora estava aterrorizado com o quão forte ela precisava ser.
Acho que a gente nunca dá muita importância para o perigo até que ele ponha em risco alguém que a gente ama. Eu mesmo nunca liguei muito para a minha própria integridade ou me preocupei com machucados em campos de batalha, mas não suportava o ínfimo pensamento de Marinette sendo ferida.
Esse medo me inundou com tamanha intensidade que senti uma necessidade gutural de vê-la, de olhar para aquela rua ensanguentada por cima dos prédios e ter a certeza de que ela estava bem. Me rastejei com dificuldade e me debrucei por cima do mármore, minha cabeça pendendo para o lado com o esforço de continuar me movimentando.
Ladybug se movia com agilidade, tendo fundido em si o poder de três miraculous e tendo convocado Rena Rouge para criar a armadilha perfeita para Dorea Empatia. Seu cenho estava franzido da mesma forma que sempre ficava quando ela tentava descobrir uma forma de usar seu amuleto e, mesmo com toda a distância entre nós, eu podia ver como suas mãos tremiam ao segurá-lo. Ela piscou e ergueu a cabeça, avançando e quase caindo no chão ao tropeçar no que parecia com um corpo desfalecido, mas conseguiu retomar o equilíbrio e, afetada, partiu em direção a Dorea Empatia com a fúria de mil demônios.
Isso não estava certo.
Éramos muito jovens para isso. Definitivamente muito novos para ter que lidar com todo esse terror.
Eu não sabia como tínhamos sido capazes de começar a lutar contra todo esse mal aos 13 anos de idade, mas tinha certeza de que nunca mais seríamos os mesmos desde que as batalhas começaram a ficar mais sérias. Mais grotescas. Desde que Shadow Moth desistiu de pegar leve e começou a exterminar o povo de Paris a cada tentativa de tomar nossos miraculous para si.
"Não me importo de arrancar os miraculous de cadáver atrás de cadáver". Essas exatas palavras deixaram sua boca nojenta.
O desgraçado tinha invadido uma transmissão de jornal e anunciado que estava cansado de ser bonzinho, que não havia mais nada, nenhuma questão moral, que o impedisse de alcançar seus objetivos.
E então ele assassinou a repórter Nadja Chamack no programa ao vivo.
Ladybug e eu não estávamos mais em batalha, já tínhamos retornado para as nossas formas civis, então não havia nenhum poder que pudésse trazer a mulher de volta. O mundo parou, e foi como se o tempo parasse também. Marinette passou a carregar a culpa dessa morte nos ombros, se fechando em um redemoinho de ódio próprio que demorei meses para quebrar.
Eu mesmo não estava em um bom lugar, já que notícias sobre a minha mãe haviam crescido na mídia e, depois de muito tempo e muita busca, seu corpo finalmente havia sido encontrado em uma cidade remota na Itália. Eu não a via há anos e, mesmo ficando triste, acabei não ficando assim tão afetado, mas assisti de camarote meu pai se afundar no luto e nunca mais conseguir sair do buraco que ele mesmo cavou.
Era como se o mundo estivesse chegando ao fim, como se estivéssemos, a partir desse momento, vivendo vidas crônicas nas quais uma tragédia antecede outra. Era como se, mesmo que vencêssemos as batalhas, nunca pudéssemos ganhar a guerra.
Senti meu peito gritar em desespero com um golpe de Dorea Empatia que quase atingiu Marinette, já incapaz de diferenciar os demônios dela dos meus próprios. Vi quando a akumatizada foi atrás de uma miragem de Rena Rouge e Ladybug aproveitou a oportunidade para derrubá-la e destruir o akuma. Vi quando Marinette caiu de joelhos, exausta, antes de usar seu poder para fazer com que tudo voltasse ao normal.
O sangue desapareceu das ruas e, de repente, não havia mais corpos no chão. Como em um passe de mágica, todos estavam bem novamente. Era como se nada tivesse acontecido.
Marinette não pensou duas vezes antes de se levantar e correr na minha direção, novamente se colocando de joelhos ao chegar ao meu lado no mármore.
— Você tá bem? - ela perguntou, tomando meu rosto em suas mãos e analisando cada centímetro do meu rosto.
Não, eu não estava bem. Todas as emoções de Mari abandonando meu corpo de uma só vez fizeram com que eu me sentisse vazio, como se estivesse em um estupor e dormência infinitos. Minhas mãos ainda tremiam e eu só queria apertar ela contra o meu peito e nunca mais soltar.
Então foi isso que eu fiz.
Apoiei minhas costas contra uma pilastra e a puxei pela mão, sentindo seu tronco se fundir contra o meu em um abraço apertado.
— Você tá bem? - questionei, ainda que soubesse que a pergunta era óbvia e a resposta mais ainda. Eu precisava falar sobre o que tinha acabado de acontecer, precisava achar um jeito de impedir com que Marinette sofresse tanto ou que eu ao menos pudesse tomar parte da sua dor para mim. Eu precisava fazer alguma coisa, qualquer coisa.
— Não, gatinho - ela respondeu, apoiando a cabeça contra o meu ombro e suspirando perto do meu pescoço. Uma gota molhou o seu cabelo e, só então, percebi que eu estava chorando.
Eu não era acostumado a chorar, não podia chorar, mas Marinette era o meu ponto fraco e o meu porto seguro ao mesmo tempo. Não havia ninguém no mundo que eu amasse mais e eu sentia que podia soltar as rédeas com ela, que podia ser eu mesmo e despejar cada pedacinho do meu coração e ela somente os guardaria para quando eu estivesse pronto para colar os pedaços.
Então eu solucei. Solucei e molhei seu cabelo, seu uniforme e suas roupas comuns. Chorei mais um pouco com a tristeza pura e visceral de saber que o amor da minha vida está passando por tanto sofrimento e que eu não sou capaz de ajudar.
Abaixo de nós, Paris brilhava novamente.
A cidade das luzes.
Era como se nada tivesse acontecido.
Mas aconteceu. E nenhum de nós esqueceria disso tão cedo.
Espaços entre nós
Guardam todos os nossos segredos
Nos deixando sem palavras
E eu não sei por que
Quem vai ser o primeiro a dizer adeus?
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